Se assumirmos um contexto de Estado Democrático de Direito, dúvidas não há de que a função primordial dos tributos é financiar o Estado para que preste as atividades que lhe são atribuídas pela Constituição. A essa finalidade dá-se comumente o nome de função fiscal dos tributos.
Acontece que – e essa ideia não é nada nova, talvez no máximo as etiquetas sejam mais recentes (e, na lição de William Shakespeare, podemos chamar a rosa como desejarmos, e seu perfume seguirá sendo o mesmo1) –, os tributos são comumente empregados também para estimular ou inibir determinadas posturas da sociedade contribuinte. Nomeia-se esta como função extrafiscal.
Entre essas duas funções, ocupando uma zona interseccional, existe um outro elemento de vital importância: a capacidade contributiva como eixo de exação para atender à função do tributo como instrumento de distribuição de renda e garantia do mínimo existencial ao máximo de pessoas.
É constitucionalmente admitido e incentivado que aqueles que geram mais riqueza sejam mais onerados pela tributação de modo que transfiram ao Estado recursos que deverão utilizados também para atendimento àqueles que transferem menos recursos.
Embora a ideia macro de tributação traga consigo a lógica contraprestacional como fundamento nuclear, notamos que por princípio de solidariedade este deve ser o resultado observado para a sociedade como um todo, e não apenas em uma perspectiva individual.
As ideias de contrato social (aqui, vista como escolha da sociedade de viver de modo organizado), de Estado (protetor eleito, seja por Deus ou pela sociedade que majoritariamente aceita esse Deus) e de tributos (meios de a sociedade financiar esse Estado) estão intimamente conectadas.
O Estado só existe pela crença majoritária da sociedade em que existem benefícios para tanto. Mesmo nos clássicos regimes absolutistas (e ainda hoje há aqueles em que as Constituições são meramente nominais), a sociedade acreditava que os reis cobravam impostos de seus súditos não apenas para financiar seus luxos, festas e banquetes, mas também seus exércitos – que, ao menos em tese, se prestavam a garantir a segurança nacional contra os inimigos externos, aí satisfazendo a sociedade contribuinte.
Um problema grave se instala quando essa crença é abalada. A crise no aspecto contraprestacional da tributação foi um dos mais relevantes fatores que fizeram cair regimes de tirania; a sociedade mais evoluída, quando se enxerga também titular de direitos e vítima de opressões, só aceita pagar tributos quando observa em algum grau a eficiência do Estado que financia.
Um exemplo pode nos demonstrar este ponto: suponhamos a entrada em um restaurante liberal, no qual é disponibilizado um extenso e plural cardápio. Entre as opções mais baratas, há torradas secas e água potável. No rol de mais caros, destacam-se vinhos finos e lagostas carnudas acompanhadas de trufas e sobremesa de alta culinária francesa.
Sem projeções ainda comparativas ou aprofundamento histórico ou no conceito meritocrático, seria honesto sugerir que, em lógica ainda apenas individual, existem alguma justiça e paz de espírito tanto quando pagamos barato pela torrada seca (mais abundante, menos elaborada) quanto quando pagamos caro pela lagosta (menos abundante, mais elaborada).
Mas há um cenário de insatisfação individual generalizada e em curto prazo: quando quem paga o preço de lagosta só come torradas secas e quando quem paga pelas torradas secas não tem nada à mesa.
Contudo, precisamos ir além: e se pensarmos em um restaurante solidário, em que o sujeito de maior capacidade, ao pedir a lagosta, arca com os custos também de uma refeição frugal de torradas para um terceiro que não tem por si viabilidade de a adquirir, abre-se ainda mais o leque de possível insatisfação: o cenário em que cada um come aquilo pelo qual pagou, mas apesar de contida no pacote da lagosta, a torrada não é fornecida a quem de direito.
Aqui, embora tenhamos indivíduos satisfeitos em primeiro momento, em uma visão derradeira toda a sociedade deveria estar insatisfeita – afinal, fornecer as torradas aos excluídos poderia ser menos custoso ao restaurante do que proteger os que comem daqueles que têm fome.
Quando os clientes percebem que essa equação se desequilibra, pode ser hora de trocar de local. E, em pleno século XXI, em um momento de globalização e digitalização em que se sabe em segundos o que ocorre do outro lado do globo, essa consciência é crescente e quase inevitável.
Em uma perspectiva constitucional, o Estado não se justifica por si; só existe para servir a sociedade na exata medida em que, à luz da Constituição, ela decide que quer ser servida e protegida. Quanto maior o grau de proteção desejado, maior a necessidade de mobilização de recursos para tanto.
As ideias clássicas de Estado mínimo nasceram a partir desse sentimento de sufocação por um Estado presente, mas não contraprestacional; um idealista liberal recém-saído de um regime absolutista poderia açodadamente dizer que a cura para esse desbalanceamento seria um Estado mínimo. Bastariam as liberdades ditas negativas, isto é, que o Estado nada fizesse, e apenas respeitasse a vida, a liberdade e a propriedade privada: além de tudo, seria barato.
Essa visão se origina da percepção do Estado como inimigo e do particular como capaz de autocontenção no exercício da lei do mais forte. Os fundamentos dessa sugestão nos soam incompletos, e por diversos motivos. O principal deles é de que a experiência mostra que, sem instituições fortes, prevalece a lei da selva. O Estado, a fim de proteger seu povo, precisa estar capacitado não apenas a conter a si próprio (sistemas elaborados de freios e contrapesos), mas ser apto a restringir abusos dos particulares (imposição jurisdicional, autoexecutoriedade administrativa, capacidade legiferante) e de outros Estados (soberania nacional, representatividade internacional).
A fim de construir uma mecânica eficiente na gestão da máquina pública, vislumbrar e reconhecer o conceito de finitude é essencial: retornando a nosso exemplo, torradas, lagostas e dinheiro são bens escassos.
Poder-se-ia alegar que, por ser uma criação humana, uma ficção, o dinheiro poderia ser replicado indefinidamente. Isso não ocorre porque o capital, mesmo artificial por origem, precisa ser escasso por planejamento sustentável. Se ele não acompanhar a inevitável finitude dos recursos adquiríveis, ele perde seu referencial básico de valor, ao que denominamos processo inflacionário.
Caso consideremos a eficácia dos direitos fundamentais em suas amplitudes tanto vertical (Estado-indivíduo) quanto horizontal (indivíduo-indivíduo), notaremos que eles são alcançados não apenas quando o Estado deixa de utilizar seu imenso poder para sufocar o súdito, mas também quando o faz para evitar que um súdito mais forte oblitere o mais fraco.
Modernamente, após os modelos absolutistas, mínimo e do bem-estar social, o Estado percebeu que não é capaz de sozinho resolver as missões constitucionais com a eficiência necessária, e assumiu uma posição diversa das clássicas (dono de tudo / mero espectador / executor): tornou-se um gestor da sociedade, em constante diálogo com ela.
Pois o Estado-gestor, ao atuar também nas relações horizontais, intervém de modo mais eficiente e menos custoso no domínio socioeconômico. O conjunto de medidas empregadas nesse desiderato recebe o nome de regulação. E, como pretendemos demonstrar, a função tributária extrafiscal pode ser um de seus principais trunfos.
Vamos lembrar o significado e normatividade da constituição. Essa recuperação do papel da linguagem na constituição e as normas que são extraídas da estrutura fundamental do Estado é importante para analisar o alcance das expressões como "extrafiscalidade", "atividade regulatória do Estado", e "limitações ao poder de tributar".
As três expressões destacadas serão analisadas sinteticamente sob a matriz da Constituição. E de que contexto estaríamos falando? Ora, daquele em que toda atividade do Estado Brasileiro está voltada a cumprir os objetivos da República respeitando os fundamentos de sua existência.
Comecemos, pois, pela extrafiscalidade. Ela existe quando a Constituição atribui competência ao ente tributante para instituir um tributo cuja principal função não é apenas gerar caixa, mas regular a atividade socioeconômica: estimular com baixa carga ou inibir com alta carga alguma postura2.
Do breve conceito de extrafiscalidade acima já se percebe como as expressões analisadas estão intimamente ligadas, na medida em que atribuir competência na Constituição é limitador do poder de tributar; e regular a atividade econômica é intervenção indireta do Estado na economia.
Passemos às limitações ao poder de tributar. A Constituição, logo ela, não contém expressões inúteis. Quando a competência é atribuída pela Constituição, ela é fruto de uma tradição de participação popular na autorização para criação de exações tributárias. Essa tradição, que remonta ao "no taxation without representation", se acentua com a democracia e ganha contornos ainda mais claros no constitucionalismo do segundo pós-guerra. Assim sendo, a autorização democrática para instituição de tributos extrafiscais e seu manejo pelo poder de tributar está conformado às balizas que o povo erigiu para conter o Poder do Estado.
A extrafiscalidade não vive por si nem se autorreferencia; ela significa algo nesse contexto. A função extrafiscal da tributação não impede o aproveitamento das receitas derivadas originadas da atividade fiscal, mas proíbe que o tributo seja utilizado de forma contrária ao que a regulação do Estado se propõe a atingir.
Por isso, a função extrafiscal de um tributo é aquela que não permite ao Estado aumentar a carga tributária de um produto essencial e não tributar outro, nocivo à saúde. A razão é simples: dentre os fundamentos do Estado está a dignidade da pessoa humana e, dentre os objetivos, o desenvolvimento nacional.
Ora, respeitar a dignidade da pessoa humana é preservar, no mínimo, o essencial. Essa proteção do mínimo protege a liberdade de escolha do indivíduo, que ainda tem à sua disposição o produto nocivo – mesmo que onerado pela tributação. Em outras palavras, o nocivo ainda estará disponível, porém custará mais.
Neste cenário o desenvolvimento nacional é estimulado pelo incentivo a produtos e serviços que preservem os objetivos e princípios basilares da República, enquanto a liberdade de escolha e de iniciativa é preservada, mas com carga tributária maior a produtos e serviços com potencial lesivo à coletividade.
Percebemos, de pronto, a função e a estrutura da norma da extrafiscalidade3 na ação do Estado na economia através da regulação operada por meio da tributação4. Com isso já é possível identificar o móvel do Estado em sua atividade tributária quando presente a extrafiscalidade5: incentivar e desincentivar comportamentos mais ou menos adequados ao alcance do bem comum.
A partir disto, levanta-se o seguinte questionamento: pode ocorrer de um produto ou serviço considerado essencial se encontre tributado de forma "mal calibrada"? A resposta nos parece positiva, até mesmo pela complexidade das relações sociais e técnicas e que se encontram em constante desenvolvimento, quer no ambiente regulatório, quer no tributário.
Atento a tais fatos e visando a trazer novamente o "equilíbrio para a balança", não restou ao contribuinte senão se valer do princípio constitucional da inafastabilidade da apreciação pelo Judiciário6, questão que foi recentemente analisada pelo STF no RE 714.139/SC7 (Tema 745 de Repercussão Geral8) em que se questionava a fixação de alíquota de 25% (vinte e cinco por cento), no Estado de Santa Catarina, sobre os serviços de energia elétrica e telecomunicações, portanto, acima da alíquota geral de 17% (dezessete por cento) adotada pela referida unidade federativa. Eis como restou fixada a tese de repercussão: "Adotada, pelo legislador estadual, a técnica da seletividade em relação ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços — ICMS, discrepam do figurino constitucional alíquotas sobre as operações de energia elétrica e serviços de telecomunicação em patamar superior ao das operações em geral, considerada a essencialidade dos bens e serviços".
Notem que não existiu simplicidade no caso (afinal, o placar ficou em 8 a 3 quanto à alíquota da energia elétrica), pois se de um lado temos o exercício do poder de tributar por parte do Ente Federativo dentro dos parâmetros estabelecidos pela Constituição, de outro temos o fato de que uma tributação "mal calibrada" para serviços essenciais gera uma distorção no sistema, acarretando o aumento do custo, afastando investimentos e o acesso a estes serviços, fato inclusive, destacado pela ANEEL9, durante o julgamento.
E vejam que, vencedora a tese sustentada pelo contribuinte, não significa que o Ente Federativo perderá receitas a longo prazo: isto pode acontecer em um primeiro momento, mas com a redução dos custos e atrativos daí decorrentes, em um futuro bem próximo as receitas poderão superar o patamar atual, compensando-se as perdas iniciais.
Como se percebe, pois, a mesma extrafiscalidade que permite ao Estado intervir na economia, por vezes poderá ser usada como fundamento para restringi-lo quando sua atuação caminhar de modo diverso daquela constitucionalmente prevista, ao cabo do que se nota, não diferente do que ocorre com demais funções estatais, tratar-se a extrafiscalidade de mais um poder-dever, isto é, um fundamento de validade para a conduta de gestor da máquina pública.
É uma forma de o Estado dirigir a sociedade. E de a sociedade dirigir o Estado. Como deve mesmo ser em uma República Constitucional e Democrática de Direito.
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1 Disponível aqui – Romeu e Julieta, ato II.
2 Como exemplo recente, pode-se citar o Decreto n° 10.305/2020 e outros que lhe sobrevieram para promover redução a zero da alíquota do IOF nas operações de crédito durante a pandemia da COVID-19, com o intuito de facilitar o acesso ao crédito.
3 "A tributação, assim, acha-se ligada a` concepção social e política do Estado, variando seus fins segundo as tendências de cada organização política. Através de seu poder fiscal, o Estado intervém no controle da economia e do meio social, passando o imposto a possuir, ao lado da função fiscal, uma função extrafiscal (o imposto e' visto como instrumento de intervenção ou regulação pública, de dirigismo estatal). Impostos extrafiscais são, pois, os impostos de ordenamento, buscando finalidade no âmbito da política econômica e social"(MORAES, Bernardo Ribeiro de. Compêndio de direto tributário, 4. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1995, v. I. p. 442-443).
4 Feito este esboço apressado sobre a identificação do fenômeno da extrafiscalidade, cabe-nos agora dar uma ideia dos seus limites, os quais, como de- corre sobejamente de quanto vimos de dizer, não coincidem como os do direito fiscal (clássico), aproximando-se antes do direito econômico, em que materialmente esse fenômeno se integra". E adiante: "Por isso, o teste constitucional das medidas econo^mico-sociais limita-se a verificar se elas se revelam arbitrárias ou sem fundamento racional bastante (o que será' difícil de ocorrer dado o seu fundamento racional de intervenção econômica) e se se apresentam excessivas ou desproporcionais lato sensu, atento aos objetivos que visam prosseguir"( NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a compreensão constitucional do Estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 1998, p.679)
5 Merece nota, outrossim, que a identificação de tal mitigação no princípio da legalidade insere-se no ordenamento exclusivamente em função das normas tributárias indutoras, não parecendo cabível possa o Executivo, diante de mera situação de falta de caixa, valer-se do permissivo constitucional para ampliar seus recursos financeiros, sem prévio exame do Poder Legislativo. Sustenta-se tal afirmação na ideia de que se deve buscar, no Ordenamento, um sistema, senão unitário, pelo menos coeso, tendendo, daí, à coerência. SCHOUERI, Lui's Eduardo. Normas tributa'rias indutoras e intervenc¸a~o econo^mica. Rio de Janeiro: Forense, 2005
6 "XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito"; (art. 5º, XXXV, CFRB/88)
7 http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4307031
8 Disponível aqui. Tema=745.
9 Agência Nacional de Telecomunicações, criada pela lei 9.472/97 (art 8º).