As transformações jurídicas ocorridas nas últimas décadas fizeram com que o direito, enquanto instrumento de regulação de comportamentos - social e estatal, fosse compelido a se ajustar à nova realidade. O mundo mudou e fez com que o direito deixasse de estar enraizado em uma cultura excessivamente positivista, passando a valorizar os princípios como elementos norteadores da atuação jurídica. Ocorreu de fato uma revolução no trato do direito enquanto ciência e enquanto ordenamento jurídico: fala-se em mutação constitucional e em igualdade material, por exemplo. Obviamente, ficaram no passado os entendimentos de que ao juiz cabia apenas dizer friamente o direito, abstendo-se de atividades interpretativas e valorativas e atentando-se exclusivamente - e tão somente - aos limites do comando legal.
A nova compreensão conduz o operador jurídico a uma construção sistêmica do direito, não mais restrita aos artigos de lei, isoladamente. Essa visão holística não despreza toda a conjuntura de fatos e valores sociais na análise dos comandos legais, levando o intérprete a uma integração de diversos fatores. Trata-se, portanto, a utilização de princípios de verdadeiro instrumento de integração normativa, pois permite que a interpretação da lei carregue a visão, cultura, qualificação e outros atributos que a sociedade exige. Nesse espectro principiológico de interpretação do direito encontra-se o princípio da isonomia, que consiste em um dos pilares éticos do direito contemporâneo.
Trata-se a isonomia de um dos princípios norteadores da atividade legislativa e das relações jurídicas concretas. Em linhas gerais, o princípio isonômico proíbe toda sorte de discriminação, tratando a todos de forma igualitária, porém não fechando os olhos para as desigualdades já existentes. Daí o termo "tratar os desiguais na medida de suas desigualdades", que representa a igualdade em seu sentido material - a isonomia propriamente dita, em que o papel do Estado consiste em equilibrar a balança, concedendo ao desigual os meios necessários para que haja como igual. Por meio desse princípio, portanto, proíbe-se a arbitrariedade, enrustida em discriminações odiosas e desapegadas de racionalidade, impondo ao Poder Público total lisura em suas relações internas e externas, reservando o comportamento estatal a emanações isonômicas, mesmo no exercício de suas atividades econômicas.
No que se refere às atividades econômicas, a Administração Pública é uma das grandes molas propulsoras da economia nacional, visto que, para atingir seus fins, necessita celebrar contratos com particulares. Essas contratações exigem adequada parametrização e distinção do objeto pretendido. Essas distinções, definidas com o propósito de viabilizar a seleção da melhor proposta de fornecimento de bens ou de serviços, caso mal projetadas, podem tornar a execução do procedimento licitatório eivado de violações ao tratamento isonômico devido aos particulares. Não é o que se deseja.
A licitação possui a sua obrigatoriedade determinada pela Constituição Federal de 1988. Como se caracteriza fundamentalmente pela competição entre particulares - para se saber quem terá a preferência de contratação com o Poder Público, este deverá não apenas promover a competição, mas promovê-la de forma isonômica - fornecendo ferramentas que equalizem a atuação dos concorrentes. Isso implica que a Administração não empregue, por exemplo, preferências por marcas, restringindo assim a participação do maior número possível de competidores que forneçam aquele mesmo objeto. Não apenas isso, implica em que a Administração empregue ferramentas para integrar os licitantes mais fracos - preferências por contratação de ME e EPP, por exemplo, que em geral possuem menor poder de mercado que as grandes companhias.
O princípio da isonomia e a licitação são indissociáveis. O princípio consubstancia a própria razão de ser do procedimento licitatório: realiza-se a licitação, entre outras razões, para garantir que todos os interessados possam competir entre si com iguais possibilidades. Dá-se aos particulares, por meio de licitação, a possibilidade de empregar esforços - mesmo em disputa contra entes de elevados níveis de poder - com o propósito de contratar com o Estado. Os dois são evidentemente indivisíveis, visto que a licitação existe justamente para garantir, entre outras coisas, a isonomia.
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de Menezes Niebuhr, Joel. O princípio da isonomia nas licitação públicas. Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Curitiba: Juruá. 230 p, 1999. Disponível aqui. Acesso em: 15 dez. 2021.