Em sua redação original, a lei 8.429/92 (lei de improbidade administrativa - LIA) estabelecia em seu artigo 3º que “as disposições desta lei são aplicáveis, no que couber, àquele que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta”.
Em decorrência de tais disposições da LIA, firmaram-se no STJ alguns entendimentos no sentido de que: (i) a legitimidade passiva dos agentes públicos nos feitos que apuram a prática de atos ímprobos “independe da responsabilização dos particulares que participaram da improbidade ou dela se beneficiaram” (REsp 896044/PA) e (ii) é que “inviável o manejo da ação civil de improbidade exclusivamente contra o particular, sem a concomitante presença de agente público no polo passivo da demanda” (REsp 1409940/SP).
A lei 14.230/21 (nova lei de improbidade administrativa - NLIA) alterou o artigo 3º da LIA e conferiu-lhe dois parágrafos e uma nova redação ao caput, que passou a prescrever que “as disposições desta lei são aplicáveis, no que couber, àquele que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra dolosamente para a prática do ato de improbidade”.
Perceba que houve duas mudanças: (i) a “abolitio improbitatis” quanto à figura típica de o particular se beneficiar sob qualquer forma direta ou indireta da prática do ato de improbidade e (ii) a exigência de que mesmo o induzimento ou o concurso do extraneus com a agente público seja revestido de dolo.
Posto isso, passemos a analisar a primeira mudança trazida pela NLIA, qual seja: a necessidade de que a responsabilização do terceiro que não goze da condição de agente público seja caracterizada como uma coautoria dentro do cenário do concurso de pessoas.
Bom, nos termos do caput do art. 3º da lei 8.429/92 com a redação que lhe fora conferida pela lei 14.230/21, será preciso que os particulares, para serem responsabilizados pela prática de atos ímprobos na condição de coautores, ajam em colaboração recíproca e visem ao mesmo fim dos agentes públicos, realizando, para tanto, a mesma conduta principal1. Ou seja, na condição de coautor2, será necessário que o extraneus tenha uma participação importante e necessária para o cometimento e consecução final do ato ímprobo.
Mas não é só isso, passemos agora a analisar a segunda mudança trazida pela NLIA sobre a responsabilização dos particulares: a da que o terceiro atue dolosamente quando em coautoria com o agente público na prática do ato ímprobo.
E como os artigos 1º, §§ 1º, 2º e 3º, 11 §§ 1º e 2º da nova lei de improbidade administrativa caracteriza o ato de improbidade como a conduta funcional dolosa do agente público devidamente tipificada em lei, revestida de fins ilícitos e que tenha o fim de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade, conclui-se que a conduta do particular em coautoria com a agente público deverá ser revestida de dolo específico e não dolo genérico.
Destarte, exige-se do particular em coautoria com o agente público um especial fim de agir3 quando da prática do ato ímprobo.
Assim, ao fim e ao cabo podemos concluir que uma eventual responsabilização do terceiro quando da prática de atos ímprobos depende de sua atuação com o dolo específico de, em coautoria com um agente público, incorrer nas condutas proscritas na lei 8.429/92 com a redação que lhe fora conferida pela lei 14.230/21.
1 “Formas de concurso de pessoas a) Coautoria: todos os agentes, em colaboração recíproca e visando ao mesmo fim, realizam a conduta principal. Na lição de Johannes Wessels, ‘coautoria é o cometimento comunitário de um fato punível mediante uma atuação conjunta consciente e querida’. Ocorre a coautoria, portanto, quando dois ou mais agentes, conjuntamente, realizam o verbo do tipo. Conforme lembra Hans Welzel, ‘a coautoria é, em última análise, a própria autoria. Funda-se ela sobre o princípio da divisão do trabalho; cada autor colabora com sua parte no fato, a parte dos demais, na totalidade do delito e, por isso, responde pelo todo’. A contribuição dos coautores no fato criminoso não necessita, contudo, ser materialmente a mesma, podendo haver uma divisão dos atos executivos. Exemplo: no delito de roubo, um dos coautores emprega violência contra a vítima e o outro retira dela um objeto; no estupro, um constrange, enquanto o outro mantém conjunção carnal com a ofendida, e assim por diante. O coautor que concorre na realização do tipo também responderá pela qualificadora ou agravante de caráter objetivo quando tiver consciência desta e aceitá-la como possível.” (Capez, Fernando, Curso de direito penal, volume 1, parte geral : (arts. 1º a 120), 16. ed., São Paulo: Saraiva, 2012, págs. 364/365)
2 “Se autor é aquele que possui o domínio do fato, é o senhor de suas decisões, coautores serão aqueles que têm o domínio funcional dos fatos, ou seja, dentro do conceito de divisão de tarefas, serão coautores todos os que tiverem uma participação importante e necessária ao cometimento da infração, não se exigindo que todos sejam executores, isto é, que todos pratiquem a conduta descrita no núcleo do tipo. (...) cada agente terá o domínio no que diz respeito à função que lhe fora confiada pelo grupo. Com relação a essa função, que deverá ter importância na realização da infração penal, o agente é o senhor de suas decisões, e a parte que lhe toca terá importância no todo. (...) Em última palavra, podemos falar em coautoria quando houver a reunião de vários autores, cada qual com o domínio das funções que lhe foram atribuídas para a consecução final do fato, de acordo com o critério de divisão de tarefas.” (Greco, Rogério, Curso de Direito Penal: parte geral, volume I, 19ª. ed. Niterói, RJ: Impetus, 2017.págs. 571/572)
3 “Os elementos subjetivos que compõem a estrutura do tipo penal assumem transcendental importância na definição da conduta típica, pois é através do animus agendi que se consegue identificar e qualificar a atividade comportamental do agente. Somente conhecendo e identificando a intenção — vontade e consciência — do agente poder-se-á classificar um comportamento como típico, especialmente quando a figura típica exige, também, um especial fim de agir, que constitui o conhecido elemento subjetivo especial do tipo, que, para a corrente tradicional, denominava-se dolo específico (terminologia completamente superada). (Bitencourt, Cezar Roberto, Bitencourt, Cezar Roberto, Tratado de direito penal : parte geral, 17. ed. rev., ampl. e atual. de acordo com a Lei n. 12.550, de 2011, São Paulo: Saraiva, 2012., pág. 762)