1. Panorama geral da Reforma trabalhista
O Governo Michel Temer marcou a história trabalhista por ter promovido a primeira grande reforma na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). A reforma trabalhista, lei 13.467/17, alterou mais de 200 artigos do texto celetista e reacendeu os debates em Direito e Processo do Trabalho.
A maior promessa da reforma trabalhista foi o incremento do emprego. A estimativa governista era a criação de mais de 2 (dois) milhões de postos de trabalho formais. Todavia, a promessa não foi alcançada. Em 2017 o Brasil tinha 12,3 milhões de desempregados, o cenário atual, 4 (quatro) anos pós reforma trabalhista, é do desemprego de 14,1 milhões. O saldo1 de empregos, neste quadriênio, é negativo.
A pandemia, a gestão pública ineficiente e os problemas econômicos são elementos que redundam no alto nível de desemprego. Contudo, direitos trabalhistas foram suprimidos da classe trabalhadora sem que nenhuma contrapartida, seja social ou econômica, fosse alcançada. Houve, com a reforma trabalhista, um retrocesso social e precarização do trabalho que representam um custo social de difícil recuperação.
O discurso baseia-se em vilanizar as normas trabalhistas, colocando-lhes a pecha de empecilho ao desenvolvimento, custo excessivo em prejuízo da lucratividade empresarial e entrave à criação de novos postos de trabalho. A realidade contrapõe o discurso de forma aguda. O panorama de direitos do trabalhador piora, os valores recebidos pelo trabalho reduzem e nada muda na sociedade.
Quanto mais se ataca o emprego, quanto menor a remuneração dos trabalhadores, os problemas econômico-sociais majoram proporção. É a comprovação que o discurso para o reformismo em prejuízo do trabalhador só representa interesses particulares, em detrimento dos interesses da sociedade. Afinal,
[...] o nível de emprego é determinado por decisões de investimento tomadas fora do mercado de trabalho. O custo trabalhista pode ser um fator pouco relevante ou apenas uma entre diversas variáveis a tomada de decisão dos empresários, sendo normalmente menos importante do que as políticas macroeconômicas na definição do nível de emprego2.
Ademais, o custo do trabalho tem sob si os encargos sociais, há tributos e contribuições a cada movimento laboral, do contratar ao dispensar. O Estado lucra sob os insumos produtivos, o custo do trabalho, o funcionamento das empresas e, também, sobre os produtos e serviços comercializados.
Extirpar direitos sociais jamais surtiu qualquer efeito prático no desenvolvimento, na economia ou no sucesso empresarial. Pelo reverso, a experiência reiterada demonstra que a redução do fluxo financeiro gerado pelos salários representa um risco para o sistema capitalista. Os empregados são também consumidores, reduzir a pecúnia na mão do trabalhador implica em restringir o giro econômico do consumo3.
Apesar de a reforma trabalhista ter apresentado resultados negativos na criação de empregos e no fomento da atividade econômica, a sanha reformista não arrefeceu. O atual governo tenta aprovar novas reformas precarizantes4. A ideia é sempre a mesma e repetida, criar mais modalidades de trabalho sem carteira assinada (sem férias, sem décimo terceiro e sem FGTS), inserir leis que impeçam a formação de vínculo empregatício, reduzir a competência da Justiça do Trabalho.
2. A reforma trabalhista e suas principais alterações
A reforma trabalhista (2017) foi aprovada forma abrupta e sem qualquer apego ao debate amplo e democrático. As alterações promovidas suscitaram dúvidas, críticas e impactaram na Justiça do Trabalho, sindicatos e toda sociedade. A par de modernizar as relações de trabalho e fomentar empregabilidade, institutos jurídicos de direito e processo do trabalho foram criados e outros foram extintos, sem que qualquer debate jurídico relevante tivesse sido realizado.
A insegurança jurídica advinda de tantas alterações, principalmente pelos muitos argumentos de inconstitucionalidades materiais, assombraram o cotidiano trabalhista. De um solavanco único, direitos sumiram ou se tornaram dificultosos. A reforma atingiu, até mesmo, entendimentos consolidados em Súmulas do Tribunal Superior do Trabalho (TST), em flagrante atuação legiferante para contradizer anos de jurisprudência pacificada. Todavia, até o momento, o TST não promoveu revisão de suas súmulas, o que gera uma perspectiva de maior insegurança.
Como a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) foi criada para proteger o hipossuficiente na relação de emprego, alterar dispositivos pode significar ampliar ou amesquinhar o aparato protetivo. Abordemos, a título de exemplo, 15 (quinze) pontos da reforma trabalhista que entendemos desfavoráveis aos interesses dos empregados:
- Termo de quitação anual – A reforma trouxe a possibilidade de ser feito um termo, a cada ano de trabalho, no qual o empregado confere quitação ao empregador das obrigações trabalhistas. O interesse em firmar este tipo de documento, feito enquanto o trabalhador depende do salário pago e da continuidade do emprego, favorece unicamente o empregador. Não há qualquer benefício para o emprego em dar quitação enquanto é subordinado e depende do emprego para sobreviver.
- Tempo a disposição – a troca de uniforme, considerado tempo de trabalho por estar a disposição do empregador, por exemplo, deixou de sê-lo. Após a reforma a troca de uniforme passou a não fazer parte da jornada de trabalho e também não poder ser computada como horas extras. O mesmo ocorreu com o tempo de estudo (ainda que fazendo cursos no interesse da empresa), alimentação (ainda que realizada de forma forçada na empresa, por ter o intervalo reduzido), higiene pessoal (ainda que realizada pelo labor deixar o trabalhador sem condições de retorno do trabalho com dignidade). A Súmula 366 do Tribunal Superior do Trabalho foi extremamente afetada pela reforma trabalhista.
- Horas in itinere ou de percurso – o trabalhador que tiver que ir e retornar de um local de difícil acesso ou não servido por transporte público perdeu o direito de contar o tempo gasto com tempo de labor, ainda que a empresa forneça o transporte e dele fique refém por ausência de outro meio de chegar ao trabalho. Este direito foi extinto com a reforma trabalhista.
- Banco de horas – antes o banco de horas existia apenas se negociado diretamente com o sindicato que impunha vantagens à classe trabalhadora pela possibilidade de fazer banco de horas. A reforma trouxe o banco de horas firmado por acordo entre empregado e empregador. É evidente que o empregado que discorde será dispensado, o que força o empregado a aceitar o banco de horas para continuar empregado.
- Banco de horas – horas extras habituais não mais descaracterizam o banco de horas, passa a ser normal ter o banco de horas e não mais excepcional. Os prejuízos para a saúde e segurança do trabalhador são evidentes, pois a permanência contínua em regime de horas extras sobrecarrega física e psicologicamente o trabalhador. A Súmula 85 do Tribunal Superior do Trabalho foi extremamente afetada pela reforma trabalhista.
- Intervalo de intrajornada – o intervalo foi reduzido para 30 minutos nas jornadas acima de 6h de trabalho diárias. Antes da reforma o intervalo era de 60 minutos, no mínimo. O empregado é premido a realizar a alimentação na empresa, de forma rápida e praticamente impossível qualquer repouso. A natureza salarial do intervalo suprimido foi alterada para indenizatória, gerando perda de recolhimentos a favor do trabalhador. A Súmula 437 do Tribunal Superior do Trabalho foi extremamente afetada pela reforma trabalhista.
- Trabalho em jornada 12x36 por acordo individual – antes da reforma era excepcional a jornada estendida, pois prejudicial à saúde e segurança do trabalhador e firmada por acordo e convenção coletivos (com participação sindical que negocia vantagens para estes trabalhadores). A Súmula 444 do Tribunal Superior do Trabalho foi extremamente afetada pela reforma trabalhista.
- Jornada noturna – a reforma limitou o pagamento de adicional noturno ao trabalho realizado até as 5h. A jurisprudência havia sedimentado que o trabalhador que começasse a laborar a noite e ultrapassasse as 5h da manhã, continuaria recebendo o adicional noturno, pois ainda não pode descansar do labor. Com a reforma isto foi simplesmente extinto.
- Fracionamento do intervalo – antes da reforma, caso uma parte do intervalo não fosse concedida, o empregador era condenado a pagar integralmente o intervalo suprimido. A reforma estabeleceu que o empregador só tem que pagar a parte que não concedeu de intervalo, como se o direito ao descanso pudesse ser partido e ainda assim existir.
- Imposto sindical – o sindicato perdeu a fonte de custeio de suas atividades sem nenhuma preparação ou tempo de adaptação. A desmobilização das categorias, por si só, já representa prejuízo para a classe trabalhadora.
- Negociação coletiva – a reforma trouxe a expressa autorização para negociar vários temas trabalhistas no sentido de reduzir a garantia já estabelecida em lei, a exemplo de:
- Fracionamento de férias – a reforma ampliou a possibilidade de partir as férias, saindo de dois períodos para três mediante concordância do empregado. A concordância na subordinação e necessidade de manter o emprego é fictícia.
- Rescisão de comum acordo – nova modalidade de rescindir o contrato de trabalho, segundo afirmado para evitar a fraude de dispensar e devolver a multa de FGTS. Na prática, pela observação, não foi modalidade que “pegou”, principalmente por não ter direito ao seguro desemprego.
- Fim da assistência gratuita na rescisão – o trabalhador com mais de um ano de serviços precisava homologar a rescisão no sindicato ou ministério do trabalho. Isto garantia uma efetiva fiscalização quanto a justeza do cálculo e verbas quanto ao pagamento em espécie. A reforma retirou isto, passou o empregado a receber a rescisão diretamente do empregador.
- Dispensa coletiva – o entendimento pacífico do TST era que para a dispensa coletiva ocorrer deveria haver negociação sindical. A reforma de forma expressa equiparou a dispensa coletiva à individual, dispensando a participação sindical e qualquer indenização adicional.
Consoante sobredito, foram mais de 200 artigos alterados ou acrescidos pela reforma trabalhista. Os temas abordados são os mais palpitantes para a classe obreira, pois altera o patrimônio jurídico até então conquistado.
3. Constitucionalidades e inconstitucionalidades da reforma trabalhista
Grande parte da reforma foi posta sob o crivo de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIn). Ao todo, foram propostas mais de 34 (trinta e quatro) ADIns, muitas ainda pendentes de julgamento no STF, mesmo após o transcurso de 4 (quatro) longos anos de nefastos efeitos da reforma trabalhista na classe trabalhadora.
No panorama de julgamentos do STF, até o momento, foram declarados inconstitucionais: pagamento de honorários sucumbenciais e periciais da parte beneficiária de gratuidade de justiça e a permissão de trabalho para a gestante e lactante em atividade insalubre. Noutra banda, o STF considerou constitucionais: o fim do imposto/contribuição sindical e a terceirização trabalhista em atividade fim. Dois temas sensíveis que favoreceram o enfraquecimento da estrutura sindical e a precarização do trabalho, que são as duas heranças da reforma trabalhista.
A Reforma Trabalhista está ainda distante dos debates de constitucionalidade, pois ainda pendem5 de julgamento no STF:
- Desnecessidade de participação sindical na dispensa coletiva e na homologação de acordo extrajudicial trabalhista (ADIn 6142 – Relator Ministro Edson Fachin);
- Alteração de regramentos sobre edição de súmulas e enunciados pelo TST (ADC 62; ADIn 6188 – Relator Ministro Ricardo Lewandowski);
- Limitação ou tabelamento do dano moral (ADIn 5870, 6050, 6069 e 6082 – Relator Ministro Gilmar Mendes);
- Trabalho intermitente (ADIn 5826, 6154 e 5829 – Relator Ministro Edson Fachin);
- Ultratividade das normas coletivas (ADPF 323 – Relator Ministro Gilmar Mendes);
- Prevalência do acordo entre as partes sobre o legislado (ARE 1121633 – Relator Ministro Gilmar Mendes);
- Jornada 12x36 por acordo individual (ADIn 5994) – Ministro André Mendonça após a aposentadoria do Ministro Celso Mello);
- Novos requisitos da petição inicial/reclamação trabalhista – liquidação dos pedidos (ADIn 6002 – Relator Ministro Ricardo Lewandowski).
Quando os pontos questionados serão julgados é difícil prever, primeiro pela ausência de pauta dos mesmos, segundo pelos pedidos de vistas. Em que pese a discussão sobre a constitucionalidade, em geral, há pouca ou nenhuma experiência trabalhista na composição do STF, a exceção da Ministra Rosa Weber e do Ministro Marco Aurélio Mello (recentemente aposentado) que foram ministros do Tribunal Superior do Trabalho.
A Ministra Rosa Weber atualmente é a única com experiência na área trabalhista, embora alguns outros ministros tenham sido procuradores de estado e advogados da união, cargos nos quais, em tese, há algum contato com a área trabalhista. A falta de vivência dos ministros na temática oferta uma visão externa alheia à dinâmica dos conflitos trabalhistas, o que pode implicar em decisões menos densas do que o esperado.
4. Considerações finais
Qualquer alteração legislativa deve ser efetuada com fito de melhoria da condição social e em benefício da sociedade, favorecendo o desenvolvimento. As alterações legislativas promovidas com intuito de baratear mão-de-obra estão fadadas ao insucesso e a repetir o retrocesso social e econômico que a reforma trabalhista representa.
Está mais que evidente e comprovado, que por trás do discurso de criação de empregos e desenvolvimento econômico, há tão somente intenção de precarizar o trabalho sem qualquer contrapartida social. É preciso combater essa lógica sem fundamento e buscar meios efetivos de promover crescimento, incentivando e qualificando a classe trabalhadora, reduzindo os custos tributários da relação de emprego, majorando o padrão de consumo da classe trabalhadora, garantindo-lhe renda digna.
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1 Reforma trabalhista: 4 anos depois, saldo negativo de empregos. Brasil Econômico, 07/10/2021. Disponível aqui. Acessso em 12 nov. 2021.
2 FILGUEIRAS, Vitor Araújo. As promessas da Reforma Trabalhista: combate ao desemprego e redução da informalidade. In: KREIN, José Dari; OLIVEIRA, Roberto Véras de; FILGUEIRAS, Vitor Araújo (organizadores). Reforma trabalhista no Brasil: promessas e realidade. Campinas: Curt Nimuendajú, 2019, p. 14-53. (citação referente à página 23 do texto)
3 FILGUEIRAS, Vitor Araújo. As promessas da Reforma Trabalhista: combate ao desemprego e redução da informalidade. In: KREIN, José Dari; OLIVEIRA, Roberto Véras de; FILGUEIRAS, Vitor Araújo (organizadores). Reforma trabalhista no Brasil: promessas e realidade. Campinas: Curt Nimuendajú, 2019, p. 14-53.
4 SEABRA, Cátia; CASTANHO, William. Nova proposta de reforma trabalhista libera domingos e proíbe motorista de app na CLT. Folha de São Paulo, 04/12;2021. Disponível aqui. Acesso em 13 de dez. 2021.
5 MAIA, Flávia; FECONDO, Felipe. Entenda o que o STF ainda precisa decidir sobre Reforma Trabalhista. Jota, 22/10/2021. Disponível aqui. Acesso em 17 nov. 2021.
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MAIA, Flávia; RECONDO, Felipe. Entenda o que o STF ainda precisa decidir sobre Reforma Trabalhista. Jota, 22/10/2021. Disponível aqui. Acesso em 17 nov. 2021.
OLIVEIRA, Isaac de. 4 anos depois, reforma trabalhista não gerou 'boom' de empregos prometido. Economia UOL, 07/10/2021. Disponível aqui. Acesso em 12/11/2021.
Reforma trabalhista: 4 anos depois, saldo negativo de empregos. Brasil Econômico, 07/10/2021. Disponível aqui. Acesso em 12 nov. 2021.
SEABRA, Cátia; CASTANHO, William. Nova proposta de reforma trabalhista libera domingos e proíbe motorista de app na CLT. Folha de São Paulo, 04/12/2021. Disponível aqui. Acesso em 13 de dez. 2021.
KREIN, José Dari; OLIVEIRA, Roberto Véras de; FILGUEIRAS, Vitor Araújo (organizadores). Reforma trabalhista no Brasil: promessas e realidade. Campinas: Curt Nimuendajú, 2019.
FILGUEIRAS, Vitor Araújo. As promessas da Reforma Trabalhista: combate ao desemprego e redução da informalidade. In: KREIN, José Dari; OLIVEIRA, Roberto Véras de; FILGUEIRAS, Vitor Araújo (organizadores). Reforma trabalhista no Brasil: promessas e realidade. Campinas: Curt Nimuendajú, 2019, p. 14-53.