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Mudanças na lei de improbidade administrativa: avanços ou retrocessos?

A reforma da lei de improbidade administrativa, produzida pela lei 14.230/21, aprimorou o microssistema de defesa do patrimônio público brasileiro.

6/1/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

O uso da função pública em proveito próprio ou alheio, que configura ato de improbidade administrativa, sempre foi motivo de repressão por nossas constituições, inicialmente em decorrência da prática de corrupção, abuso de poder ou descumprimeito de lei1, posteriormente como um dos crimes de responsabilidade do presidente da República2. A atual CF/88 a tipificou como sanção cível, independente da punição criminal, “na forma e gradação previta em lei”3. O então ministro da justiça, Jarbas Passarinho, ao explicitar os motivos do PL 1.441/91, que foi transformado na lei ordinária 8.429/1992 que disciplina a represssão dos atos improbos, justificou que “uma das maiores mazelas que, infelizmente, ainda afligem o país, é a prática desenfreada e impune de atos de corrupção, no trato com os dinheiros públicos, e que a sua repressão, para ser legítima, depende de procedimento legal adequado - o devido processo legal - impõe-se criar meios próprios à consecução daquele objetivo sem, no entanto, suprimir as garantias constitucionais pertinentes, caracterizadoras do estado de Direito”. 

Esse estatuto moralizador sofreu importantes mudanças com o advento da lei 14.230, de 22/10/21, destacando-se a previsão de que somente atos dolosos configurarão atos de improbidade administrativa4, o que, na verdade, foi a normatização do que a jurisprudência já vinha pacificando por todos os nossos tribunais superiores, ou seja, a exigência da presença da “má-fé” ou “dolo genérico” do agente, como condição para imputar-lhe a responsabilização pela prática do ato tido como ímprobo. As Cortes Superiores consideravam esse elemento subjetivo como a premissa inafastável do ato ilegal e ímprobo, sendo que a ilegalidade praticada somente adquirirá o status de improbidade, quando essa conduta antijurídica tiver a má e livre intenção do administrador de ferir os consagrados princípios constitucionais que regem a administração pública5.

O ministro Luiz Fux, quando ainda integrava o STJ, asseverava que a exegese das regras insertas no art. 11 da lei 8.429/92, considerada a gravidade das sanções e restrições impostas ao agente público, deve ser realizada cum granu salis , máxime porque uma interpretação ampliativa poderá acoimar de ímprobas condutas meramente irregulares, suscetíveis de correção administrativa, posto ausente a má-fé do administrador público, preservada a moralidade administrativa e, a fortiori, ir além de que o legislador pretendeu. A má-fé, consoante cediço, é premissa do ato ilegal e ímprobo e a ilegalidade só adquire o status de improbidade quando a conduta antijurídica fere os princípios constitucionais da administração pública coadjuvados pela má-intenção do administrador6. Esse entendimento revela a preocupação com as injustiças na aplicação cega da lei de improbidade, onde um gestor sério e honesto poderia ser punido por ter seguido uma orientação desacertada de sua procuradoria jurídica, por exemplo.

A reforma da lei de improbidade administrativa ao reconhecer os precedentes judiciais e normatizar a exigência da prática de ato ou omissão dolosa do agente público para sua configuração, levou muitos articulistas políticos, integrantes das forças policiais e dos MPs a defenderem que essas alterações legislativas criaram um retrocesso no combate a corrupção no Brasil. Essas ponderações, porém, necessitam ser bem refletidas, deixando de lado as paixões e para privilegiar a razão, pois, segundo Danti Alighieri, a razão vos é dada para discernir o bem do mal.

 A lei 14.230/21, além dessa correção que busca a primazia da justiça, trouxe também mudanças com maiores efeitos educadores e inibidoras de lesões aos princípios constitucionais da administração pública, como a previsão de que o nepotismo configura  improbidade, assim como o uso da máquina pública para fins de publicidade pessoal7.; Da mesma forma, a elevação da suspensão dos direitos políticos de até 10 para  até 14 anos, no caso de prática de improbidade que causa enriquecimento ilícito; a elevação da suspensão dos direitos políticos de até 8 para  até 12 anos, no caso de prática de improbidade que causa prejuízo ao erário.8; e a elevação do prazo prescricional de cinco para oito anos9.

Ao lado dessas mudanças, o legislador trouxe a previsão de que o MP poderá, conforme as circunstâncias do caso concreto, celebrar acordo de não persecução civil” exigindo “o integral ressarcimento do dano” a "reversão à pessoa jurídica lesada da vantagem indevida obtida, ainda que oriunda de agentes privados”10. O texto original proibia de celebração de acordos, transações ou conciliações, mas foi revogado pela medida provisória 703/15, novidade que levou Conselho Nacional do MP a disciplinar o uso do termo de ajustamento de conduta em sede de investigação de ato de improbidade administrativa11.

Com essas novas disposições – a possibilidade de uso do TAC e ANPC, inclusive nas ações em andamento12 - tornou-se mais ágil a imputação de responsabilidade ao autor de ato de improbidade administrativa, uma vez que no modelo anterior, demandava muito tempo em razão dos inúmeros recursos e expedientes procrastinatórios. Devido ao longo tempo para o deslinde final dessas ações, não raro motivavam a ocorrência de prescrições e, obviamente, impunidades. Dessa forma, tem-se que as mudanças operadas na lei de improbidade administrativa foram benéficas não só para o combate mais rápido à corrupção, como também para o aprimoramento do sistema jurídico brasileiro. Nesse último caso, a uma, pela tipificação como crime, “a representação por ato de improbidade contra agente público ou terceiro beneficiário, quando o autor da denúncia o sabe inocente”13, cuja previsão legal coibirá o denuncismo, que além de tomar muito tempo da justiça, era muito usado como revanchismo político. A duas, pela possibilidade de condenação em honorários sucumbenciais em caso de improcedência da ação de improbidade se comprovada má-fé14, situação que servirá como filtro para evitar o ingresso de ações temerárias e com nítido interesse pessoal. O reconhecimento da má-fé no ingresso ou continuidade da ação, além de impor ao autor da ação, o representante do MP, a responsabilidade pessoal pela sucumbência, também configura crime de abuso de autoridade, previsto no art. 30 da lei 13.869/19.

A reforma da lei de improbidade administrativa, ao meu sentir, foi a reposta do parlamento brasileiro aos reiterados abusos cometidos por alguns representantes dos MPs, que não a usam com o objetivo único de reparação de danos ao patrimônio público e à moralidade administrativa, mas, isto sim, como instrumento de perseguições políticas e para promoções pessoais. Que sirva de alerta.

_____

Constituição Imperial de 1884, arts. 131 a 133. Disponível aqui.

2 Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, art. 54, 6.º. Disponível aqui. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934, em, seu art. 57, f. Disponível aquiConstituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1937, no art. 85, d. Disponível aquiConstituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1946, em seu artigo 89, V, disponível aquiConstituição da República Federativa do Brasil de 1967, art. 84, V, disponível aquiEmenda Constitucional n.º 1 de 17/10/1969, artigo 82, V

3 CF/88, art. 37, § 4.º, que assim dispõe: Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”. Disponível aqui.  

4 Art. 9, 10 e 11 da lei 8.429/92 com redação dada pela lei. 14.230/21. Disponível aqui

TJ/SP - Apelação Cível : AC 1000458-20.2016.8.26.0493 SP 1000458-20.2016.8.26.0493, disponível aquiSTJ - RECURSO ESPECIAL : REsp 1919356 SC 2021/0028704, disponível aquiPágina 427 da Seção I do DJ/GO de 18/1/21, disponível aquiSTF AgInt no REsp 1.784.729 - SP (2018/0293075-0) disponível aqui.

6 Disponível aqui. 

7 Art. 11, XI, XII da lei 8.249/92, com redaçao dada pela lei 14.230/21.

8 Art. 12, I e II da lei 8.249/92, com redaçao dada pela lei 14.230/21.

9 Art. 23, lei 8.249/92, com redaçao dada pela lei 14.230/21.

10 Art. 17, B, I e II 23 da lei 8.249/92, com redaçao dada pela lei 14.230/21.

11 Resolução 179/17, em seu artigo 1.º, parágrafo 2.º Disponível aqui.

12 Art. 17 B, §4.º da lei 8.249/92, com redaçao dada pela lei 14.230/21.

13 Art. 19 da da lei 8.249/92, com redaçao dada pela lei 14.230/21.

14 Art. 23 B, § 2.º da lei 8.249/92, com redaçao dada pela lei 14.230/21.

Marcelo Celestino
Promotor de Justiça de Goiás aposentado e Advogado.

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