O banho de sol na penitenciária de segurança máxima do Ceará é realizado em celas herméticas, com ventilação insuficiente e baixa luminosidade. Ainda, ocorre sem qualquer atividade, além de ser individual. Saltam aos olhos as irregularidades existentes nas práticas adotadas no âmbito da nova unidade prisional daquele estado.
É de conhecimento da comunidade médico-científica que baixos níveis de vitamina D em nosso organismo causam sérias alterações em nosso metabolismo. Via de regra, taxas baixas dessa substância são responsáveis por ossos fracos e porosos, perda da força muscular, supressão do sistema imunológico como um todo, declínio cognitivo, fadiga constante mesmo quando não há esforço físico, dentre outros. Por ser uma situação recorrente no sistema penitenciário nacional, não é de se estranhar que, conforme noticiado em portais de notícias1 – citando dados do CNJ –, o Brasil já registre 425 mortes por hipovitaminose no sistema penitenciária brasileiro.
É perceptível pelas denúncias narradas pelos detentos, e pelas condições verificadas in loco, que o direito ao banho de sol legalmente garantido, e jurisprudencialmente já reafirmado pelas cortes superiores, aos presos não vem sendo respeitado. As consequências diretas disso são os quadros de hipovitaminose já verificados entre os detentos naquele estabelecimento prisional. As consequências indiretas, por sua vez, são o flagrante e contínuo desrespeito às garantias fundamentais, o que denota o desvirtuamento de todo o nosso sistema jurídico perante os olhos de toda a comunidade jurídica.
Embora não haja na Lei de Execuções Penais uma previsão geral e ampla ao direito dos apenados ao banho de sol, uma interpretação sistemática daquela norma permite a conclusão de existência e validade do direito.
Um dos regramentos legais que deveria ser balizador das ações e conjecturas adotadas no âmbito daquele presídio deveriam ser as Regras Mínimas para o Tratamento de Presos das Nações Unidas, mundialmente conhecidas também como Regras de Mandela2. Na referida norma, consta expressamente em seu item 21.1 que o preso que não trabalhar ao ar livre deverá ter, se o tempo permitir, pelo menos uma hora por dia para fazer exercícios apropriados ao ar livre.
Outra legislação a resguardar o direito ao banho de sol pelo apenado é a Lei de Execuções Penais. Muito embora ela não faça menção expressa ao direito como algo amplo e genérico garantido aos apenados, a interpretação sistemática e teleológica da norma permite assim concluir.
No âmbito Constitucional3, destacamos a eleição da dignidade humana como fundamento do Estado Democrático de Direito que é o nosso país.
O banho de sol, no âmbito do sistema carcerário é uma das formas encontradas pelo legislador para manter e, sobretudo, promover a integridade física e psicológica daqueles que estão sob a custódia estatal. Mais que uma medida de recreação, como muitos gostam de afirmar sobre esse direito, o banho de sol é imprescindível para a reabilitação social do preso. Fisicamente, o banho de sol é essencial para a manutenção de níveis saídos de vitamina D no organismo, responsável pela regulação hormonal e do sistema imunológico como um todo. Psicologicamente é necessário à manutenção da sanidade e do senso de comunidade na pessoa do apenado.
Dada a importância da vitamina D para o nosso organismo, é inquestionável a necessidade de se franquear o acesso desta aos apenados, com o claro objetivo de fornecer-lhes um mínimo de condições dignas de vivência. Ocorre que ao se analisar a fonte do complexo vitamínico D observamos que a maior parte desta é fabricada pelo nosso próprio, após o contato com a radiação ultravioleta do sol.
Não restam dúvidas quanto à importância do complexo vitamínico D para a saúde do corpo humano. De igual maneira, não restam dúvidas que assegurar aos presos o cumprimento desse direito é, além de uma obrigação estatal, uma questão de saúde público.
O banho de sol, para além de promover a saúde e dignidade dos custodiados no sistema carcerário, também tem outra grande e importante função: a manutenção da sociabilidade do apenado. É que em presídios como a Unidade Prisional de Segurança Máxima do Estado do Ceará, os presos costumam ficar isolados, até mesmo entre si. O homem é um ser eminentemente social, ou seja, necessita de outros para viver bem. Apesar de estarem com as restrições intrínsecas ao cárcere, não se olvida que com os presos essa necessidade de convivência com outras pessoas também é essencial.
Conforme relatos constantes do petitórios dirigidos à Corregedoria da execução penal da comarca de Fortaleza – CE, muitos presos estão em celas individuais naquele estabelecimento prisional. Conforme os relatos constantes dos petitórios, os banhos de sol são feitos em celas herméticas, com ventilação insuficiente, baixa luminosidade e cabeça baixa, sem qualquer atividade e de forma individual.
É notório o isolamento social a que os apenados daquela unidade prisional são diuturnamente submetidos. Não bastasse o fato de que eles são encarcerados diariamente em celas individuais, até mesmo o banho de sol é feito de forma individual. É forçoso reconhecer que, desconsiderando as visitas familiares – que são realizadas através do parlatório, sem qualquer tipo de contato físico – e os agente penitenciários – durante os procedimentos penitenciários, essas pessoas não têm qualquer outro tipo de contato com algum ser humano. São indescritíveis e inimagináveis a tortura e o terror psicológico a que essas pessoas estão sendo submetidas uma vez que estão sendo completamente isoladas de qualquer tipo sadio de convivência social.
Como visto, pelos dois pontos até então expostos, é inegável que a população carcerária da Unidade Prisional de Segurança Máxima do Estado do Ceará é tratada de forma totalmente vil e desumana. Os efeitos deletérios provocados pela privação dessas pessoas ao exercício do direito constitucional e legalmente assegurado ao banho de sol traz inegáveis prejuízos não só a eles, mas também ao Estado como um todo, que indubitavelmente haverá de arcar com as despesas médicas necessárias à completa reabilitação da saúde física e mental dessas pessoas. Tudo isso pelo simples fato de lhe serem negadas essas duas horas diárias de exposição em grupo à luz solar.
O tema já foi debatido também pelo STF. A conclusão daquele órgão colegiado de julgadores foi claramente no mesmo sentido daquela que se faz agora: a atitude promovida no âmbito daquela unidade prisional é, para todos os fins de direito, inconstitucional. É o que pode se inferir das seguintes passagens do voto4 do eminente Ministro Relator Celso de Mello que assim fundamentou a sua decisão ao julgar caso semelhante ao analisado
Cabe ter presente, bem por isso, consideradas as dificuldades que podem derivar da escassez de recursos – com a resultante necessidade de o Poder Público ter de realizar as denominadas “escolhas trágicas” (em virtude das quais alguns direitos, interesses e valores serão priorizados “com sacrifício” de outros) –, o fato de que, embora invocável como parâmetro a ser observado pela decisão judicial, a cláusula da reserva do possível encontrará, sempre, insuperável limitação na exigência constitucional de preservação do mínimo existencial, que representa, no contexto de nosso ordenamento positivo, emanação direta do postulado da essencial dignidade da pessoa humana, tal como tem sido reconhecido pela jurisprudência constitucional desta Suprema Corte.
(...)
As razões que venho de expor permitem-me afirmar, sem qualquer dúvida, que a injusta recusa da administração penitenciária em permitir o exercício do direito ao banho de sol a detentos recolhidos a pavilhões especiais, como os indicados na presente impetração, contraria, de modo frontal, como anteriormente destacado, as convenções internacionais de direitos humanos subscritas pelo Brasil e cuja aplicação é inteiramente legitimada pelo § 2º do art. 5º da Constituição da República.
(...)
Privar do banho de sol diário os presos em situação regular é medida desproporcional, tendo em vista que se trata de uma garantia expressamente concedida a presos submetidos ao regime disciplinar diferenciado, como estabelece o art. 52, inc. IV, da LEP. Se o benefício é garantido até mesmo a autores de crime doloso que ocasione subversão da ordem e da disciplina internas, com mais razão o deve ser aos demais indivíduos recolhidos no estabelecimento prisional.
Não possibilitar aos presos o exercício do direito ao banho de sol, em área a céu aberto e de forma coletiva, fere o ordenamento jurídico. Isso ocorre na medida em que uma simples decisão administrativa da autoridade dirigente daquele estabelecimento prisional vem sendo efetivada contra sensu ao que manda toda a nossa legislação. Infelizmente há uma verdadeira subversão da ordem e hermeneuticamente constitucional verificada no presente caso.
É de se refletir a aceitação de tal prática como costumeira e possível em nossa sociedade. Nosso complexo sistema de leis deveria existir em perfeita sintonia e coesão, com as normas e decisões inferiores respeitando os princípios superiores da nossa sociedade. Infelizmente isso não vem acontecendo à contento o que deixa sempre uma preocupação entre os operadores do Direito: quais os limites à sanha punitiva estatal? Faz-se necessária uma urgente rediscussão dessa questão com vistas a readequar a realidade atualmente observada no âmbito do sistema carcerário cearense às diretrizes centrais do nosso ordenamento jurídico.
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1- Disponível aqui, acesso em 13/11/2021.
2- Regras de Mandela
3- Constituição Federal
4- HC 172.136/SP julgado no STF