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A reforma da lei de improbidade administrativa vai impactar ações em curso e retrata a divisão da sociedade

A lei 14.230/21 define novo conceito de improbidade administrativa, inova em normas (materiais e processuais), divide opiniões mas traz uma certeza: é uma reação legislativa que vai mudar o rumo das coisas.

13/12/2021

 

(Imagem: Arte Migalhas)

Após três anos de tramitação, o projeto de lei que estabelece novas regras para os processos por improbidade administrativa foi à sanção e se tornou a lei 14.230/211, publicada no DOU há poucas semanas. 

O conteúdo da reforma pode ser analisado por dois prismas, o do esvaziamento da persecução da corrupção, como assim compreende a ANAFE (Associação Nacional de Advogados Públicos Federais)2, por exemplo, ou, ainda, o da incorporação de garantias fundamentais, que são muito presentes no processo penal, como entende o jurista Heitor Sica, professor da FDUSP (Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo)3, participante da proposta original de modificação da LIA (PL 10.887/18). 

O velho embate: punitivismo x garantismo. 

Sendo assim, a análise jurídica da reforma da Lei de Improbidade Administrativa (8.429/92) perpassa uma série de assuntos que compõem o sistema de direito administrativo sancionador. E essa é a tônica da novidade legislativa4. Com cerca de 25 artigos alterados, revogados ou incluídos, a lei 14.230/21 produz drástica modificação nesse pilar do microssistema de anticorrupção, e, por isso, neste texto, não se tem a pretensão de abordar a inovação legislativa por completo, mas se faz um apanhado das principais alterações. 

Em uma divisão entre normas materiais e processuais, foi modificada a natureza da improbidade administrativa e a forma de se puni-la. Explica-se: o art. 1º da LIA agora apresenta conceito de improbidade administrativa restrito àquele que é realizado com dolo, em outras palavras, atos culposos não são puníveis (aqueles praticados com culpa grave ou por imprudência, negligência, imperícia). Nessa toada, foram incorporados princípios como o da imputação adequada, da pessoalidade e da proporcionalidade, afastando-se eventual responsabilidade objetiva (ou quase objetiva) dos agentes, como amplamente criticado por juristas e já decidido pelo Superior Tribunal de Justiça anteriormente (STJ - AGRG ARESP n.º 21.662/SP). O que é típico do “Direito Administrativo Sancionador” moderno (OLIVEIRA, 2006). 

Embora antes pudesse haver condenações com base em atos culposos, na forma da antiga redação do art. 10, da LIA, no qual estavam dispostos atos lesivos ao erário, com a lei 14.230/21, apenas os atos dolosos são passíveis de punição por improbidade administrativa5, devendo reduzir o número de condenações pelo mero exercício da função ou desempenho de competências públicas. Há de se revisar muitas decisões.

 De mesmo modo, houve maior objetividade no rol de hipóteses de atos considerados ímprobos, por atentarem contra princípios da administração pública. Esses eram exemplificativo (STJ - AGRG ARESP n.º 295.527), e agora as hipóteses passam a ser taxativas (art. 11, caput e §2º). São alguns deles: o nepotismo (art. 11, XI) e a promoção pessoal (art. 11, XII) – aquela condicionada ao dolo de agir com finalidade ilícita –, ressaltando-se que os atos que atentam contra os princípios da administração pública só são passíveis de sanção se houver “lesividade relevante” (art. 11, § 4º). Por isso, a intenção de punir o agente público desonesto, e não o inábil, ganha mais segurança jurídica, como é defendido por aqueles que apoiaram a reforma. 

Em regra, quanto ao enriquecimento ilícito (art. 9º) e danos ao erário (art. 10), o condenado somente perderá a função pública se ainda ocupar o mesmo cargo, ou outro com a mesma natureza e qualidade daquele6, em que estava quando do cometimento do ato ímprobo, salvo no caso dos ilícitos do art. 9º, em que o juiz, diante das circunstâncias do fato, poderá estender a punição aos demais vínculos. 

O instituto da prescrição foi remodelado. O prazo, que antes era de 05 anos, agora é de 08 anos, sendo contado, não mais da perda do vínculo, mas a partir da ocorrência do fato, ou, no caso de infrações permanentes, do dia em que cessou a permanência (art. 23). E não para por aí, agora há previsão legal para a prescrição intercorrente (§8º), que tem prazo de 04 anos e pode ser reconhecida entre os diversos marcos interruptivos previstos no §4º, do artigo 23. 

Em síntese, com a entrada em vigor da lei 14.230/21: (i) somente o MP tem legitimidade para ingressar com a ação de improbidade (art. 17), reduzindo o rol que era estendido à procuradoria da pessoa jurídica interessada; (ii) a decretação da indisponibilidade somente recairá sobre bens que assegurem exclusivamente o integral ressarcimento do dano ao erário, sem incidir sobre os valores a serem eventualmente aplicados a título de multa civil ou sobre acréscimo patrimonial decorrente de atividade lícita (art. 16, §10); (iii) as sanções eventualmente aplicadas em outras esferas deverão ser compensadas com as sanções da LIA (art. 21, §5º); passa a ser melhor regulado o acordo de não persecução civil, que não tinha previsão legal, que é aplicável desde que dele advenham, ao menos, o ressarcimento integral do dano e a reversão à pessoa jurídica lesada da vantagem indevida obtida, ainda que oriunda de agentes privados. 

Há uma enormidade de previsões instrumentais relevantes. Não cabe esgotar o tema7 8. Por isso, é preciso estar atento às provocações (a hora é essa!) e aos futuros posicionamentos do Poder Judiciário e do Ministério Público. 

Haverá retroatividade ou não das inovações benéficas aos réus em ações de improbidade, inclusive quando transitadas em julgado, o que poderia ocorrer por meio de ações rescisórias ou por mera petição ao juízo do cumprimento de sentença. 

Além disso, o MP prosseguirá ou não com as ações de improbidade administrativa em curso  ajuizadas pela Fazenda Pública (inclusive em grau de recurso), diante do prazo exíguo que lhe foi concedido pela Nova Lei (01 ano a partir da data de publicação da lei 14.230/21). 

Quanto a isso, há de se aguardar. 

Não cabe um maior aprofundamento nas razões que levaram o Congresso a produzir a lei 14.230/21, que é certo é que nas últimas décadas houve extremo uso político das ações de improbidade e, sem juízo de valor algum, a classe política reagiu. Um movimento corporativista, mas também reativo, como o que deu origem à lei 12.846/13,  a Lei Anticorrupção, que sofreu influências das manifestações de rua de 20139.

 Ainda que haja uma dicotomia entre perfis punitivistas e garantistas no debate público, e pode se dizer que essa alteração da LIA é uma amostra dessa divisão, suspeita-se que o Poder Legislativo está há tempos desconectado da sociedade. Não seria ocioso lembrar a advertência do Eminente Ministro do STF, Luís Roberto Barroso: “a expansão do Judiciário não deve desviar a atenção da real disfunção que aflige a democracia brasileira: a crise de representatividade, legitimidade e funcionalidade do Poder Legislativo. Precisamos de reforma política. E essa não pode ser feita por juízes”10. 

Se o Poder Legislativo Federal está desconectado ou não dos anseios dos representados, é um tema a ser tratado pelos cientistas políticos e sociólogos, o que se percebe com nitidez é que, quando se trata de legislar sobre o microsistema de anticorrupção (que incluía a própria Lei n.º 12.846/13 e a de Improbidade Administrativa), o Congresso Nacional não tem sido refratário a pressões, ainda que essas não sejam aparentemente convergentes.

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1 BRASIL. [Lei n.º 14.230 (2021)]. Lei Federal que altera a Lei de Improbidade Administrativa n.º 8.492/92. Brasília, DF: Presidência da República, [2021]. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.230-de-25-de-outubro-de-2021-354623102 Acesso em: 08 dez. 2021.

2 BOLSONARO sanciona, sem vetos, projeto que flexibiliza lei de improbidade administrativa. Portal G1, Rio de Janeiro, 26 de outubro de 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/10/26/bolsonaro-sancao-lei-de-improbidade-administrativa.ghtml Acesso em 08 dez. 2021.

3 USP. Texto-base da nova Lei de Improbidade Administrativa tem contribuição do professor Heitor Sica. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Disponível em: http://direito.usp.br/noticia/d195c6f0d631-texto-base-da-nova-lei-de-improbidade-administrativa-tem-contribuicao-do-professor-heitor-sica Acesso em 08 de dez. 2021.

4 SENADO. Lei define novas regras para improbidade administrativa. Agência Senado, Brasília, out. 2021. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/10/26/lei-define-novas-regras-para-improbidade-administrativa Acesso em: 08 dez. 2021. 

6 Para ilustrar, no caso de cargo eletivo, perderia ainda que em mandatos diferentes de um mesmo cargo (por exemplo, se prefeito ou governador, mesmo que de cidades e estados diferentes, respectivamente).

7 CÂMARA. Mudanças na Lei de Improbidade Administrativa entram em vigor. Janary Júnior, Agência Câmara de Notícias, Brasília, out. 2021. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/820702-mudancas-na-lei-de-improbidade-administrativa-entram-em-vigor/ Acesso em 08 dez. 2021.

8 SENADO. Lei define novas regras para improbidade administrativa. Agência Senado, Brasília, out. 2021. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/10/26/lei-define-novas-regras-para-improbidade-administrativa Acesso em: 08 dez. 2021.

9 ODILLA, Fernanda. 5 anos depois, o que aconteceu com as reivindicações dos protestos que pararam o Brasil em junho de 2013? BBC News Brasil em Londres, 09 de junho de 2018. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-44353703 Acesso em 12 dez. 2021.

10 BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. [Syn]Thesis, Rio de Janeiro, vol.5, nº 1, 2012, p.23-32. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/synthesis/article/view/7433 Acesso em 09 dez. 2021.

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OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2006. 

VILA, Antonio Domínguez. Constitución y derecho sancionador administrativo. Madri: Marcial Pons, 1997.

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Victor Athayde Silva
Sócio de David e Athayde Advogados.

João Pedro Goulart
Associado de David e Athayde Advogados.

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