Migalhas de Peso

Onde fica o ESG nas estruturas corporativas?

Acredito que o ESG poderia ficar em um grupo que fosse coordenado por jurídico e compliance.

3/3/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Após meditar sobre diversos aspectos relacionados ao tema ESG (Environmental, Social and Corporate Governance), cheguei a um ponto de cunho prático que parece ser bem relevante para as empresas. Aonde colocar a ESG nas estruturas corporativas? A solução mais óbvia, aparentemente, seria criar uma diretoria autônoma. Mas o óbvio pode pregar peças e impedir uma reflexão mais pragmática. Nem sempre a empresa terá recursos para criar toda uma diretoria de ESG. Além disso, a ESG se interliga com diversas áreas especificas. O que fazer, então, para ser eficiente e não acabar gastando mais recursos em burocracias internas do que em ESG propriamente dita.

Não adianta tapar o sol com a peneira ou criar uma estrutura “para inglês ver”. A sociedade está exigindo um comportamento responsável das companhias. Então, a questão posta neste texto não deve ser tratada de forma irrefletida.

Em um artigo acadêmico fantástico, os professores Leo Strine, Kirby M. Smith e Reilly S. Steel trazem reflexões importantes que acabam criando um caminho. Meu primeiro contato com o professor Leo Strine foi durante o LL.M. na University of Pennsylvania. Strine era, na época, Vice Chancellor da Corte de Delaware (a corte mais especializada em Direito Societário nos EUA). O Professor Michel Wachter, que lecionou Corporations (Direito Societário), contava que uma opinion (decisão) de Strine, certa vez, havia sido considerada como o melhor artigo de direito societário do ano. Leo Strine chegou ao cargo de Chief Justice of the Delaware Supreme Court e se aposentou em 2019. Ele é uma referência em direito societário nos Estados Unidos.

Muito bem. No artigo em questão, os professores salientam que, como “o ESG abraça a responsabilidade de se engajar em condutas éticas, seguras e não enganosas em relação aos clientes da empresa, ela também se sobrepõe à Compliance”.1 Ao final, concluem artigo no seguinte sentido: “[n]a medida em que o estabelecimento de processos para considerar o ESG e a conformidade juntos tem o potencial de tornar o EESG mais durável, isso também deve atrair aqueles que defendem o ESG como um meio de corrigir desigualdades sociais e outras deficiências de nosso sistema jurídico e político. Parece plausível que a definição de um processo rotineiro para considerar o ESG juntamente com Compliance incorpore mais firmemente o ESG na cultura e governança corporativa. Se assim for, isso seria uma vitória para os defensores do ESG preocupados com isso. O ESG pode ficar em segundo plano se ficar menos na moda com a multidão de Davos”2.

Realmente, faz sentido o ESG estar atrelado à Compliance – ou ao jurídico. Como sabemos, Compliance é, dentre outras coisas, o guardião dos Códigos de Ética nas corporações. O jurídico também e, além disso, é a última palavra no direito (que, aliás, é o guardião da moral em uma sociedade). Ambos estão em todas as discussões delicadas que envolvem temas relacionados ao ESG. Pois bem. Strine, Smith e Steel afirmam que: “[o] conselho, os administradores e os conselheiros da empresa devem identificar como a empresa ganha dinheiro e as partes interessadas que ela afeta ao fazê-lo”.3

Para tanto, eles obviamente precisam interagir com o jurídico e Compliance. Em sua proposta de road map para a questão, os autores aduzem o seguinte: “[o] método a que nos referimos envolve um reconhecimento simples, mas importante, de que os planos de Compliance e ESG da empresa não devem ser separados, mas idênticos, e que o trabalho de implementação desse plano singular deve ser alocado de forma sensata e consistente na administração da empresa e nos comitês do conselho. Ou seja, se uma corporação já mantém uma política de conformidade completa e ponderada, a corporação tem um forte começo em direção a uma sólida política de ESG”.4

O trecho acima, aliás, pode ser analisado sob o aspecto da Análise Econômica do Direito. Alocar o ESG em conjunto com o jurídico ou Compliance é uma forma de ganhar eficiência. A missão ESG está intimamente relacionada as rotinas que já são adotadas por pelos dois departamentos. Logo, faz mais sentido isso do que colocar em Finanças, Marketing, Relações Governamentais, Relações Corporativas e outros. Não fosse só isso, agregar ao Jurídico ou a Compliance é um excelente indicativo de que a companhia está levando ESG a sério, ao invés de fazer greenwashing.

Obviamente, diante da multidisciplinariedade das questões ESG, o jurídico ou Compliance não poderão fazer o trabalho sem colaboração e recursos. Os departamentos precisarão de mais verbas e do apoio da alta administração, inclusive criando mecanismos para que as demais áreas colaborem com eles. Isso tudo, inclusive, servirá como instrumentos fundamentais para alinhar os discursos ESG das empresas às práticas, reduzindo o risco de que interesses individuais se sobreponham à missão, aos códigos de ética e ao discurso de sustentabilidade da empresa.

A questão fundamental é que o “G” (de ESG), que diz respeito à governança, deverá ser um dos pontos chave para encontrar o caminho mais adequado para que a sustentabilidade seja tratada de forma séria. Só com isso será possível alinhar incentivos econômicos e a relação agente-principal. A gestão das empresas, portanto, terá papel dominante sobre a questão. Por isso é importante se ter em vista que o alinhamento dos discursos e dos códigos de ética à prática do dia a dia é um dever fiduciário dos administradores, como apresentei em outro artigo sobre o tema. A responsabilidade decorrente disso será um nudge importante para que as empresas tratem ESG de forma adequada, e não como mero instrumento de marketing.

Vejamos um caso concreto. Uma grande multinacional anunciou que seu ESG estaria no guarda-chuva corporativo de Corporate Affairs. Será que isso seria adequado? Parece que não. Confira-se a descrição de Governamental Affairs constante do site da conhecida empresa de consultoria Vittore Parteners:

“CORPORATE AFFAIRS
Relações Governamentais e Institucionais
O Brasil tem ganhado cada vez mais destaque frente ao cenário econômico mundial, o que reforça a importância das decisões ligadas aos negócios das empresas e de suas relações com o governo. Os recentes acontecimentos políticos e escândalos de corrupção no país tem evidenciado a necessidade de profissionais mais bem preparados (as) para a área.
Cada vez mais, as relações com o Governo (Executivo e Legislativo), Órgãos Reguladores e Entidades de Classe, ganham importância na estratégia das empresas que buscam profissionais capazes de representar e defender seus interesses de maneira transparente, estratégica e efetiva.
Comunicação
Outra área de grande importância e fundamental para a construção de uma reputação positiva de qualquer corporação. Seja ela interna ou externa, a comunicação ajuda a transmitir valores corporativos, estratégias de negócio e promover discussões importantes para um determinado mercado. Além disso, ela engaja todos os Stakeholders de uma companhia, já que garante um diálogo de mão dupla entre eles.
São profissionais que chegam para promover o discurso corporativo de maneira transparente, direta e efetiva, gerando visibilidade para os diferenciais da empresa e da sua atuação.
Sustentabilidade e Responsabilidade Social
Com a crescente conscientização de toda a sociedade em causas ambientais e sociais, é de extrema importância que uma empresa esteja atenta e invista em projetos que promovam um impacto no ambiente na qual ela está inserida.
Atualmente, o (a) profissional dessa área é de grande valia para as empresas, já que se trata de um tema que tem sido visto como diferencial para consumidores, por exemplo. Quando feita de maneira estratégica, apoia na construção da imagem corporativa e gera valor para sociedade, meio-ambiente e mercado. Por isso, entender e escolher corretamente o (a) profissional para gerenciar a área de Sustentabilidade e Responsabilidade Social é crucial para garantir o sucesso desses projetos e o crescimento sustentável da empresa.”

Observe-se, toda a descrição é de atividades voltadas para a promoção da empresa. Não se está falando, em momento algum, em ética e cumprimento de normas jurídicas, e.g., que são inerentes ao ESG. Corporate Affairs é uma função relevantíssima, mas que não tem o incentivo econômico para levar a empresa a praticar efetivamente a agenda ESG.

Diante disso, acredito que o ESG poderia ficar em um grupo que fosse coordenado por jurídico e Compliance. Ambos teriam a capacidade e as condições técnicas para promover as políticas ESG, com foco em reduzir o risco de conflitos entre discurso e prática. Deve caber ao jurídico e/ou a Compliance, por exemplo, verificar, inclusive, se as comunicações de Corporate Affairs e outras áreas estão adequadas às práticas efetivas da companhia, seguindo uma receita que já apresentei. Só assim conseguiremos evitar os riscos do greenwashing, que pode ser visto, inclusive, como propaganda enganosa.

_____

Strine, Leo E. Jr.; Smith, Kirby M.; and Steel, Reilly S., "Caremark and ESG, Perfect Together: A Practical Approach to Implementing an Integrated, Efficient, and Effective Caremark and EESG Strategy" (2021). Faculty Scholarship at Penn Law. 2196. Original em inglês: “To the extent that EESG embraces the responsibility to engage in ethical, safe, and non-deceptive conduct toward company customers, it also overlaps with Compliance” (pág. 1.906).

2 Ob. Cit Original em Inglês: “To the extent that establishing processes to consider EESG and Compliance together has the potential to make EESG more durable, this should also appeal to those who advocate EESG as a means of redressing social inequities and other shortcomings of our legal and political system. It seems plausible that setting a routinized process for considering EESG together with Compliance will more firmly embed EESG within corporate culture and governance. If so, that would be a victory for EESG advocates concerned that. EESG may take a back seat if it becomes less fashionable with the Davos crowd” (pág. 2.021).

3 Ob. Cit. Original em inglês: “The company’s board, management, and advisors should identify how the company makes money, and the stakeholders it affects in doing so” (pág. 1.910).

4 Ob. Cit. Original em inglês: “The method we refer to involves the simple but important recognition that the company’s Compliance and EESG plans should not be separate, but identical, and that the work of implementing that singular plan should be allocated sensibly and consistently across company management and across the board’s committee structure itself. That is, if a corporation already maintains a thorough and thoughtful Compliance policy, the corporation has a strong start towards a solid EESG policy” (pág. 1.905).

Leonardo Correa
Sócio de 3C LAW | Corrêa, Camps & Conforti, LL.M pela University of Pennsylvania

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