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Reflexões sobre algumas das alterações ao regulamento do Código de Mineração

O decreto 10.965/22 alterou diversos pontos do decreto 9.406/18 e, sim, há progressos, mas principalmente burocratizações e omissões. Mas, se gerou impactos, por que não fomos ouvidos dessa vez?

24/2/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Em 2018 foi publicado um novo regulamento (Decreto 9.406/18) para o Código de Mineração (Decreto-lei 227/67), revogando o mofado texto que vigorava desde os tempos da Jovem Guarda (Decreto 62.934/68).

O decreto 9.406/18 foi um texto dentro do possível, elaborado com a participação do setor1, uma vez que decorreu da frustrada tentativa do Governo Temer em reformar a lei ordinária (Código de Mineração), através Medida Provisória 790/17, que caducou.

Fez-se então um texto que (excessos à parte) dinamizava de maneira mais lógica a compreensão dos regimes autorizativos da atividade de mineração e seus respectivos procedimentos, em contraposição à redação hermética do decreto-lei 227/67.

Ocorre que, o regulamento não poderia trazer inovações jurídicas para além do Código – embora tenha feito –, o que deixou o então governo com um sabor de derrota parcial no seu intento de reformular a legislação mineral (ainda que, na mesma época, tenha conseguido criar a própria Agência Nacional de Mineração – ANM).

Não seria ocioso lembrar que, antes do Governo Temer, sua antecessora propôs um Marco Regulatório da Mineração (PL 5.807/13) para refundar o Código de Mineração, que não foi adiante.

Já no curso do atual governo, em junho de 2021, através de Ato do Presidente Arthur Lira2, foi instituído na Câmara dos Deputados um Grupo de Trabalho (GT) destinado a propor alterações no decreto-lei 227/67. O relatório3 foi apresentado em 1 de dezembro de 2021 e não se tem notícias de avanços nesta recém iniciada legislatura de ano eleitoral.

Pois bem, na semana passada o atual governo fez publicar o decreto 10.965, no dia 14 de fevereiro de 2022, que promoveu diversas alterações na redação desse regulamento, vamos a algumas delas.

  1. Guia de utilização: um aceno positivo, mas a inovação ilegal permanece

A Guia de Utilização (GU) é um ato administrativo que permite a exploração de recursos minerais e pode ser expedida, no contexto de um procedimento minerário, antes da concessão definitiva do título minerário autorizativo de exploração mineral, a portaria de lavra.

Em que pese a GU não gozar do status de título minerário, é sabido que grande parte dos empreendimentos minerários do país operam com base nessa, o que se justifica em razão da fragilidade estrutural da ANM, que compromete o tempo das respostas a toda sorte de requerimentos, pior ainda no caso de títulos de lavra.

Não há dúvidas da importância esse instituto para o setor e para a própria União e demais entes federados, que arrecadam através de atividades que se desenvolvem com base nesse expediente.

Ocorre que, mesmo nos processos em que que já houve outorga de GU, a concessão da portaria de lavras pode levar décadas.

Logo, é alvissareira a previsão do parágrafo único do art. 4º de que a “ANM estabelecerá critérios simplificados para análise de atos processuais e procedimentos de outorga”, nas hipóteses de empreendimentos de pequeno porte ou de aproveitamento das substâncias minerais enumeradas no art. 1º da lei 6.567/78.

Agora é cobrar essa regulamentação, que deve ter ampla participação pública.

Por outro lado, o decreto 10.965/22 foi omisso em alterar (ou corrigir) uma falha ainda presente no Decreto 9.406/18, e explico. O parágrafo único do art. 24 do regulamento, ao disciplinar a GU, acabou criando uma verdadeira insegurança jurídica para o minerador em relação à continuidade de sua lavra e abastecimento do mercado, pois limita o número de vezes de prorrogação desse ato, e o seu respectivo prazo máximo. Trocando em miúdos, estabelece que as explorações com base em GU terão, na melhor das hipóteses, seis anos, tempo que a experiência mostra que não se conclui um processo minerário com a definitiva outorga da concessão de lavra.

Essa limitação do parágrafo único não encontra amparo em lei, é uma inovação em relação ao Código de Mineração. Se por um lado, a lei ordinária possibilita a exploração mineral através de GU, sem restrições, por outro, um decreto fixa limites. A meu ver, isso é uma ilegalidade que deveria ter sido reparada e que em nada assegura desburocratização ou exercício de liberdades econômicas.

  1. A sobreposição de especialidades: gestão do patrimônio mineral x gestão ambiental

Em diversos pontos do regulamento se vê que medidas de controle ambiental estão presentes na norma que disciplina a gestão do patrimônio mineral.

São coisas distintas e que não deveriam ser misturadas, sob pena de gerar uma sobreposição de competências e frustrar (novamente) a segurança jurídica, destinando incumbências à ANM que não são de sua praxe, ferindo de morte o critério da especialização, uma vez que o controle ambiental deve ser exercido apenas por técnicos de órgãos integrantes do Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA).

A ANM gere um patrimônio da União, que são os recursos minerais. A gestão ambiental é feita por órgão técnicos especializados, que podem estar em qualquer uma das três esferas federativas.

Por sinal, a ANM já havia desvinculado suas competências de gestão de bem mineral da dos processos de licenciamento ambiental, quando editou a resolução 37/204, o que demonstrou um passo importante para dar autonomia aos ritos de outorga mineral e controle ambiental. Ao contrário das Resoluções CONAMA 9 e 10, ambas de 1990, que atrelam tais ritos, a ANM garantiu que a concessão de Guia de Utilização transcorra sem grandes intersecções com o procedimento relacionado ao meio ambiente.

É importante que se diga que não se trata de afrouxamento de regras ou ignorar a legislação ambiental, a sua observância estará assegurada, mas só pelo órgão que tenha competência, e não por quem não teria essa expertise.

Pois bem, o decreto 9.406/18 traz em si disciplinas em matéria ambiental, a exemplo do art. 5º, §2º e incisos e §4º e do art. 34, XXI, XXIII e XXIV.

Especificamente, faço duas críticas. Primeiro ao termo “desastre ambiental”, presente nos arts. 5º, §2, III e 34, XXIII, impondo ao minerador a responsabilidade em preveni-los.

Ora, isso é temerário, pois, muito embora a origem dos desastres ambientais possa ser antrópica, ela também pode advir de um desastre natural e a norma não fez essa distinção.

Por definição, com base no art. 2º do decreto 5.113/14, desastres naturais são eventos decorrentes de fenômenos da natureza, muito deles imprevisíveis (terremotos, furacões, etc) e/ou extremos e raros (chuva muito intensa, por exemplo).

Não há como responsabilizar os mineradores por desastres ambientais decorrentes de desastres naturais, o que se poderia fazer, com razoabilidade e proporcionalidade, é determinar controles para mitigar as consequências dos desastres naturais afim de evitar desastres ambientais, mas no contexto do processo de licenciamento ambiental, e não do de outorga de títulos minerários.

Em segundo lugar, por fim, tenho severas restrições à redação do §4º do art. 5º, que prevê:

Art. 5º [...]

[...]

§ 4º  As obrigações e as responsabilidades do titular da concessão ficam mantidas até o fechamento da mina, cujo plano será aprovado pela ANM e pelo órgão ambiental licenciador.

Ora, o plano de fechamento da mina não deveria ter que ser aprovado por dois órgãos distintos, mas apenas pela ANM. Isso porque, no órgão ambiental licenciador já haverá um outro estudo, que é o plano de recuperação de área degradada (PRAD), que pode tratar de aspectos relacionados ao fechamento da mina, mas não é um plano com esse mister. Sendo assim, mais uma vez especialidades são entrelaçadas sujeitando o administrado a arbitrariedades.

  1. A extinção das penas administrativas e aprovações tácitas

Na seção das infrações administrativas, o regulamento do código teve sensível alteração pois, ao revogar os arts. 55 ao 69, cria uma situação curiosa do ponto de vista do direito intertemporal.

Isso porque, tais artigos preveem infrações e suas respectivas penas, ao revogá-los, perdem eficácia e os atos administrativos (autos de infração) expedidos com fundamento nesses artigos podem ser impactados pela retroatividade benigna e anulados, resguardada a cautela de avaliar caso a caso.

Criou-se um limbo que pode vir a afastar sanções.

Outro ponto que merece destaque é a aprovação tácita prevista.

Como já pude afirmar em outras oportunidades, uma das maiores causas de judicialização do setor mineral é a letargia nas respostas e análises a requerimentos e estudos apresentados nos processos administrativos em trâmite na ANM. Por sua vez, em obediência à Declaração de Direitos de Liberdade Econômica (lei 13.874/19), que assegurou a fixação de prazos aos administrados, a ANM publicou a resolução 22/20 (31 de janeiro de 2020), que fixou prazos para resposta a alguns requerimentos.

Entretanto, essa resolução não contemplou prazo de resposta para requerimentos a títulos de lavra ou atos que permitem a atividade minerária. Por sua vez, o decreto 10.965/22 (art. 39, §§ 1º ao 3º) possibilitou a aprovação tácita caso a ANM não observe o prazo de sessenta dias para o registro da licença expedida por município para o regime de aproveitamento mineral “licenciamento” (não se confunde com licenciamento ambiental, tem só o nome parecido), criado pela lei 6.567/78.

A aprovação tácita também será possível no caso de aditamento de novas substâncias ao título minerário, outro ponto digno de satisfação.

  1. Breve conclusão

Como se vê, as alterações (e omissões) trazidas pelo decreto 10.965/22 geram impactos relevantes, não só aos mineradores, mas a toda sociedade e ainda produzem controvérsias jurídicas que poderiam ser evitadas.

Em que pese alguns desses impactos serem positivos, há também muitos reflexos negativos, por isso teria sido proveitoso e prudente se essas modificações tivessem sido submetidas à participação popular, a teor Declaração de Direitos de Liberdade Econômica (art. 5º, 13.974/19) e decreto 10.411/20, que foi parcialmente observada, ao contrário do que foi divulgado pelo governo5.

__________

1 Em 2018, houve plena participação popular. Eu estive lá. http://antigo.mme.gov.br/web/guest/servicos/consultas-publicas?p_p_id=consultapublicammeportlet_WAR_consultapublicammeportlet&p_p_lifecycle=0&p_p_state=normal&p_p_mode=view&p_p_col_id=column-1&p_p_col_count=1&_consultapublicammeportlet_WAR_consultapublicammeportlet_view=detalharConsulta&resourcePrimKey=520254&detalharConsulta=true&entryId=520256

2 O ato de criação: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/grupos-de-trabalho/56a-legislatura/gt-codigo-de-mineracao-decreto-lei-227-67/conheca-a-comissao/criacao-e-constituicao/ato-de-criacao

3 Cheguei a comentar sobre o assunto em artigo publicado no site do Migalhas: https://www.migalhas.com.br/depeso/268344/anm--o-que-muda-com-o-relatorio-da-medida-provisoria-791-17

4 Art. 107. A eficácia da GU ficará condicionada à obtenção de licença ambiental ou documento equivalente.

§ 1º A licença ambiental ou documento equivalente deverá:

I - mencionar a(s) substância(s) contempladas pela GU;

II - estar no nome do titular da Guia; e

III - ter validade compatível com a GU.

§ 2º O início da vigência da GU coincidirá com a data de outorga do licenciamento.

§ 3º O titular da GU deverá apresentar à ANM a licença ambiental ou documento equivalente dentro de 10 (dez) dias, contados a partir da emissão desta última, sob pena de cancelamento da Guia.

§ 4º A realização de lavra sem a devida licença ambiental ou documento equivalente, ainda que nos termos da GU, será considerada lavra ilegal, inclusive para fins de caracterização do crime de usurpação, nos termos do art. 2º da Lei 8.176/1991.

5 A divulgação oficial aduz que “Decreto presidencial aprimora o Código de Mineração”, acesse: https://www.gov.br/mme/pt-br/assuntos/noticias/decreto-presidencial-aprimora-o-codigo-de-mineracao

Victor Athayde Silva
Sócio de David e Athayde Advogados.

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