A “business judgment rule” surgiu no direito americano, se constituindo, basicamente, na proteção à autonomia decisória de administradores de sociedades que sejam bem intencionados, objetivando, assim, protegê-los por eventuais responsabilidades decorrentes de prejuízos apurados ou gerados para a companhia a partir de suas decisões.
Verifica-se, de antemão, que essa aplicação, no direito americano, aparentemente tem o caráter de presunção, eis que se parte do pressuposto de que “ao tomar uma decisão empresarial, os membros do board of directors de uma sociedade anônima agiram de maneira informada, de boa-fé e na crenc1a sincera de que a sua ação atendia ao melhor interesse da companhia”1 .
Verifica-se, pois, o nítido caráter de presunção de inocência, que só poderá vir a ser demolido em caso de violação aos deveres fiduciários de diligencia e de lealdade. Tal caráter visa proteger a boa-fé – dita, no contexto americano, como psicológica – e estabelecida no direito brasileiro como subjetiva, importando, pois, para a condenação do administrador, que sejam trazidos à tona elementos bastantes que comprovem, basicamente, a sua intenção de lesar.
O busness judgment rule no direito brasileiro e a aplicação na jurisprudência
No direito brasileiro, conceito semelhante ao business judgment rule foi abarcado pela legislação aplicável às sociedades anônimas, lei 6.404, em seu art. 159, §6, que se transcreve na íntegra:
“Art. 159. Compete à companhia, mediante prévia deliberação da assembléia-geral, a ação de responsabilidade civil contra o administrador, pelos prejuízos causados ao seu patrimônio.
(...)
§ 6° O juiz poderá reconhecer a exclusão da responsabilidade do administrador, se convencido de que este agiu de boa-fé e visando ao interesse da companhia.
(...)”
A partir da análise fria do texto normativo, percebe-se, com clareza, que há, in casu, uma defesa da boa-fé dos administradores que, com boa intenção, praticam atos que eventualmente possam se mostrar prejudiciais à companhia, gerando prejuízos financeiros à mesma e, consequentemente, aos seus acionistas.
Decerto, a redação legal acima transcrita vem resguardar o administrador em suas funções para que este não seja compelido a evitar tomar decisões cruciais para a empresa sob o risco constante de responsabilização pessoal. E, também, deve-se levar em consideração a eventual incerteza que faz parte de qualquer tipo de cenário negocial ou estratégico, ainda que bem planejado.
Como exemplo, pode-se arguir sobre o efeito avassalador em certas companhias e ramos de mercado com a pandemia da covid-19, que fez com que empresas ao longo do mundo tivessem prejuízos gigantescos. Ainda que seja um exemplo extremo, denota o grau de incerteza que, por vezes, ainda ronda o ambiente de negócios e de gestão.
Ainda na linha do que prevê a lei brasileira a respeito da responsabilidade de administradores de companhias, cumpre trazer à baila o disposto no art. 158 da LSA, que assim aduz, a saber, in verbis:
"Art. 158. O administrador não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão; responde, porém, civilmente, pelos prejuízos que causar, quando proceder:
I - dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo;"
Por corolário lógico, percebe-se que a aplicação de tais artigos da lei societária tem por objetivo recepcionar, de maneira clara, o conceito do “business judgment rule” no direito brasileiro.
Nesse contexto, cumpre salientar que a aplicação de tal instituto divide a doutrina especializada a respeito do tema. Para muitos, como Waldirio Bulgarelli, a regra trazida pela LSA criaria um cenário de impedimento à responsabilidade do administrador. Na sua visão, as exceções deveriam ser, apenas, aquelas constantes do conceito de “força maior” e “caso fortuito”, que já encontravam guarida no direito brasileiro no ramo das obrigações.2
É inegável que a visão acima compreende certo sentido e deve ser levada em consideração, dado o notório caráter – por vezes não muito exato – de impunidade que reina no Brasil, ao menos aos olhos da população.
Entretanto, nos parece mais acertada a visão compartilhada por Corrêa-Lima, que sustenta se tratar, a regra insculpida no art. 159 da LSA, como sendo a recepção do instituto do business judgment rule e, por consequência, constituiria uma proteção para que o administrador possa exercer suas funções com liberdade, sem pairar sobre ele a contínua situação de poder responder com seu patrimônio por prejuízos eventualmente experimentados pela companhia e alheios à vontade do mesmo, ou seja, conservando o estado de boa-fé.
Dito isso, cumpre trazer a lume que a jurisprudência brasileira já enfrentou o tema em algumas oportunidades, sendo válido trazer ao conhecimento o julgamento exarado pelo TJ/SP, que assim entendeu a respeito do tema:
“ILEGITIMIDADE ATIVA. INOCORRÊNCIA AÇÃO DE COBRANÇA DE SEGURO DE RESPONSABILIDADE DOS ADMINISTRADORES DE SOCIEDADE COMERCIAIS (D&O INSURANCE) PESSOA JURÍDICA LEGITIMADA A PARTIR DE ENDOSSO DA APÓLICE DE SEGURO ADMISSIBILIDADE PESSOA FÍSICA, POR OUTRO LADO. QUE ERA ADMINISTRADORA DA SOCIEDADE SEGURADEA LEGITIMIDADE ADVINDA DA PRÓPRIA NATUREZA DO SEGURO PRELIMINAR AFASTADA PRESCRIÇÃO. INOCORRÊNCIA AÇÃOO E COBRANÇA DE SEGURO DE RESPONSABILIDADE DOS ADMINISTRADORES DE SOCIEDADES COMERCIAIS (D&O INSURANCE) AUTORES QUE CUIDARAM DE AJUIZAR AÇÃO CAUTELAR INTERRUPTA DE PROTESTO REINICIO DA CONTAGEM DO PRAZO DEMORA, ADEMAIS. DECORRENTE DE EXIGE^NCIAS DA PRÓPRIA SEGURADORA TERMO INICIAL TOMADO A PARTIR DA EFETIVA NEGATIVA DE PAGAMENTO PRELIMINAR AFASTADA SEGURO AÇÃO DE COBRANÇA DE SEGURO DE RESPONSABILIDADE DOS ADMINISTRADORES DE SOCIEDADES COMERCIAIS (D&O ENSURANCE) PROCESSOS ADMINISTRATIVOS QUE DÃO CONTA DA INFRAÇÃOO, PELO ADMINISTRADOR, AOS DEVERES DE CUIDADO E LEALDADE (‘DUTIES OF CARE AND LOYALTY’) APURAÇÃO DA PRA'TICA DE ATOS FRAUDULENTOS ANTERIOR À CONTRATAÇÃO E QUE NÃO FORAM INFORMADOS À SEGURADORA (‘KNOWN ACTIONS’) EXCLUDENTES ABSOLUTOS DE RESPONSABILIDADE PRECEDENTES PRECEDENTES DOUTRINA'RIOS ESTRANGEIROS RECURSO IMPROVIDO SEGURO AÇÃO DE COBRANDE DE SEGURO DE RESPONSABILIDADE DOS ADMINISTRADORES DE SOCIEDADES COMERCIAIS (D&O ENSURANCE) PRETENDIDO ADIANTAMENTO DOS CUSTOS PARA A DEFESA JUDICIAL DO ADMINISTRADOR INADMISSIBILIDADE NEGATICA DA SEGURADORA BASEADA NAS EXCLUDENTES DE ‘KNOWN ACTIONS’ E ‘DELIBERATE ACTS’ ADMISSIBILIDADE ATOS DELIBERADAMENTE FRAUDULENTOS PRATICADOS E APURADOS ANTERIORMENTE À CONTRATAÇÃO DO SEGURO RECONHECIMENTO JUDICIAL COMPROMISSO DE REEMBOLSO. ADEMAIS, QUE NÃO ESTÁ PREVISTO EM CONTRATO E NA~O PODE SER ADMITIDO RECURSO IMPROVIDO HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. FIXAÇÃO DETERMINADA COM BASE NO VALOR DA CAUSA ADMISSIBILIDADE AUSÊNCIA DE ALEGAÇÃOO ESPECÍFICA PELAS PARTES INTERESSADAS RECURSO IMPROVIDO VOTO VENCIDO” (TJ/SP. APELAÇÃO COM REVISÃO N. 9103221-02.2007.8.26.0000. 6.a Câm. de Direito Privado. rel. Vitor Guglielmi. j. 11/12/08. Publicação: 22/12/08).3
No julgado em tela, percebeu-se a aplicação da teoria norte americana de violação, pelo administrador, dos deveres fiduciários de cuidado e de lealdade (Duty of Care and Loyalty), com aplicação clara no sentido de que a boa-fé deverá ser levada em consideração na análise dos casos, o que se coaduna com uma posição mais adequada do ponto de vista doutrinário.
Conclusão
Uma correta compreensão da business judgment rule e sua aplicabilidade no direito brasileiro passa, ao nosso sentir, pela avaliação de aspectos como a boa-fé e pela comprovação de infração, pelo administrador, dos deveres que devem nortear sua posição, sem criar um cenário em que seja possível, de maneira quase imediata, a responsabilidade do mesmo por todo e qualquer prejuízo que a companhia venha a experimentar.
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1 Aronson vs. Lewis, 473 A.2d 805, 812 (Del. 1.984) apud PARGENDLER, Mariana. In. Responsabilidade Civil dos Administradores e Business Judgment Rule no Direito Brasileiro. P.6.
2 BULGARELLI, Waldírio. Sociedades por ações – aumento abuso de capital. Prejuízo dos minoritários e vantagens indevidas dos majoritários. Diluição injustificada da posição dos antigos acionistas. Abuso do poder e conflito de interesses. Anulação da deliberação assembelar que aprovou o aumento e reparação dos danos. Revista dos Tribunais.
3 TJ/SP. APELAÇÃO COM REVISÃO 9103221-02.2007.8.26.0000. 6.a Ca^m. de Direito Privado. rel. Vitor Guglielmi. j. 11.12.2008. Publicação: 22/12/08