Migalhas de Peso

Até que ponto, no Brasil, é permitido o exercício da autonomia sobre o próprio corpo?

Muito além da defesa da vida, há de ser valorizada a dignidade humana, em todas as suas manifestações e aplicações, e esse ainda é um longo caminho a ser percorrido pelo Brasil, tanto no que diz respeito à sua regulação, por intermédio do Direito, quanto em relação ao próprio amadurecimento da sociedade, por meio da vivência prática da Bioética.

7/12/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

INTRODUÇÃO

Com o avanço tecnológico, a medicina evoluiu de tal modo que a colisão de princípios fundamentais individuais e coletivos tornam-se cada vez mais frequentes.  Nesse sentido, por vezes, o direito à vida, sendo o mais fundamental de todos, é sobreposto ao princípio da autonomia.

Assim, dispor do próprio corpo encontra limites legais claros em todo mundo. Algumas nações são mais flexíveis quanto a esses aspectos, outras nem tanto.

Por meio de aporte teórico, o presente estudo pauta-se pela pesquisa bibliográfica, consubstanciada na leitura crítica de obras doutrinárias e artigos acadêmicos para responder à seguinte pergunta: até que ponto, no Brasil, é permitido o exercício da autonomia sobre o próprio corpo?

No ordenamento jurídico brasileiro atual, um indivíduo é livre para se autodeterminar, desde que não contrarie leis ou interfira na seara de direitos de terceiros e, além disso, há de se considerar que o direito à vida, assim como os demais direitos fundamentais constitucionais são indisponíveis, imprescritíveis e irrenunciáveis. Contudo, diante de conflitos entre eles, há de haver o sopesamento de interesses e valores individuais e coletivos envolvidos.

Observa-se, portanto, em especial na área da saúde, que várias são as situações capazes de limitar a autonomia individual, principalmente em momentos quando envolvem o frágil liame entre a vida e a morte, que serão abarcadas pelo presente artigo.

Nesse cenário, em primeiro lugar, será feita análise sobre o direito à vida e sua posição no ordenamento jurídico brasileiro. Posteriormente, o princípio da autonomia  também será avaliado, com suas possíveis concretizações.

Finalmente, diante da ausência de hierarquia entre princípios e direitos fundamentais constitucionais, serão mencionadas situações em que há clara colisão entre o direito à vida e o exercício de autonomia sobre o próprio corpo.

DIREITO À VIDA

Segundo Moraes (2013), a Constituição Federal de 1988 assegura a todos que são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade ao direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Nesse sentido, o direito à vida, sem dúvida, é o mais fundamental de todos eles, já que dele depende a realização de todos os demais direitos. Cabe, ao Estado, portanto, a sua garantia em uma dupla acepção – direito de continuar vivo e de ser ter sua dignidade atendida.

Contudo, conflitos surgem quando o direito fundamental à vida (digna) entra em colisão com outros princípios e direitos, na medida em que, muito embora o direito à liberdade, à autonomia da vontade e à própria vida estejam constitucionalmente dispostos sem hierarquia entre eles, na maioria das vezes, a vida possui uma valoração superior aos demais e acaba por se sobrepor à vontade do indivíduo (BAEZ, STEFFEN, 2016).

Segundo Baez (2010), direitos fundamentais sempre estiveram ligados à efetividade e garantia da vida digna, porquanto protegem os seres humanos da arbitrariedade do Estado.

A vida começou a ser mundialmente protegida a partir das atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial, gerando uma consciência coletiva acerca do amparo à dignidade humana a qualquer custo (PIOVESAN, 2011) e, disso, decorre a sobreposição deste direito a outros existentes.

Ou seja, quer parecer que a vida possui um valor supremo no ordenamento jurídico, orientando, na maioria das vezes, os demais princípios e direitos fundamentais existentes.

O PRINCÍPIO DA AUTONOMIA

A autonomia trata da capacidade que as pessoas têm para se autodeterminar, livres de influências externas que as controlem ou de limitações pessoais que as impeçam de realizar suas próprias escolhas. Ou seja, um indivíduo autônomo age livremente, quando não há nada que o impeça de fazer opções, nem mesmo a ausência de informação sobre sua condição (Leutério et al., 2020).

Além da liberdade, a autonomia está intimamente relacionada ao critério de dignidade, pois de acordo com a ideia concebida pelo filósofo Immanuel Kant, a autonomia é um dos fundamentos para a dignidade da natureza humana e racional (Pereira Jr et al., 2018).

Segundo os autores Pereira Jr.et al. (2018, p-207):

Dessa forma, com a promulgação da Constituição brasileira de 1988, em que pese o rol de direitos fundamentais individuais fosse semelhante ao da Constituição de 1967 (art. 150), passou-se ao reconhecimento tanto de direitos individuais como de direitos sociais, sendo ambos norteados pelo princípio maior da dignidade da pessoa humana. Com tal evolução jurídica, a autonomia privada, muito embora seja um direito constitucionalmente garantido, e alargada para além da situação patrimonial, está propensa a sofrer limitações e mitigações, as quais só ocorrerão sob o respaldo de justificativas legais, devendo toda supressão de direito ser analisada detidamente caso a caso por quem tem competência para tal: o Poder Judiciário.

De acordo com Pereira Jr. Et al. (2018), o conceito de autonomia deve ser considerado em duas vertentes distintas, quais sejam: autonomia privada e autonomia da vontade. Sendo a primeira delas o poder que é concedido pelo Estado a um indivíduo ou a um grupo, para que possam criar, modificar ou extinguir direitos em situações jurídicas, a partir de limitações criadas pelo ordenamento jurídico. Enquanto a segunda vertente diz respeito ao conceito de foro íntimo, que denota a própria vontade do indivíduo.  

Em qualquer uma das situações, percebe-se que a autonomia está relacionada à liberdade individual, motivada por uma vontade, uma necessidade ou um valor ético.

Considerando a ideia de Kant de que a autonomia seria o próprio fundamento da dignidade humana e da natureza racional, chega-se a conclusão de que a autonomia, a liberdade e a dignidade parecem ser indissociáveis e preceituam a ideia compatível com a capacidade individual de autogestão. 

COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

O principal consenso, portanto, é o de que autonomia, liberdade e dignidade andam juntas, num mesmo prisma, porquanto o indivíduo digno é aquele que pode se autodeterminar, direcionando sua própria vida de maneira livre e lícita, garantindo a sua própria bibliografia, sem sofrer interferências diretas do Estado em que está inserido. A despeito disso, com a evolução jurídica, percebe-se que, em que pese o rol de direitos fundamentais preconizados pela Constituição Federal de 1988, a autonomia tende a sofrer limitações e mitigações legais (Pereira Jr.et al., 2018).

Diversas são, pois, as situações jurídicas, notadamente na área da saúde, em que o ordenamento jurídico brasileiro privilegia o direito à vida, tornando-o quase como um dever. Dentre elas, podemos citar: transplantes de órgãos inter vivos, cessão temporária de útero ("barriga de aluguel"), eutanásia/suicídio assistido, transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová em casos de urgência ou emergência, aborto.

Sem adentrar profundamente em cada um dos retromencionados institutos, os quais, diante da complexidade demandariam estudos específicos, percebe-se que estão sempre rodeados de incontáveis discussões, mas que, sem dúvida, já à primeira vista, é possível perceber que trazem à tona a colisão de direitos individuais fundamentais e se justificam pela proteção ao direito/dever à vida.

As doações de órgãos inter vivos, por exemplo, num gesto de solidariedade humana, sem qualquer constrangimento ou onerosidade, só é permitida em caso de órgãos duplos, como rins, por exemplo, ou de partes recuperáveis ou regeneráveis, como o fígado, pele ou medula óssea, cuja remoção não traga prejuízos ou riscos à vida ou dignidade do doador, sendo que, em algumas situações, só pode ser consentido entre partes com certo grau de parentesco (Fonseca, 2014).

Por sua vez, a cessão temporária de útero, popularmente conhecida como "barriga de aluguel", atualmente regulamentada pela Resolução CFM n.º 2.294/2021, consiste em um dos procedimentos possíveis da reprodução humana assistida, por meio do qual uma mulher "empresta" seu útero a casal impossibilitado de gestar, sendo permeada de complexidades que envolvem desde as relações estabelecidas entre as partes até discussões sobre o direito da autonomia e direito ao próprio corpo, sofrendo, pois, limitações.

A eutanásia e o suicídio assistido, não permitidos em absoluto no Brasil, são pauta de discussões mundialmente recorrentes, que aguçam emoções, na medida em que valores individuais estão envolvidos, sendo aqui considerada a manutenção da vida biológica o mais relevante quando sopesado com o direito de escolha individual pelo encerramento de uma vida bibliográfica.

Na sequência, são polêmicos os casos de transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová, comumente autorizadas pelo Poder Judiciário, na defesa da manutenção da vida, em detrimento da crença religiosa.  Sobre o tema, o Código de Ética Médica (Resolução CFM n.º 2.217/2018), embora outorgue ao paciente o direito de se manifestar acerca de tratamento médico proposto, em casos de urgência ou emergência, para a preservação da vida, a recusa do paciente pode, por vezes, não impedir a transfusão de sangue, situações que deságuam, com frequência, no Poder Judiciário (Oliveira Junior, 2019).

Finalmente, o aborto, também pauta de polêmicas mundiais, constitui tema que impacta o conflito entre direitos igualmente importantes, como direito à vida desde à concepção e direito à autonomia da mãe, sendo aqui no Brasil permitido apenas em situações específicas, como: necessidade de salvamento da vida da mãe, gravidez decorrente de estupro e outros que a medicina por evidências assim justificar. 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

São, portanto, diversas as situações em que o ordenamento jurídico brasileiro limita a liberdade individual e a autonomia de forma ampla, sempre, quer parecer, em nome da proteção à vida.

Contudo, o direito à vida humana não é apenas um conjunto de elementos materiais e biológicos, mas também integra um arsenal de valores morais e éticos. Integra o próprio conceito de biografia individual.

O direito ao próprio corpo é privilegiado na Constituição Federal, no artigo 5º, incisos III, XLVII e XLIX. Todavia, a pessoa não possui um direito real sobre as partes do seu corpo, na medida em que requer que a ordem jurídica regule expressamente as condições para seu exercício, limitando direitos, preservando a sobrevivência digna, afastando o corpo humano da condição de coisa (Gama, 2003).

Nesse sentido:

"O limite de disposição do corpo individual é estabelecido por uma barreira à autonomia privada, posta pelo pensamento coletivo, de conteúdo ético e existencial, que foi recepcionada pelo direito, sobretudo quando se pretenda dispor da integridade física com risco à própria vida." (Pereira, Cardoso, 2018).

Não significa que o constituinte tenha, arbitrariamente, menosprezado a autonomia como valor, porém, a limitou, privilegiando a vida, que se torna quase um dever.

Qualquer intervenção externa na esfera de autodeterminação individual que não provenha do processo de formação comunitária de normas jurídicas constitui ingerência ilegítima (injusta) na autonomia, porquanto há um desvirtuamento da própria existência do indivíduo e, por vezes, de tal modo que acaba por contemplar danos à sua própria dignidade (Barreto Neto, 2013).

O exercício da autonomia envolve, assim, muitas dimensões: existenciais, comunicacionais, materiais e experenciais.

Em sintonia com Barreto Neto (2013), a despeito do forte apelo bioético em defesa do exercício absoluto do princípio da autonomia, em especial para a tomada de decisões compartilhadas em saúde, a supervalorização da autonomia carece de maturidade social, para que o seu exercício não se torne um fardo aos seus portadores e, nesse sentido, primordial é a regulação estatal por meio de limites.

Contudo, muito além da defesa da vida, há de ser valorizada a dignidade humana, em todas as suas manifestações e aplicações, e esse ainda é um longo caminho a ser percorrido pelo Brasil, tanto no que diz respeito à sua regulação, por intermédio do Direito, quanto em relação ao próprio amadurecimento da sociedade, por meio da vivência prática da Bioética.

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BAEZ, Narciso Leandro Xavier Direitos Humanos, Direitos Do Homem e a Morfologia dos Direitos Fundamentais. In; BAEZ, N. L.X.; LEAL. R. G.; MEZZAROBA, O. (Coord). –Dimensões Materiais e Eficaciais dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Conceito, 2010.

BAEZ, Narciso Leandro Xavier e STEFFEN, Stehani Elizabeth. Direito Fundamental à vida e o princípio da autonomia da vontade: uma visão histórica diante das práticas abortivas. In: Direito & Justiça, v. 42, n.º 02, 2016. Acessível aqui.

BARRETO NETO, Heráclito Mota. "O princípio constitucional da autonomia e sua implicação no Direito Penal." Direito Penal e Criminologia: XXII Congresso Nacional do Conpedi. São Paulo: Fundação José Arthur Boiteux. 2013.

FONSECA, Júlia Brito. Doação de Órgãos e transplante: a interpretação jurídica da lista de espera à luz dos princípios da bioética. JusBrasil, 2014. Acessível aqui.

GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade-filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 168-169.

LEUTÉRIO, Alex Pereira et al. Bioética das Relações. Noções preliminares: origem, evolução e conceito de Bioética. In: Bioética, direito e medicina/editores Cláudio Cohen, Reinaldo Ayer de Oliveira; editores associados Alex Pereira Leutério...[et al.]. 1ª Edição. Barueri: Manole, 2020.

MORAES, Alexandre. Direitos Humanos Fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º ao 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 10ª edição. São Paulo: Altas, 2013.

OLIVEIRA JÚNIOR, Eudes Quintino. Testemunhas de Jeová e a transfusão de sangue. Acessível aqui.

PEREIRA, Piscila Maria da Silva e CARDOSO, Ana Lúcia Brunetta. A cessão temporária de útero: uma análise sobre a (im)possibilidade contratual à luz do direito civil constitucionalizado. In: Justiça e Sociedade, V. 3, n. 1, 2018.

PEREIRA JR., Antônio Jorge et al. O limite da autonomia em face do direito à vida e a recusa a tratamento médico em caso de doenças crônicas. In: Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, v. 17, 2018.

PIOVESAN, F. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12ª Edição. São Paulo: Saraiva 2011.

ROCHA, Bruno V. et al. Relação médico-paciente. Revista do médico residente, v. 13, n. 2, 2011. Acessível aqui.

SOUZA, Virgínio Cândido Tosta, PESSINI, Leo e HOSSNE, William Saad. Bioética, religião, espiritualidade e a arte do cuidar na relação médico-paciente. In: Revista Bioethikos. Centro Universitário São Camilo: São Paulo, 2012. p. 181-190. Acessível aqui.

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VASCONCELOS, Camila. Direito Médico e Bioética: história e judicialização da relação médico-paciente. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.

ZOBOLI, Elma. Bioética clínica na diversidade: a contribuição da proposta deliberativa de Diego Gracia. In: Revista BioEthikos. Centro Universitário São Camilo: São Paulo, 2012. Acessível aqui.

Fernanda Borges Keid
Advogada, especialista em Direito Médico e da Saúde, pós graduanda em Bioética pela Fac. de Medicina da USP. Membro Comissões Dir. Médico e da Advocacia na Mediação e Conciliação da OAB/SP

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