Migalhas de Peso

Improbidade administrativa: Influxos do Direito Penal e Processual Penal

Mesmo que a probidade seja direito fundamental da sociedade à boa administração, é inadequado argumentar com violação do princípio da proibição de regresso de modo a impedir aplicação da lex mitius

14/1/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Para contenção de arbitrariedades do governante, Beccaria afirmara no séc. XVIII, que “Deve, pois, haver uma proporção entre os delitos e as penas”. Essa orientação que apenas em feição teria rudimentar natureza de direito penal, se estendeu por quase três séculos a outros ramos, chegando hoje ao princípio da proporcionalidade que, mesmo não expresso, está ínsito no primado do Estado de Direito Democrático. Esse, como ilustração, é apenas um aspecto do largo poder punitivo do Estado, residualmente espargido em diferentes regimes jurídicos, nominados de penal, administrativo, tributário etc. e exercido através de compartimentos estanques (Administração e Tribunais). 

Mas, surge o direito penal sem nome, um direito penal “Canada dry” (a bebida conteria gengibre verdadeiro, mas aparentemente não): tem gosto penal sem ter rótulo e sem causar embriaguez. A lei n. 8.429/92 faz parte desse direito em aparência, na origem considerando sujeito ímprobo mesmo o obtuso agente público por só violação de principios,  o que aos poucos e com o tempo veio recebendo severa e contínua rejeição dos tribunais. Para disfarçar a sua essência penal, o legislador camaleônico empreendeu fuga do direito penal clássico para estabelecer sanções penais camufladas a serem doravante impostas ao destinatário...sem obediência dos requisitos de legalidade do  direito penal e do processo penal, uma vez que o legislador o batizou de administrativo. E o autor da infração, assim, não carrega o  desonroso título de delinquente, não pode ser preso e é réu, mas na jurisdição civil. Os juízes se dobrariam diante do nominalismo legislativo porque não é seu ofício controlar as leis e, sim aplicá-las; todavia, certos que o hábito não faz o monge, e que se pode enxergar em três dimensões (largura, altura e profundidade), na realidade não se deve ver com os olhos e sim ...com o cérebro. 

O caráter penal de uma norma não depende do nome que lhe dá o legislador, salvo quando ele a designa como penal. Entre nós, é usual  -embora estranho, empregar no preceito sancionador o vocábulo pena para infração penal, e penalidade (que na verdade é caráter da pena!) para infração administrativa. A expressão máxima da potestade sancionadora do Estado está constituída pelas normas de Direito Penal que impõe as sanções de maior gravidade. E a sanção administrativa pune uma falta imputável ao seu autor, evocando claramente os mesmos elementos material e moral da infração penal, mas de caráter complementar (e não alternativo) por construir ilícitos e  cobrir situações antijurídicas não contempladas pelo Direito Penal. Para sanções de menor gravidade, é um Direito Penal degenerado. De todo modo, a finalidade em ambos é a proteção dos bens jurídicos,  e a forma de punição dos agressores, com a escolha e o escalonamento das sanções, é opção do legislador. 

O jus puniendi do Estado é uno. O poder sancionador da Administração  juntamente com o poder penal dos tribunais faz parte dessa manifestação superior do Estado que também é único, de modo que nada mais são do que simples manifestações concretas dele. Aliás, uno é o direito que a ciência o fez em compartimentos e subcompartimentos, mas é ilógico e perigoso deduzir a natureza duma repressão a partir de particularidades. A improbidade administrativa reprimida pela lei n. 8.429/92 (uma lei “Canada dry”) não é senão a falta disciplinar do servidor punida por um juiz, e até intuitivamente por vir hipoteticamente revestida de maior gravidade a exigir bastante imparcialidade  no julgamento, virtude nem sempre tão presente no âmbito administrativo. Essa potestade sancionatória originariamente é da Administração porque o direito administrativo disciplinar quanto à aplicação das sanções, não é, ao fundo, senão o direito penal particular das instituições. A sanção administrativa pode revestir um aspecto penal e a inflição de uma pena não parte necessariamente da jurisdição, posto que o poder sancionador detém o “privilège d'action ou d'exécution d'office”, impondo-lhe necessariamente se antecipar ao poder judiciário. 

Se há o recurso à jurisdição visando punir o servidor por infração administrativa,  como o faz a Lei n. 8.429/92 ao comando do art. 37, § 4° da Constituição Federal, o sistema deve sobretudo respeitar um certo número de garantias fundamentais. A noção de “penal” assim, é lato sensu. O fato de uma lei ser oficialmente qualificada como não penal pelo legislador, ou ser assim considerada, não se apresenta suficiente para impedir a aplicação dos princípios gerais do direito penal. O objetivo punitivo e a severidade da sanção fornecem a indicação final, e na maioria das vezes decisiva, da forma penal, embora como tal  não declarada.

O  legislador é livre para escolher entre a repressão penal e a repressão administrativa, não sendo esta escolha em si considerada discriminatória. No entanto, as garantias decorrentes dos princípios gerais do direito penal e do processo penal (não as regras de direito penal material e processual) devem ser respeitadas no âmbito da repressão administrativa, com as nuances que lhe são próprias. Impõe-se, por isso, o cumprimento das regras substantivas (princípios da proporcionalidade, legalidade, irretroatividade e retroatividade benéfica, non bis in idem, personalização e individualização das penas etc., explícitas e implícitas na Constituição Federal) e da forma (princípios da independência e imparcialidade do tribunal, dos direitos defesa, meios de recurso, etc.) aplicáveis ??no quadro da repressão criminal. Esse empréstimo colateral é bastante lógico porque na verdade essas garantias devem ser previstas. O legislador as previu, ainda que debilmente,  no art. 1°, § 4°, determinando aplicação dos princípios constitucionais do direito administrativo sancionador quando haveria de referir mais claramente em princípios constitucionais do direito penal e do processo penal, os quais devem sempre ter assento quando o mecanismo de coerção estatal de repressão é implementado. 

Além do perfunctório olhar a árvore e não a floresta, é perda de tempo procurar dualidade de tratamento e querer desemaranhar a interpenetração ou imbricação de regimes, do Direito Penal com o do chamado “Direito Administrativo Sancionador” por aquela norma que,  não fosse desnecessária, pode auxiliar no entendimento que a recente lei 14.230/21, apesar de não dizê-lo, tem aplicação retroativa in mitius.

De acordo com art. 8º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, se o legislador adota uma nova lei mais branda é porque a velha lei já não é necessária para a defesa da sociedade. Esse, o fundamento do princípio da retroatividade in mitius ou leges favorabiles. Deste princípio decorre a regra segundo a qual o novo direito, quando revoga uma infração penal, ou a restringe, ou prevê penas menos severas do que a antiga lei, aplicam-se aos autores de infrações cometidas antes de sua entrada em vigor e que não deram origem a condenações transformadas em coisa julgada. Essa regra não se aplica apenas aos tribunais quanto a sanções penais, mas também a sanções administrativas punitivas. 

Tanto o antigo como o atual legislador, sem conceder expressamente natureza penal e processual penal à lei, confessadamente imprimiu característica penal aos atos de improbidade administrativa, indicando aplicação à luz dos normativos penais. Aliás, condenação por improbidade pode ser muito mais pesada que a própria condenação penal, exatamente pela sanções variadas previstas na lei. Já no Capítulo III, o designou “Das Penas” (e não penalidades!), referindo ademais em “pena de demissão” (art. 13, § 3°), “fixação das penas” (Art. 17-C, VI), e na aplicação das sanções a ressalva quanto à “pena de ressarcimento” (art. 21, inc. I). Relevante observar também que no caso de continuidade de ilícitos, que refere “a soma das penas” (art. 18-A, inc. I) e a perda de cargo ou função pública (art. 12,  I e II), vêm simetricamente previstas no Código Penal, respectivamente, como crime continuado (art. 71) e  efeito de condenação (art. 92, I). 

Por tudo, não se deixando enganar pelo mimetismo, e ao remover o véu do disfarce que recobre a sua natureza, será visto com o cérebro tratar-se de uma lei penal que somente em aparência teria outra natureza por não escarmentar a privação ou a restrição da liberdade. Quanto ao mais... Assumiria abertamente de vez a natureza penal se o legislador designasse “Dos crimes” o capítulo das infrações administrativas, mas aí já não poderia ele criar tipos escancaradamente abertos para descrever certas condutas e adicionar o advérbio “e notadamente”, com violação da lex certa que, contudo, é regra de direito penal material e não princípio geral de direito penal. 

A natureza penal ou penaliforme também pode ser deduzida da lei ao dispor que a ação por improbidade administrativa é repressiva, de caráter sancionatório, destinada à aplicação de sanções de caráter pessoal, ajuntando que “não constitui ação civil” ( 17-D), assegurando ao réu o direito de ser interrogado, e a recusa ou silêncio não implicar confissão (art. 17, §18), dando efetividade ao princípio da não auto-incriminação. Embora a Constituição (art.5°, LXIII)  restrinja a dizer que o “preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado”, o direito ao silêncio constitui apenas uma das manifestações desse princípio positivado também no art.186, parágrafo único, CPP, agora especialmente estendido para o processo civil. Sem dúvida, uma radical guinada do legislador introduzindo também características processuais penais no modo de coerção, ferramentas para contenção do poder punitivo do Estado. 

Nem todos os princípios do Direito Penal devem ser assimilados pelo Direito Sancionador Administrativo, ou pelo direito disciplinar sancionador, seja ele aplicado pela Administração ou pelo Juiz. Porém, desde que uma medida tenha característica punitiva, predominantemente repressiva de uma pessoa, qualquer que seja a sua significação, não  devem ser ignorados os princípios gerais e fundamentais do Direito Penal, e dentre eles, principalmente aquele com assento constitucional, o da retroatividade da lei (mais) benéfica (art. 5º , inciso XL, CF), o que afasta a ideia muito simplista e restrita que a retroatividade benéfica fosse aplicável apenas no campo do direito penal. 

Nem sempre é fácil delinear maior brandura de uma nova lei, mas ela se depreende da a) extinção da improbidade culposa, então excepcionalmente prevista no art. 10, e exigir, em qualquer hipótese, a conduta dolosa do agente (art. 1º, § 1º); b) revogação dos incisos I, II, IX e X do art. 11 da LIA e, com a alteração, os seus incisos passam a ser taxativos e não  exemplificativos;  c)  exigência de dolo específico para configuração da improbidade, pelo § 2º do art. 1º, não bastando a voluntariedade do agente; d) exigência da petição inicial ser instruída com documentos  ou justificação que contenham indícios suficientes da veracidade dos fatos e do dolo imputado (art. 17, § 6°, II) e que deverá ser analisado pelo juiz para formação de sua convicção (art.21, § 2°). Essas  são dentre outras algumas das razões bastantes para não ensejar nenhuma dúvida ser ela benéfica ao réu que poderá ser consultado –como o faz alguns sistemas estrangeiros – e confirmá-la, ou não.

A abordagem do tempus regit actum exige visão do direito sistêmico, para não aplicá-lo em tiras, aos pedaços. A repressão disciplinar pela Administração ou  pelo Judiciário, e a repressão penal do servidor, repousam sobre o mesmo fundamento. Do princípio constitucional da irretroatividade penal, se lhe segue o da retroatividade benigna da nova lei, que em semelhança é imediatamente aplicável às sanções punitivas administrativas. 

Por fim, mesmo que a probidade seja direito fundamental da sociedade à boa administração, é inadequado argumentar com violação do princípio da proibição de regresso de modo a impedir aplicação da lex mitius. Esse raciocínio representaria uma reductio ad absurdum ao impor ao legislador, sem fundamento jurídico sério, iniciativas  sempre cada vez necessariamente mais severas contra autores de ilícitos penais ou administrativos. Os insensatos, desde Adão, estão em maioria. Ao contrário do que se pensa, não há essa proibição porque a nova norma não trata de revogação ou redução do grau de concretização de direitos sociais que tenham sido regulamentados, sem criação de alternativas compensatórias e benéficas. Além disso, a repressão de condutas ilícitas sempre pôde ser amenizada  ou desconstituída pelo direito posterior, e nunca foi mencionado que isso importasse em retrocesso ou regresso, tratamento que não pode ser diverso para condutas ditas ímpobras ou criminosas. Não se submete a nova lei, que não versa questões sociais, a esse princípio, posto veicular direito punitivo do Estado contra o servidor. Aliás, decorre do próprio sistema do direito constitucional e democrático a contenção do arbítrio desse poder. E pela retroação benéfica aplica-se aos casos em curso e ainda não sentenciados.

Fernando Fukassawa
Promotor de justiça aposentado/SP.

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