Migalhas de Peso

Irrazoável aumento do IPTU de São Paulo

A variação do índice do INPCA no ano de 2021 foi de 10,06%, donde a ilegalidade daqueles lançamentos que desobedeceram ao princípio da vinculação da administração a seus próprios atos.

3/3/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

O pacotaço tributário decretado pela polivalente lei 17.719, de 26/11/21 que, entre outras coisas, altera a base de cálculo do ISS das SUPs e aumenta os valores unitários do metro quadrado da construção e de terrenos representa um verdadeiro tsunami tributário. Está eivado do vício incurável da inconstitucionalidade como veremos a seguir.

A inovação da base de cálculo do ISS dos profissionais liberais e das sociedades por eles formadas já foi objeto de artigo específico anteriormente divulgado.

Examinaremos neste artigo a absurda elevação do IPTU, mediante utilização de critérios casuísticos e arbitrários e em afronta ao princípio da vinculação da administração a seus próprios atos.

A lei 15.889, de 5/11/13, procedeu à atualização exacerbada dos valores unitários de metro quadrado da construção e do terreno previstos na lei 10.235/86 (lei da PGV).

A Fiesp, a Fecomércio e a Associação Comercial ajuizaram Ação Direta de Inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça que concedeu a medida liminar para impedir o aumento. A Fiesp foi por nós representada, a Fecomércio, por Ives Gandra da Silva Martins e a Arrecadação Comercial, pelo Gastão Alves de Toledo.

Mediante o compromisso da Prefeitura de que iria dispensar a cobrança do aumento do IPTU no exercício de 2014 e da aplicação da trava de 10% e 15% para imóveis residenciais e imóveis não residenciais, respectivamente, a partir do ano de 2015 a medida liminar foi revogada.

O art. 9º dessa lei dispõe:

“Art. 9º A diferença nominal entre o crédito tributário total do IPTU do exercício do lançamento e o do exercício anterior fica limitada:

 I – no caso de imóveis com utilização exclusiva ou predominantemente residencial, a 20% (vinte por cento) para fatos geradores ocorridos no exercício de 2014 e a 10% (dez por cento) para fatos geradores ocorridos nos demais exercícios;

 II – nos demais casos, a 35% (trinta e cinco por cento) para fatos geradores ocorridos no exercício de 2014 e a 15% (quinze por cento) para fatos geradores ocorridos nos demais exercícios.”1

Porém, em 2015, o astuto legislador editou a lei 16.272, de 30-9-2015, alterando a redação do art. 9º da lei 15.889/13 acrescentando-lhe os §§ 4º e 5º:

“§ 4º Para fatos geradores ocorridos a partir do exercício de 2016, o disposto no “caput” deste artigo:

I – não será aplicado no caso de imóveis considerados não construídos;

II – será aplicado exclusivamente para cálculo do Imposto Predial no caso de imóveis construídos para os quais conste excesso de área.

§ 5º O disposto no § 4º deste artigo não será aplicado para os imóveis:

I – em que existam obras paralisadas ou em andamento, devidamente licenciadas, na forma que dispuser o regulamento

II – cuja área total de terreno seja inferior a 500m² (quinhentos metros quadrados).”

A lei 15.889/13, em sua redação original, determinou a redução do valor do IPTU na eventualidade de a aplicação das alíquotas sobre as bases de cálculos apuradas segundo  os valores unitários do metro quadrado da construção e do terreno previstos na PGV superar o limite de 10% e de 15%, respectivamente, para imóveis residenciais e imóveis não residenciais/terrenos do IPTU pago no exercício anterior. Assim, o legislador pôs um freio à valorização inflacionária do imóvel sabido que a valorização real fica bem aquém daquela.

De fato, em época de inflação aguda a aplicação dos fatores de atualização pelos índices de variação do IBGE, do INPC, do INPCA etc. conduziria certamente a um valor estratosférico, sem respaldo na realidade sobre a qual incidem as normas jurídicas de tributação. Sabemos que na década de 80 tivemos a inflação de mais de 50% ao mês, o que fazia dobrar o valor do imóvel a cada dois meses.

Contudo, a lei 16.272 de 30/9/15 alterou a redação do art. 9º da lei 15.889/15, mediante acréscimos dos §§ 4º e 5º,  como se viu.

Todavia, em caráter excepcional, para os exercícios de  2022, 2023 e  2024 colocou uma trava representada pelos índices de variação do INPCA do exercício anterior, como se verifica dos §§ 6º a 8º:

“§ 6º Excepcionalmente os lançamentos efetuados nos exercícios de 2022, 2023 e 2024 ficam limitados à variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo - IPCA no exercício anterior, conforme última estimativa do Banco Central do Brasil disponível no dia 15 de dezembro do exercício da medição, e limitados a no máximo a 10% (dez por cento) da diferença nominal entre o crédito tributário total do IPTU do exercício do lançamento e o do exercício anterior.

§ 7º O limite de que trata o § 6º deverá ser único para todos os imóveis.

§ 8º Caso a variação do IPCA, calculada nos termos do § 6º, seja superior ao limite previsto no caput, aplicar-se-á o referido limite." (NR)

Pois bem, a Prefeitura contornou a trava de 10%, ao mesmo tempo em que ignorou a trava representada pelos índices de variação do INPCA, conforme demonstraremos.

O legislador, para driblar a aplicação das traves, usou e abusou de fatores casuísticos e aleatórios, como se verifica dos §§ 4º e 5º, que extrapolam os limites da discricionariedade do legislador para descambar para a ostensiva arbitrariedade legislativa, afrontando o princípio da razoabilidade que limita a ação do legislador.

Dispôs que a partir de 2016 não se aplica a trava em relação a imóveis não construídos (inciso I, do § 4º), sujeitos aos mesmos efeitos inflacionais dos imóveis edificados. O objetivo seria o de forçar a edificação para conferir função social à propriedade? A resposta é não, pois, aplica-se a trava  em relação a imóveis construídos com excesso de área (inciso II, do§ 4º), isto é, favorece imóveis edificados com infração legal.

E mais, aplica-se a trava em relação a imóveis “em que existam obras paralisadas ou em andamento, devidamente licenciadas, na forma que dispuser o regulamento” (inciso I, do § 5º). E aplica-se, também, a trava para imóveis não construídos de área inferior a 500ms2 (inciso II, do  § 5º), conflitando com o inciso I, do § 4º que não admite a trava para imóveis não edificados.

Com relação ao inciso I cumpre lembrar a noção elementar do princípio da legalidade: a aplicação ou não da trava não pode ser delegada ao ato do  Executivo.

Qual, afinal, o critério utilizado pelo legislador para aplicar a trava em um caso e não aplicar em outro caso? O legislador não aponta, nem se descobre!

Não se trata de conferir ao IPTU finalidade ordinatória, pois, nesse caso é difícil de entender a redução do imposto para as hipóteses de construções paralisadas e de edificações feitas com infração legal (área construída superior ao limite permitido pela lei de Uso e Ocupação do Solo Urbano).

Ainda que se argumente que a inaplicação da trava do IPTU como prevista na lei 16.272 de 30/9/15 visou objetivos ordinatórios, o que não é verdade como se demonstrou, o argumento não se sustenta. Senão vejamos.

Após o advento da EC 29/00 a intervenção do Município na propriedade urbana por meio de instrumento tributário ficou adstrita à hipótese específica prevista no art. 182, § 4º, inciso II da CF (tributação progressiva no tempo). Desapareceu a tributação progressiva para conferir, de forma genérica, a função social à propriedade urbana, como constava do § 1º, do art. 156 da CF em sua redação original:

“Art. 156 Compete aos Municípios instituir impostos sobre:

I – propriedade predial e territorial urbana

[...]

§ 1º O imposto previsto no inciso I poderá ser progressivo, nos termos da lei municipal, de forma a assegurar o cumprimento da função social da propriedade”.

Entretanto, a EC 29/00 substituiu essa progressividade extrafiscal pela progressividade fiscal fundada no valor imóvel, como segue:

“Art. 156 Compete aos Municípios instituir impostos sobre:

I – propriedade predial e territorial urbana

[...]

§ 1º Sem prejuízo da progressividade no tempo a que se refere o art. 182, § 4º, inciso II, o imposto previsto no inciso I poderá:

I – ser progressivo em razão do valor do imóvel; e

II – ter alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel”.

Evidente, pois, que o § 1º em sua nova redação está se referindo apenas à progressividade fiscal em função do valor do imóvel ancorando-se no § 1º do art. 145, § 1º da CF (graduação segundo a capacidade contributiva  do contribuinte).

Para afastar as discussões a respeito o STF editou a súmula 668:

“É inconstitucional a lei municipal que tenha estabelecido, antes da EC 29/2000, alíquotas progressivas, salvo se destinada a assegurar o cumprimento da função social da propriedade urbana”.

Essa Súmula deixa claro que antes da EC 29/00 era permitida apenas a tributação ordinatória do IPTU. Após a EC 29/00 somente restou a progressividade extrafiscal do art. 182, § 4º, II da CF.

Logo, o que existe no geral é apenas o IPTU de natureza arrecadatória. Em sendo assim o aspecto quantitativo do IPTU deveria variar tão somente em função do valor da propriedade imobiliária construída ou não, de dimensões grandes ou pequenas, com ou sem construções paralisadas, e, com ou sem excesso de áreas construídas.

A forma de aumentar a arrecadação do IPTU segundo as disposições dos parágrafos 4º e 5º, do art. 9º da lei 15.889/13 acrescidos pela lei 16.272/15 é arbitrária, ofendendo, às escâncaras, o princípio da razoabilidade que se coloca como um limite imposto à ação do próprio legislador. A final, qual a razão para aplicar a trava para imóveis com construções paralisadas? ou aqueles construídos com excesso de área? Por que vedar a trava para terrenos em geral e excetuar aquele com área inferior a 500 ms2?

Para se ter uma ideia da absurda carga tributária de um exercício para outro ilustremos com um caso concreto trazido por um cliente nosso, proprietário de três lotes de terrenos contíguos:

a) imóvel não construído – Contribuinte X

Área do terreno

IPTU de 2021

IPTU de 2022

Aumento

28.260 ms2

16.902,00

123.212,50

729%

b) imóvel não construído – Contribuinte Y

Área do terreno

IPTU de 2021

IPTU de 2022

Aumento

14.780 ms2

5.967,00

47.809,80

801%

c) imóvel não construído – Contribuinte Z

Área do terreno

IPTU de 2021

IPTU de 2022

Aumento

15.400 ms2

11.862,20

89.340,00

753%

Por meio de simples exame ocular verifica-se a falta de proporção nos lançamentos das letras b e c. Por causa de uma diferença de área de apenas 620 ms2 (15.400 ms2 – 14.780 ms2) o valor do IPTU do imóvel c quase que dobrou (89.340,00 contra 47.809,80 do imóvel b). Desatende ao elementar princípio da proporcionalidade.

Esses aumentos de 729%, 801% e 753%, respectivamente, para os imóveis a, b e c, de um ano para outro não encontra explicação no princípio da razoabilidade considerando que o IPCA acumulado no exercício de 2021 foi de apenas 10,06%.

A taxa de crescimento do PIB brasileiro, por sua vez, nos últimos cinco anos foi de: 2017 = 1%; 2018 = 1,8%; 2019 = 1,2%; 2020 = 3,9%; e 2021 = 4,5%.

Qual a mágica utilizada pela Prefeitura paulistana para aumentar o IPTU em mais de 750% de 2021 para 2022?

Não guarda qualquer proporção com qualquer parâmetro comparativo que se possa imaginar.

Patente o efeito confiscatório do IPTU vedado pelo art. 150, IV da Constituição, pois, em poucos anos o valor da propriedade será absorvido pelo valor do imposto.

Segundo Pedro Lenza“a razoabilidade e a proporcionalidade das leis e atos do Poder Público são inafastáveis, considerando-se que o Direito tem conteúdo justo”. E prossegue:

“Como parâmetro podemos destacar a necessidade de preenchimento de três importantes requisitos:

necessidade: por alguns denominada exigibilidade, a adoção da medida que possa restringir direitos só se legitima se indispensável para o caso concreto e não se puder substituí-la por outra menos gravosa;

adequação: também denominada pertinência ou idoneidade, quer significar que o meio escolhido deve atingir o objetivo perquerido;

proporcionalidade em sentido estrito: em sendo medida necessária e adequada, deve-se investigar se o ato praticado, em termos de realização do objetivo pretendido, supera a restrição a outros valores constitucionalizados. Podemos falar em máxima efetividade e mínima restrição.

A cláusula do substantive due processo of law permite que o Poder Judiciário controle os atos do Poder Legislativo, bem como a discricionariedade dos atos do Poder Público, procedendo-se ao exame da razoabilidade e da proporcionalidade das normas jurídicas.

Cai como uma luva, no presente caso, o trecho da decisão proferida pelo C. STF na ADIn 2667/MC, tendo como Relator o Ministro Celso de Mello, publicada no DJ de 12-03-2004, pp. 00036, em que se lê:

“TODOS OS ATOS EMANADOS DO PODER PÚBLICO ESTÃO NECESSARIAMENTE SUJEITOS, PARA EFEITO DE SUA VALIDADE MATERIAL, À INDECLINÁVEL OBSERVÂNCIA DE PADRÕES MÍNIMOS DE RAZOABILIDADE. - As normas legais devem observar, no processo de sua formulação, critérios de razoabilidade que guardem estrita consonância com os padrões fundados no princípio da proporcionalidade, pois todos os atos emanados do Poder Público devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do “substantive due process of law”. Lei Distrital que, no caso, não observa padrões mínimos de razoabilidade. A EXIGÊNCIA DE RAZOABILIDADE QUALIFICA-SE COMO PARÂMETRO DE AFERIÇÃO DA CONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DOS ATOS ESTATAIS. - A exigência de razoabilidade - que visa a inibir e a neutralizar eventuais abusos do Poder Público, notadamente no desempenho de suas funções normativas - atua, enquanto categoria fundamental de limitação dos excessos emanados do Estado, como verdadeiro parâmetro de aferição da constitucionalidade material dos atos estatais.”

Os lançamentos efetuados pela Prefeitura com base nos §§ 4º e 5º, do art. 9º da lei 15.889/13 com as alterações da lei 16.272/15 não se harmonizam com o princípio da razoabilidade pela simples razão de que não há regra jurídica objetiva para aumentar ou diminuir o aspecto quantitativo do IPTU.

Ao que tudo indica o legislador calculou primeiramente quanto quer arrecadar de IPTU para compensar as despesas extraordinárias decorrentes da pandemia, e ao depois aplicou os §§ 4º e 5º, do art. 9º da lei 15.889/13 que existem desde o advento da lei 16.272/15, mas, que não vinham sendo aplicados por afrontarem o princípio da razoabilidade.

Não bastasse a violação do princípio da razoabilidade, conferindo ao IPTU efeito de confisco vedado elo art. 150, IV da CF, os lançamentos examinados violaram os termos da própria lei 17.719/21 que limitou excepcionalmente o aumento do IPTU dos exercícios de 2022, 2023 e 2024 à variação dos índices do INPCA, conforme se verifica dos §§ 6º a 8º do art. 9º da lei 15.889/13 de início transcritos.

Como vimos, a variação do índice do INPCA no ano de 2021 foi de 10,06%, donde a ilegalidade daqueles lançamentos que desobedeceram ao princípio da vinculação da administração a seus próprios atos.

Pela aplicação da variação do índice do INPCA de 2021 de 10,06% os impostos dos três imóveis retromencionados deveriam ser de R$ 18.602,34 (letra a), R$ 6.567,28 (letra b) e R$13.055,53, respectivamente, e não R$123.212,50, R$ 47.809,80  e R$ 89.340,00, resultando em fantástica diferença a maior de R$ 104.610,16, R$ 41.242,52 e R$ 76.284,47, respectivamente.

Daí a ilegalidade e inconstitucionalidade dos lançamentos do IPTU do exercício de 2022 pelo duplo fundamento aqui aduzido.

__________

1 A lei 17.719/2021 mediante sutil alteração do art. 9º da lei 15.889/15 fez desaparecer a trava de 15%  para imóveis não residenciais/terrenos, mantendo a trava  a 10% para todos os imóveis residenciais ou não, construídos ou não.

Direito Constitucional Esquematizado - 14ª ed. - São Paulo - Saraiva - 2010 - pp. 793-794.

Kiyoshi Harada
Sócio do escritório Harada Advogados Associados. Especialista em Direito Tributário pela USP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário - IBEDAFT.

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