Migalhas de Peso

Contra a anti-suit injuction

Negar o uso da jurisdição por meio de outro jurisdição é de um contrassenso terrível, prejudicial à própria dignidade da Justiça e ao garantismo que se anela à cidadania.

11/2/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

O casamento entre o Direito dos Seguros e o Direito dos Transportes é fecundo em polêmicas e complexidades. Elas se aprofundam ainda mais quando do Direito dos Transportes se abre espaço para Direito Marítimo.

Os litígios entre seguradores e armadores (transportadores marítimos) são especialmente pródigos. Depois de indenizar segurados por danos nas cargas (faltas ou avarias), os seguradores se sub-rogam nos seus direitos e ações, buscando em regresso o ressarcimento daquele que gerou o prejuízo; no caso de um transporte mal-feito, o transportador.

Essa busca pelo reembolso da indenização de seguro se reveste de máxima dignidade, que se faz marcar pelo selo social e se faz representar por um ato de lealdade ao colégio de segurados. Nem poderia ser diferente, já que à toda sociedade interessa manter saudável o negócio de seguro e efetivamente punir os causadores de danos.

Em um mundo marcado por atividades de riscos, no qual se defende com ardor o direito de ninguém ser vítima de dano, mostra-se imperioso o exercício da reparação civil ampla e integral.

Qualquer ato que tenha por objetivo esvaziar ou, mesmo, prejudicar a amplitude da reparação civil tem que ser considerado antijurídico, senão ofensivo à ordem moral. Reparar danos não é opção, porém dever, daqueles que integram o rol dos comportamentos éticos.

Receber a devida reparação pelo dano sofrido é o mínimo que se pode oferecer à vítima, seja a direta ou aquela que assume essa condição em razão do Direito. Daí a importância de se defender, sempre, as reparações civis e os ressarcimentos em regresso.

Um dos temas polêmicos no cenário atual do Direito dos Seguros e do Direito Marítimo é a anti-suit injunction.

Trata-se, grosso modo, de medida inibitória ao exercício do direito de ação em um país por conta da existência de cláusula de arbitragem ou de foro estrangeiro em contrato internacional.

Em si mesma é uma aberração jurídica, já que sua existência fere de morte garantia fundamental constitucional de acesso à jurisdição, que é, mais do que tal, um direito fundamental. Um dos mais importantes direitos humanos, o de ter questão apreciada por juiz imparcial. Direito fundamental que também se aplica às pessoas jurídicas.

No caso do contrato internacional de transporte marítimo de carga, o exercício da anti-suit injunction se mostra ainda mais teratológico porque a cláusula de arbitragem ou de eleição de foro estrangeiro não é, a rigor, negociada prévia, livre e expressamente entre as partes, mas imposta unilateralmente pelo transportador.

Sem essa manifestação formal e desimpedida de vontade não há que se falar em validade e eficácia da cláusula, mas em sua natureza manifestamente abusiva, portanto, em ineficácia, invalidade, senão nulidade de pleno direito. Situação sobremodo agravada quando o protagonista da busca da reparação deixa de ser o dono da carga e passa a ser o segurador sub-rogado.

Isso porque o segurador sequer é parte do contrato de transporte e a natureza impositiva, arbitrária, da cláusula se avoluma, numa espécie de bis in idem ainda mais traumático e inglório do que o tributário.

Não existe renúncia tácita à garantia fundamental de acesso à jurisdição, tampouco arbitragem ou eleição de foro estrangeiro sem a voluntariedade da parte. Ninguém pode ser privado de defender seu direito perante um juiz. Pessoa alguma pode ser obrigada à arbitragem ou, mesmo, ao magistrado que não é o natural, por força de disposição contratual com que não anuiu prévia e formalmente.

Curioso como algo tão óbvio – daquelas obviedades que até as pedras gritam – gera discussão.

Uma não-questão transformada em questão, ao arrepio dos Direitos Humanos Fundamentais, do Direito Constitucional, do Direito Civil, do Direito Processual Civil e, diga-se, da própria Lei de Arbitragem.

Ouso dizer mais: ao arrepio do Direito Comparado e do Direito Internacional, ao menos quando analisados corretamente e em boa-fé.

Paulo Henrique Cremoneze
Advogado com atuação em Direito do Seguro e Direito dos Transportes. Sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas - Advogados Associados. Mestre em Direito Internacional Privado. Especialista em Direito do Seguro.

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