Você sabia que muitas espécies de “papais pássaros” se dividem em turnos para cuidar dos filhotes no ninho? Para se protegerem dos predadores, eles revezam o período em que cada um fica chocando os ovos. Até então, parece normal. Mas e se disséssemos que nós, humanos, possuímos uma modalidade de guarda semelhante? Bom, por não possuir ainda muita repercussão em território nacional pode-se dizer que é um “animal exótico” em nosso ordenamento, além de certamente não ser implementada com a finalidade de se proteger de predadores. Todavia, a chamada “guarda em ninho”, “guarda nidativa”, em “nidação”, ou ainda, “aninhamento”, poderá trazer muito o que falar nos próximos capítulos do Direito de Família nacional.
Mas, assim como o bico da coxinha, aqui o melhor também fica para o final (me perdoe o Paulo nessa parte, porque ele começa pelo bico). Antes de mais nada, vale fazer uma breve síntese sobre alguns conceitos jurídicos que podem gerar confusão ao leitor despretensioso, já que o nosso Código Civil não fez muito esforço em se manter didático nessa questão, isso que é dito que a operabilidade é um dos pilares do Código.
Primeiramente, o que é a “guarda”? Ao contrário do que se pode imaginar, a guarda não se relaciona, necessariamente, com o local onde a criança mora, apesar de essa correlação normalmente se verificar na realidade. Na verdade, a guarda diz respeito, principalmente, à responsabilização pela criança. Ou seja, ela é um dos muitos “braços” do chamado poder familiar, conforme se vê no art. 1.634, II, do CC:
Art. 1.634. Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: [...]
II - exercer a guarda unilateral ou compartilhada nos termos do art. 1.584;
Isso quer dizer que, além da guarda, há ainda uma série de direitos e deveres concernentes ao poder familiar que, ao menos teoricamente, não se esvaem com a “perda” da guarda - expressão essa que já deve ser utilizada com cautela em razão de seu caráter naturalmente punitivista. Aliás, em pequena digressão, a própria palavra guarda não tem uma conotação para lá de positiva, pois implica uma “coisificação” e posse da criança, que antes de mais nada é um sujeito de direito digno por si (principalmente após o advento da doutrina da Proteção Integral), e não uma propriedade dos pais.
Agora, para continuar a explicação a respeito do conceito de guarda, vale fazer um pequeno apanhado sobre suas modalidades legais: unilateral e compartilhada. Segundo o § 1º do art. 1.583 do CC:
Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua (art. 1.584, § 5o) e, por guarda compartilhada a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns.
A diferença entre ambas se dá na medida em que, na primeira, somente um dos genitores - ou, em casos graves, um terceiro definido judicialmente de acordo com laços de parentesco ou afinidade com a criança, conforme o art. 1.584, § 5, do CC - responsabiliza-se diretamente pelos interesses e atos da criança ou do adolescente. Por uma questão lógica, é certo dizer que na grande maioria dos casos em que a guarda unilateral é estabelecida, o domicílio do filho é definido na casa do genitor que possui a guarda, até mesmo por pragmatismo.
Enquanto isso, na segunda, a responsabilidade é compartilhada igualmente entre os genitores, independentemente de o filho residir com um ou com o outro - apesar de nosso Código Civil atual ter acrescentado à guarda compartilhada também a ideia de equilíbrio no tempo de convívio (art. 1.583, § 2º, do CC), o que era uma característica da antiga "guarda alternada”. Ou seja, compartilhar o poder familiar não se mistura, necessariamente, com o compartilhamento de tempo de convívio com o filho, mas é possível entender duas vertentes da guarda compartilhada, uma jurídica, advinda da lei 11.698/2008, e outra física (fática), acrescentada pela lei 13.058/2014, ambas alteradoras do Código Civil.
Em suma, a essência da guarda compartilhada está no exercício em comum da autoridade e responsabilidade parental, conferindo a ambos os genitores as mesmas prerrogativas nas tomadas de decisões quanto ao destino de seus filhos, propiciando à prole o direito de, mesmo com a separação, contar com a autoridade conjunta de seus pais. Por esse motivo, a primazia do Código é dada à guarda compartilhada, que poderá inclusive ser imposta pelo juiz quando não houver acordo entre os pais quanto à guarda do filho e ambos os genitores se encontrarem aptos a exercer o poder familiar, exceto se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda do infante, conforme se lê no § 2º do art. 1.584 do CC.
Mesmo na guarda unilateral, o poder familiar do outro genitor mantém-se com relação a todos os outros incisos (salvo o II) do art. 1.634, apesar de ser exercido de maneira muito ínfima, pois, conforme bem explanado por Rolf Madaleno:
Embora a separação dos pais não lhes retire o poder familiar sobre os filhos, induvidoso reconhecer que o detentor da guarda física dos filhos toma as decisões diárias acerca dos interesses da prole, adotando as decisões relacionadas aos atos diários da vida da descendência, ainda que o outro progenitor possa requerer a reversão da guarda quando estiver sendo prejudicial aos filhos.
De acordo com o art. 1.631 do CC, o poder parental somente é exercido com exclusividade por um dos genitores na falta ou impedimento do outro. É sabido que, segundo o art. 1.632 do CC, a separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável em nada alteram as relações entre pais e filhos, senão quanto ao direito que aos primeiros cabe de terem em sua companhia os segundos, porém, na prática, fora das retas linhas do Código, esses poderes acabam sendo desempenhados de maneira exclusiva pelo genitor que detém a guarda, restando ao outro tão somente o direito-dever de supervisão elencado no § 5º do art. 1.583 do CC.
Agora, considerando que o postulado que dita todas essas regras e modalidades é o de atender ao melhor interesse da criança, a escolha do regime de guarda é sempre feita com atenção às condições fáticas e tomando os cuidados necessários para que os direitos do infante sejam garantidos, acima de qualquer dever-direito que os pais possam ter. Nesse sentido, deve-se preservar a criança para que não seja pega no cabo de guerra de seus genitores ou sofrer mais do que a situação de separação já causa. Então, naturalmente vulneráveis, pois ainda em fase de formação, as crianças e adolescentes carecem de especial proteção, cuidado e afeto dos pais.
Pensando nisso, e agora que já comemos todo o recheio da coxinha, entra em pauta a já mencionada “guarda em ninho”, que pode ser entendida como uma subespécie de guarda compartilhada. Nela, além de os pais partilharem igualmente o poder parental, em vez de o filho alternar entre as casas dos genitores, são os pais que se revezam na “residência do filho”, conferindo maior estabilidade e amenizando os impactos que a separação dos pais gera na criança e no adolescente.
A celeuma a respeito do aninhamento se dá em razão de essa modalidade não possuir previsão legal em nosso ordenamento, sendo que, na doutrina, grande parte dos manuais sequer a menciona ou não discorre mais do que um parágrafo a seu respeito. Tal situação faz-nos questionar se realmente há a possibilidade de se implementar a guarda nidativa tendo por base o Direito nacional. Ora, entendemos que, apesar de não haver expressa previsão legal, trata-se de uma faculdade dos pais (pelo menos nesse primeiro momento de anomia) de, caso possuam recursos suficientes para a mantença de três residências, assim o fazer.
Contudo, há de se perguntar: se notadamente comprovados os benefícios ao desenvolvimento da criança e à sua saúde psicológica, no caso de um casal que claramente dispõe de vultosos recursos financeiros, poderia o juiz impor a guarda nidativa assim como pode fazer com a guarda compartilhada “comum”?
Também, bom pontuar que, além da necessidade de um certo padrão econômico, esse tipo de guarda exige também grande harmonia por parte dos genitores, pois existe toda uma dinâmica a ser ajustada já que, de certa forma, o ex casal ainda terá que conviver com os vestígios um do outro, partilhando a mesma casa, mesmo que em períodos diferentes. Nesse sentido, uma certa elevação espiritual e uma dose de desapego são fundamentais para a possibilidade de a guarda nidativa ser sinônimo de sucesso, e não de desastre.
Nessa mesma toada das dificuldades de se conviver com os vestígios de um ex-companheiro, é possível verificar em nossa cultura a ideia do filho como um “fantasma” do relacionamento passado, o que muitas vezes faz com que a criança se sinta um peso para os pais. Assim, mesmo que já seja bem comum nos países europeus, talvez essa modalidade ainda não tenha se popularizado mais no Brasil em decorrência dessa dinâmica cultural.
Enfim, o ponto é que, pelo menos por ora, não podemos propriamente falar que a guarda nidativa esteja regulamentada na legislação brasileira, o que, como sustentamos, não pode ser utilizado para inviabilizar a adoção da guarda nidativa. O certo é que o foco principal deve ser sempre o melhor interesse da criança e, nesse sentido, a guarda em nidação pode ser uma interessante alternativa para permitir a criação saudável dessa. Aos pais, vale o antigo ditado proverbial: “Por mau vizinho não desfaças o teu ninho”.