Migalhas de Peso

Invocação do mal: a fantasia do "direito de ser nazista"

Parece estar na moda em nosso país, sobretudo entre os jovens, o encantamento com uma espécie de libertarianismo anarco-capitalista, que não raras vezes surge travestido de “liberalismo” ou “conservadorismo.”

10/2/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Testemunhamos, nesta semana, a grande repercussão das declarações dadas em um podcast pelo influencer Bruno Monteiro Aiub (conhecido como Monark) e pelo deputado federal Kim Kataguiri, no sentido de que deveria ser legalizada a existência de um partido nazista no Brasil e de que a Alemanha teria errado ao proibir esse tipo de agremiação política.

A ampla reação nas redes sociais rapidamente trouxe à tona uma série de questionamentos, que poderíamos sintetizar da seguinte forma: a liberdade de expressão, no contexto do constitucionalismo democrático contemporâneo, comporta a participação político-partidária da ideologia nazista em meio ao debate público?

Considerações morais à parte (a menos que alguém se disponha a apresentar uma defesa moral do nazismo), nosso ordenamento jurídico apresenta respostas bem claras a esta questão, no plano normativo.

O art. 20 da lei 7.716/89 define como crime o ato de "praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional" - discriminações que são inseparáveis e inafastáveis da própria substância do discurso e ideologia nazistas. Especificamente sobre a apologia ao nazismo, o § 1º do mesmo artigo estabelece como crime o ato de "fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo".1

Dito de outro modo: nossa legislação proíbe tanto a apologia material ao nazismo, por meio de símbolos e ornamentos, quanto a apologia político-discursiva, por meio da propagação ideológica do nazismo, inerentemente discriminatória em sua substância.

Igualmente relevante é o precedente estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal em 2003, quando do julgamento do HC 82424/RS - o famoso "Caso Ellwanger". Naquela oportunidade, o STF consolidou dois entendimentos de suma importância. Primeiro: que a liberdade de expressão não comporta manifestações de conteúdo imoral que implicam em ilicitude penal. Reproduzo abaixo alguns trechos importantes da ementa do julgado2:

[...] Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. [...] As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o "direito à incitação ao racismo", dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. [...] Estigmas que por si só evidenciam crime de racismo. Concepção atentatória dos princípios nos quais se erige e se organiza a sociedade humana, baseada na respeitabilidade e dignidade do ser humano e de sua pacífica convivência no meio social. Condutas e evocações aéticas e imorais que implicam repulsiva ação estatal por se revestirem de densa intolerabilidade, de sorte a afrontar o ordenamento infraconstitucional e constitucional do País.[...]

Segundo: no mesmo julgamento, o STF também, desconstruiu o argumento – falacioso e oportunista – no sentido de que o racismo seria uma espécie de crime "impossível", na medida em que a ciência moderna já comprovou o caráter biologicamente unitário da espécie humana.

A “lógica” subjacente a tal tese não resiste a dois minutos de análise. Ocorre que nenhum tipo de contorcionismo retórico pode ter o condão de alterar o fato de que o racismo e seus fenômenos históricos correlatos (como o instituto da escravidão) efetivamente ocorre(ra)m como prática social, produzindo resultados nefastos e abomináveis no mundo real – sem jamais encontrar sustentação ou validação em distinções conceituais verdadeiramente científicas, mas sim em conceitos arbitrários, erigidos por meio de convencionalismo e ideologia, dentro de processos sociais e históricos. Neste sentido:

[...] Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a definição e o mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos iguais. 4. Raça e racismo. A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista. [...]

Importante esclarecer que tais respostas do ordenamento jurídico não justificam uma preocupação com suposta “limitação” do exercício da liberdade individual no âmbito da democracia contemporânea. À toda evidência, a consagração dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica não conduzem a nenhum tipo de cerceamento arbitrário ou excessivo da amplitude do espectro político-partidário ou ideológico.

Assistimos, nas últimas décadas, a ascensão de uma série de movimentos e lideranças políticas – dentro e fora do Brasil – que flertaram com posições e posturas de ultradireita. Cite-se, como exemplo, Jean-Marie Le Pen na França, Jörg Haider na Áustria, Viktor Orbán na Hungria, Recep Tayyip Erdogan na Turquia, Donald Trump nos Estados Unidos e Jair Bolsonaro no Brasil. Apesar de frequentemente endossarem posições que poderiam ser entendidas como de extrema-direita e limítrofes ao nazismo, nenhuma destas lideranças foi “perseguida” ou eliminada da arena política, por constrições impostas pelo ordenamento jurídico de seus respectivos países. Significa dizer: os limites normativos à livre expressão ideológica existem, mas estão muito longe de serem “excessivamente rigorosos”.34

Encerro com uma rápida consideração final: parece estar na moda em nosso país, sobretudo entre os jovens, o encantamento com uma espécie de libertarianismo anarco-capitalista, que não raras vezes surge travestido de “liberalismo” ou “conservadorismo” (ao arrepio de princípios muito caros a ambas as tradições de pensamento). Este indigesto “mix” filosófico, eivado de contradições e simplismos, se orienta claramente por uma principiologia ultraindividualista que obnubila (ou, por vezes, faz desaparecer por completo) as mais elementares distinções entre cidadania e consumerismo.5

O resultado disso é o desejo infantilizado de permanecer vivendo em sociedade - mas, ao mesmo tempo, não se encontrar limitado ou restringido por nenhuma espécie de interdito, senso de responsabilidade ou concessão em nome do bem comum. À toda evidência, uma das consequências práticas disso tem sido a proliferação de uma série de insurgências que, até bem pouco tempo atrás, seriam consideradas indignas de crédito por qualquer pessoa adulta centrada. “Por que não posso ter o direito de ser um nazista?”; “por que não posso sair atirando nas pessoas?”; “com que direito o Estado pode intervir na minha liberdade de contaminar outras pessoas com um vírus potencialmente letal?", “por que não posso colocar outras pessoas em risco?” – e por aí vai. Aquilo que às vezes começa como brincadeira, piada ou mera retórica provocativa (ótima para gerar polêmicas e repercussão nas redes sociais) pode, às vezes, descambar para a mais completa incompreensão em relação aos deveres e responsabilidades que são inerentes à cidadania no contexto da convivência comunitária e da coexistência civilizada6.

A rigor, não existe “mau” consumidor. O cliente tem sempre razão e seu poder de consumo só encontra limites na extensão de seus recursos econômicos. Mas existem muitas maneiras de ser um mau cidadão7 – e de, no limite, cruzar a linha entre a imoralidade e a ilegalidade. A apologia ao nazismo é uma delas.

_________

1 Lembrando que a referida lei apenas define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, seguindo a principiologia consagrada nos artigos 3º, IV e 5º, XLII da Constituição Federal.

2 Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur96610/false

3 Importante destacar que, ao contrário do que ocorre no caso do influencer Monark (apologia à legalização de um partido nazista no Brasil), as respostas jurídicas para casos de discurso de ódio em um ambiente democrático nem sempre são tão óbvias, na medida em que o conteúdo do discurso frequentemente é mais sutil e não tão flagrantemente ilícito, situando-se em uma zona cinzenta entre a liberdade de expressão e o abuso deste direito. Sobre as dificuldades do combate ao hate speech (e sobre os perigos de um uso exacerbado do direito penal para lidar com este problema), ver: ABEL, Henrique. Democracia e discursos de ódio. Empório do Direito, 2017. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/democracia-e-discursos-de-odio

4 Para uma leitura crítica sobre os problemas da discricionariedade judicial no julgamento de casos de discursos de ódio – e, sobretudo, aos equívocos do recurso à “ponderação”, ver: OMMATI, José Emílio Medauar. Liberdade de expressão e discurso de ódio na Constituição de 1988. 5ª edição. Belo Horizonte: Conhecimento Editora, 2021.

5 Sobre este ponto, ver Capítulo 2 em: BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

6 Sobre este ponto, ver: ABEL, Henrique. As liberdades individuais no contexto da Covid-19: Constituição em tempos de pandemia. Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul, 2020. Disponível em:  https://www.iargs.com.br/as-liberdades-individuais-no-contexto-da-covid-19-constituicao-em-tempos-de-pandemia/

7 Sobre a inexistência de um “direito” (desprovido de consequências) de fazer a “coisa errada” – bem como sobre a distinção entre interferência (juridicamente justificável) e violação em um direito individual, ver os capítulos 9 e 10 em: EDMUNDSON, William A. Uma introdução aos direitos. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

Henrique Abel
Mestre e Doutor em Direito pela UNISINOS/RS, com estágio doutoral na School of Law of Birkbeck, University of London. Autor. Professor convidado de cursos de pós-graduação. Advogado.

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