No dia 09/08, foi publicada no Diário Oficial da União, a lei 14.193/21 que instituiu um novo tipo societário denominado Sociedade Anônima do Futebol “SAF”). Dentre outros temas, ela dispõe sobre normas de constituição, governança, controle, transparência e meios de financiamento da atividade futebolística, como um todo.
Esse novo marco regulatório propicia aos agentes econômicos desse importante segmento da economia nacional, especialmente os clubes de futebol, uma nova via de direito, apta a lhes conferir o necessário desenvolvimento e modernização, em prol de um modelo profissional. Para que isso efetivamente ocorra, é preciso que haja superação do estado de crise econômico-financeira que atualmente assola a maior parte dos clubes, detentores das grandes marcas do futebol brasileiro e que integram as séries A e B do campeonato brasileiro.
Nesse cenário, andou bem o legislador ao prever a possibilidade que estes clubes – e que hoje encontram-se estrangulados do ponto de vista financeiro – possam se transformar em empresas, sem os riscos inerentes que uma operação societária dessa natureza ensejaria, caso fosse levada a efeito, à luz das regras gerais vigentes, no atual estado de penúria dos clubes de futebol.
Assim é que a referida lei especial, usando do método indutivo, claramente desejou eliminar as amarras legais que dificultavam essa migração do modelo associativo para o modelo empresarial, criando uma verdadeira blindagem patrimonial para os clubes que optassem pelo modelo empresarial em detrimento do modelo associativo para gestão do futebol.
Dentre os diversos institutos colocados à disposição para quem optar pelo regime empresarial, ganha especial destaque também o novo instituto jurídico denominado Regime Centralizado de Execuções.
Basicamente, por meio deste regime, o clube que optar pela criação da SAF pode quitar as dívidas de sua responsabilidade por meio do pagamento de receitas próprias e das receitas que lhe serão transferidas pela SAF correspondentes a: (i) 20% das receitas correntes mensais auferidas pela SAF e (ii) 50% dos dividendos, dos juros sobre o capital próprio ou de outra remuneração que receba na condição de acionista.
Como tais receitas fatalmente não serão suficientes para pagar de imediato o montante da dívida do clube em aberto, previu a enunciada lei o prazo de 6 anos prorrogáveis por mais 4 anos para liquidação desse passivo.
Todas as dívidas cíveis sem garantias e trabalhistas inadimplidas pelo clube serão submetidas a um concurso de credores. A submissão a esse procedimento é de caráter obrigatório e independe da anuência dos credores. Caso haja saldo a pagar ao fim do prazo de 10 anos, a SAF é responsável subsidiária pela liquidação equivalente a tal montante.
Ocorre que alguns grandes clubes começam a fazer mau uso de tal benefício instituído em lei – e o pior, com o acolhimento por parte do Judiciário –, evitando que os resultados almejados pelo referido marco regulatório sejam de fato alcançados.
Assim é que grandes clubes, como o caso do Vasco da Gama e o Botafogo estão tentando reorganizar suas dívidas por meio do Regime Centralizado de Execuções (RCE) previsto nos artigos 14 a 24 da referida lei, sem oferecer qualquer tipo de contrapartida.
Já não bastassem a lei Zico, a lei Pelé e o próprio Profut que sempre exigiram contrapartidas para obtenção de benefícios fiscais a incidir sobre as dívidas perante o Fisco – e que até hoje não foram pagas, diga-se desde já –, agora a mesma cúpula de cartolas que sempre geriram os clubes brasileiros de forma amadora e sem qualquer tipo de responsabilidade mais efetiva desejam não somente manter o atual estado de coisas, como submeter investidores privados a um regime forçado de negociação por um longo período de 10 anos, sem
qualquer segurança de recebimento de seu crédito ao fim desse período. E o que é pior: com a benção do Estado.
A intepretação estritamente literal e acrítica que se está fazer nesse momento do art. 13, I c/c o art. 14, ambos da referida lei, somente denuncia o intento ilegal por parte dos clubes, na medida em que o próprio RCE, enquanto modo de quitação de dívidas, pressupõe para o seu regular funcionamento a existência de uma receita nova a ser gerada em favor dos clubes de futebol e que se consubstanciam justamente nos repasses a lhe serem realizados pela SAF, nos termos do art. 10. Com isso, se não há a SAF, qual a garantia adicional que os credores receberiam, em razão da dilação forçada de seu crédito para um período de até 10 anos? A falta desse verdadeiro requisito extrínseco impede por completo o processamento regular e formal da RCE nas circunstâncias desejadas por Vasco e Botafogo.
Tal convicção é ainda mais reforçada quando se percebe que os resultados advindos de tal modo de proceder seriam catastróficos, na medida em que nessa situação consolidada não haveria nem a profissionalização dos clubes de futebol, nem dinheiro novo para realização de novos investimentos, claros objetivos almejados pelo legislador ao instituir essa lei. Além disso, frise-se que o fôlego financeiro que será dado aos clubes por meio desse expediente virá justamente a partir do sacrifício daqueles que ousaram fomentar o mercado da bola, mediante a agressão de seu direito crédito, o que evidentemente não se pode tolerar.
Espera-se desse modo que os recursos dirigidos aos órgãos revisores eliminem as decisões que deferiram o processamento de RCE’s trabalhistas e cíveis distribuídos por Vasco e Botafogo recentemente e, corrijam imediatamente a disfunção por elas geradas.
Afinal, não é razoável se supor a institucionalização do calote como política pública para sanear os clubes de futebol que, em sua grande maioria, continuam a insistir com um modelo associativo que repele a atração de investimento privados tão necessários para modernização desse verdadeiro patrimônio cultural e social que é o futebol em nosso país.