Migalhas de Peso

Bons juízes e juízes bons. Juízes covardes e covardes juízes

Aquele que abusa dos poderes do cargo em benefício próprio e em detrimento dos que estejam submetidos à sua jurisdição, não é, de fato, um juiz. Apenas aparenta ser juiz; fantasia-se com a toga para um baile particular. É um usurpador. “Juiz”, no caso dele, é adjetivo.

24/1/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

A tarefa de julgar não é simples. É árdua, dolorida. Em geral, impõe sofrimento a alguém, a uma das partes. O juiz empático sofre junto. E os temas “sub judice” costumam ser relevantes; os mais banais ficam de fora da (custosa) mediação do Estado.

As quatro características que Aristóteles apontava indispensáveis ao juiz seguem a lógica do fio processual: escutar com cortesia, responder com sabedoria, ponderar com prudência e julgar com imparcialidade.

As três primeiras, na verdade, traduzem condutas que de uma forma ou de outra submetem-se à principal delas, aquela que revela o pressuposto essencial, inerente à validade da atividade do julgador: a imparcialidade.

Mas a imparcialidade, para imperar, reclama um ambiente propício. Um ambiente cuja atmosfera seja formada por coragem, humanidade e cientificidade (conhecimento). Esse é o grande desafio do bom juiz: estudar a fundo o caso e o Direito (cientificidade), manter-se sensível às vicissitudes e potências da condição humana e, acima de tudo, ter coragem para fazer Justiça, ainda que desagrade à maioria.

O pusilânime, o desumano e o preconceituoso não atingem a imparcialidade.

Um juiz não deve ser popular ou impopular; a régua da popularidade não se presta a medir a qualidade desse profissional. Um juiz popular não significa tratar-se de um bom juiz; ao contrário, é um sinal de se tratar de um mau juiz. Um juiz nada popular, mas ainda assim respeitado pela comunidade jurídica e pelos jurisdicionados, pode ser um bom juiz, desde que humano, estudioso e isento. O juiz bonzinho, que atende e se dobra à opinião e ao apelo públicos, não é um bom juiz. Pusilânime, deixa sua imparcialidade e seus conhecimentos técnico-científicos no fundo da gaveta. Permite um déficit em seu ambiente decisório que obnubla a imparcialidade. É um juiz covarde.

O juiz seco, alheio aos princípios humanitários, também não é um bom juiz. Não pratica a Justiça nos casos mais sensíveis e reproduz as mesmas opressões do sistema, precisamente onde sua mediação deveria servir de contenção. De igual forma, agora por crueza robótica e desumana, permite um déficit em seu ambiente decisório que obnubla a imparcialidade.

O juiz preconceituoso traz códigos próprios, introjetados em sua visão de mundo, que não se aplicam ao Direito, à ciência jurídica. Não é, definitivamente, um bom juiz. Não se abre ao conhecimento, traz consigo, a tiracolo, uma parcialidade genérica, grupal, “coerente” com seus preconceitos. Esse déficit ambiental, claro, também obnubla a imparcialidade.

Mas há um mal ainda pior, em que a imparcialidade é inerente, atávica, e não fruto de “déficit ambiental”. Vincula-se ao caráter. Ou melhor: à falta dele.

É o caso do covarde juiz. Não me refiro aqui ao acovardado, medroso, pusilânime, que comentei linhas acima, infelizmente encontradiço até em cortes superiores. Tampouco ao desumano ou preconceituoso. Mas àquele “covardão”, sem qualquer compromisso com a coerência, que tem a coragem de passar por cima de tudo e de todos em nome de seus projetos pessoais, de suas ambições espúrias e personalíssimas por poder e dinheiro. Aquele que usa e abusa dos poderes do cargo em benefício próprio e em detrimento dos que estejam submetidos à sua jurisdição. O arrivista juiz não é, de fato, um juiz. Apenas aparenta ser juiz; fantasia-se com a toga para um baile particular. É um usurpador. “Juiz”, no caso dele, é adjetivo. Não se trata apenas de déficit ambiental. É déficit de caráter, tem ambições ontologicamente incompatíveis com a ideia de imparcialidade. Ele é tudo, menos imparcial; ele próprio é uma parte oculta do processo e trabalha direta ou indiretamente em benefício próprio.

A covardia judicial trouxe danos jamais vistos em nossa história recente; avaliação essa, inclusive, externada por ministros da Suprema Corte. Como num castelo de cartas, atos de torpeza extrema foram capazes soçobrar as bases do País (que crescia opulento), implodir valores nacionais, gerar descrédito internacional e impor todo tipo de carência e privação à população. Sem contar a contaminação e descrédito institucional; ou seja, à própria magistratura.

E o sistema judicial continua rigorosamente o mesmo; segue de braços abertos para abrigar novos arrivistas, aventureiros e profissionais desqualificados (ainda que estejam, por ora, com “as barbas de molho”).

Por isso, urge aperfeiçoar os critérios de formação e ingresso de magistrados e membros das carreiras jurídicas. Além da capacitação técnico-científica, parece obvio que há que se ter uma apurada formação humanística. Mas, acima de tudo, deve-se aferir – pela régua da psicologia individual e psicologia social - a firmeza de caráter, de alcance e respeito à função social do cargo, mediante, por exemplo, maior aprofundamento e zelo nas avaliações psicotécnicas, além de efetividade dos mecanismos de acompanhamento e controle, hoje excessivamente corporativistas. 

Se nada for alterado, estamos fadados a ver a história se repetir. É questão de tempo.

Paulo Calmon Nogueira da Gama
Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio, Desembargador do TJMG.

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