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Comentários sobre a MP 1.099/22, que institui o Programa Nacional de Prestação de Serviço Civil Voluntário e o Prêmio Portas Abertas

A MP 1.099 até poderia ser vista como boa medida, desde que não incentivasse maior precarização das condições de trabalho. Um Programa nesses moldes há de ter objeto específico e tempo de duração definido; limites para sua oferta; limites considerando o efetivo de pessoal já contratado pelos municípios, dentre outros, tudo para garantir efetivamente a inclusão e a qualificação profissional

1/2/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

A contratação, temporária, de pessoas jovens e de adultos maiores de 50 anos, pelos Municípios, como método de redução dos efeitos maléficos da pandemia da Covid-19 até poderia ser vista como boa medida, desde que não incentivasse maior precarização das condições de trabalho.

Vivemos um período de mudanças no mundo do trabalho, em que se vê migração da contratação formal via CLT para formas diversas menos protegidas, muitas vezes de modo fraudulento, por meio da contratação via PJ (Pessoa Jurídica), terceirização, plataformas digitais ou mesmo a pura e simples negativa de reconhecimento do vínculo formal de fato existente.

Também no serviço público, diversas iniciativas desprestigiam a contratação de servidores efetivos para seus quadros, apesar da preferência constitucional pela criação de uma força de trabalho própria, especializada e organizada em quadros de carreiras permanentes e estáveis que possam garantir a continuidade dos serviços independentemente do chefe de governo de ocasião.

O trabalhador, e em especial os mais jovens e os mais idosos, tem dificuldade em ingressar e, depois, em permanecer dentro do mercado de trabalho.

Quando temos um governo comprometido exclusivamente com os interesses do capital, e jamais com os interesses da classe trabalhadora, toda análise deve ser feita com muita cautela. Esse governo já tentou emplacar contratos de trabalho formais precários, como o da Carteira de Trabalho Verde e Amarela (MP 905/19), e ainda, no ano passado, em pleno auge da pandemia, tentou estabelecer sistema precário de contratação de jovens e adultos, também por medida provisória (MP 1.045), com o “Programa Primeira Oportunidade e Reinserção no Emprego – Priore”, o “Regime Especial de Trabalho Incentivado, Qualificação e Inclusão Produtiva – Requip” e o “Programa Nacional de Prestação de Serviço Social Voluntário”, este ressucitado agora.

Nesse contexto, a análise do “Programa Nacional de Prestação de Serviço Civil Voluntário”, instituído neste 28 de janeiro de 2022, pela MP 1.099, merece especial cuidado.

Caracterísctica dos Programa

O Programa, que vigorará até 31 de dezembro de 2022, tem, como objetivos declarados, reduzir os impactos sociais e no mercado de trabalho causados pela Covid-19, auxiliar na inclusão produtiva do jovem (aqueles com idade entre 18 e 29 anos) nesse mercado e também das pessoas com mais de 50 anos e que estejam desempregadas há mais de 24 meses, incentivando os municípios a ofertar atividades de interesse público sem vínculo empregatício. A contratação se dará por processo seletivo simplificado e os beneficiários do Programa passarão por qualificação profissional ofertado por entidades do Sistema S (Senai, Senac, Senar, Senat, Sescoop e Sebrae), ou por instituições de formação técnico-profissional municipais ou via convênio com outras entidades.

Beneficiários

Terão prioridade no Programa os beneficiários dos programas de transferência de renda, como o Auxílio Brasil, e os que pertencerem à família inscrita no Cadastro Único para Programa Sociais do Governo – CadÚnico. De outro lado, não poderão participar do Programa aqueles que receberem Benefício de Prestação Continuada do Regime Geral de Previdência Social ou dos Regimes Próprios de Previdência Social.

Atividades permitidas

O município tratará da oferta de vagas, atividades a serem desempenhadas, operacionalização do programa, valor da bolsa (de natureza indenizatória), forma de pagamento de vale-transporte ou sistema de transporte gratuito, contratação de seguro e outras condições. A jornada de trabalho será de 22 horas semanais e com máxima diária de 8 horas.

Não pode haver contratação para atividades insalubres, perigosas ou que configurem substituição de servidores ou de empregados públicos nas atividades privativas de profissões regulamentadas ou de competência de cargos ou empregos públicos.

Alimentação e vale-transporte

O município pode fornecer benefício de alimentação ou outros, de natureza indenizatória, além do obrigatório vale-transporte, sem que isso caracterize vínculo empregatício.

Desligamento do Programa e Ministério do Trabalho

O beneficiário se desliga do Programa ao ser admitido em emprego (CLT), caso tenha frequência inferior à mínima estabelecida ou aproveitamento insuficiente, além de outras previsões que possam ser feitas no edital de seleção.

O Programa é vinculado ao Ministério do Trabalho e Previdência e a ele os municípios devem prestar informações.

São essas as principais características do programa.

Principais problemas

As propostas da Carteira de Trabalho Verde e Amarela e da MP 1.045 foram derrotadas após luta de trabalhadores, trabalhadoras e entidades sindicais, por acarretar aprofundamento das flexibilizações contratuais já discutidas, e por condenar as pessoas que ingressassem no sistema à eterna condição de redução de direitos. Permitiam a substituição do emprego formal e a redução e exclusão de uma série de direitos históricos, como o FGTS, em troca da promessa de aumento das contratações e inclusão.

A iniciativa atual, circunscrita aos municípios e com data estipulada para acabar, merece o mesmo combate, por uma série de razões.

Data – Inicialmente, não acreditamos que a data fixada para o término do programa, 31 de dezembro de 2022, seja efetivamente cumprida. Se o Programa funcionar a contento – do ponto de vista dos interesses de flexibilização e de precarização do trabalho como um todo – ele tende a se prolongar no tempo e “no espaço”, podendo ser facilmente estendido para as atividades privadas, atingindo os objetivos da malfazeja Carteira de Trabalho Verde e Amarela.

O interesse por trás de todas as ações do governo atual, com relação ao trabalho, é precarizar e flexibilizar.

Falta de direitos trabalhistas e previdenciários – Então, se no primeiro parágrafo dissemos que uma iniciativa de inclusão voltada a jovens e adultos maiores de 50 anos poderia ser uma boa medida, seria necessário circunscrevê-la dentro de um sistema de garantias que impossibilitasse: a exploração de jovens e adultos dentro de um sistema que os prenda para sempre, sem condições de aspirar à formalidade e ao pleno gozo de direitos trabalhistas civilizados, assim como à Previdência Social e à contagem de tempo para a aposentadoria e acesso a outros benefícios; a contratação e recontratação dos trabalhadores em múltiplos projetos; a permanência de projetos por prazos indeterminados; o tempo máximo dos participantes dentro do Programa.

Serviço público – Um Programa desse tipo só pode funcionar adequadamente e servir como ferramenta de inclusão se não concorrer efetivamente com as atividades municipais normais e cotidianas. Se não concorrer com a contratação com caráter de permanência no serviço público; se não se tratar de mero subterfúgio para a contratação precária em substituição da contratação formal.

A contratação para frentes de trabalho específicas, determinadas, com objetivos e interesses públicos previamente estabelecidos, com tempo de duração razoável, eventualmente poderia ser desejável e inclusiva, mas nunca permitindo a criação de um novo perfil profissional precário: o trabalhador e a trabalhadora permanentemente voluntários.

Exclusão digital – Em relação a ofertas de cursos de formação ou qualificação profissional, a MP estabelece a possibilidade de cursos nas modalidades presencial, semipresencial ou remota. Há de se ter, nesse ponto, preocupação com as aulas virtuais, já que nem sempre as pessoas abrangidas pelo Programa possuirão acesso aos meios tecnológicos e à internet.

Fiscalização – Por fim, há de se mencionar ainda a omissão da MP em relação à fiscalização do Programa, considerando que o Brasil possui 5.570 municípios1 e que o Ministério do Trabalho sofre com falta de auditores fiscais do trabalho e corte em seu orçamento.2 Se um prefeito, por exemplo, estabelecer jornada maior que oito horas ao dia ou maior do que 22 horas semanais, quem fiscalizará? Haverá reconhecimento de relação de emprego? 

Como dissemos, a MP 1.099 até poderia ser vista como boa medida, desde que não incentivasse maior precarização das condições de trabalho. Um Programa nesses moldes há de ter objeto específico e tempo de duração definido; limites para sua oferta; limites considerando o efetivo de pessoal já contratado pelos municípios, dentre outros, tudo para garantir efetivamente a inclusão e a qualificação profissional e evitar possíveis excessos e fraudes.

____________

1 Disponível em https://cidades.ibge.gov.br/brasil/panorama. Acesso em 29/01/2022.

2 Disponível em https://www.redebrasilatual.com.br/trabalho/2020/09/fiscalizacao-trabalhista-cortes-bolsonaro.

e https://www.poder360.com.br/economia/ministerio-do-trabalho-perde-r-1-bi-com-vetos-ao-orcamento.  Acesso em: 29/01/2022.

José Eymard Loguercio
Advogado, mestre em Direito pela Universidade de Brasília, especialista em Direitos Humanos do Trabalho e Direito Transnacional do Trabalho pela Universidade Castilla-La Mancha (UCLM), Espanha. Sócio da LBS Advogados e presidente do Instituto Lavor.

Nilo da Cunha Jamardo Beiro
Sócio da LBS Advogados.

Antonio Fernando Megale Lopes
Sócio do escritório Loguercio, Beiro e Surian Sociedade de Advogados.

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