INTRODUÇÃO
A Bioética e seus princípios basilares (autonomia, beneficiência, não maleficiência e justiça) adquirem, quando utilizada em condutas práticas do cotidiano médico, importância fundamental na mediação de conflitos que envolvem valores daqueles envolvidos na relação médico-paciente-familiares.
O principialismo bioético, defendido por Beauchamp e Childress não se esgota em si mesmo, não sendo absoluto na condução de situações que envolvem valores em conflitos.
A Bioética não está relacionada à intolerância, ou apenas no "não" mandamental. Ela dá diretrizes, caminhos possíveis, sempre fundamentados num cenário de valores, éticas e morais, em respeito aos seres humanos e à própria vida digna.
Considerando que a eticidade está na percepção dos conflitos da vida psíquica (emoção x razão) e na condição de posicionamento, de forma coerente, frente a esses conflitos, três requisitos são essenciais como fundamentos da ética: consciência/percepção dos dilemas surgidos cotidianamente; autonomia para posicionar-se entre a emoção e a razão; além da coerência de condutas pessoais (Segre, Cohen, 1999).
Muito embora Kant tenha contribuído para a noção desses princípios basilares que norteariam decisões diante de conflitos bioéticos, suas ideias estavam sempre baseadas no conceitual e racional e desconsideravam a parte emocional. Todavia, as ações humanas são revestidas de emoções e vivências que refogem ao racional e, por vezes, repercutem em valores que se chocam, causando conflitos.
Segundo Segre e Cohen (1999), podemos julgar a eticidade de um indivíduo quando ele possua uma personalidade bem integrada, com maturidade suficiente para lhe permitir lidar com emoções conflitantes, o que representaria um equilíbrio de vida interior e um bom grau de adaptação à realidade do mundo. Nesse sentido, segundo os autores, os problemas éticos são conflitos que devem ser vivenciados pessoalmente, dependendo da estrutura de cada indivíduo, que arrasta consigo conceitos e ideais sociais internalizados e elaborados ao longo da vida.
O Código de Ética Médica prevê normas que devem ser respeitadas por seus profissionais, permeadas de valores contidos em uma cultura num dado momento histórico. Contudo, as normas deontológicas ali previstas não se revelam suficientes a evitar o surgimento de conflitos de valores individualmente considerados, sendo imprescindível, nestas situações, a percepção de enfoques opostos ou distintos, porquanto pode existir mais de um caminho possível a cada situação.
A BIOÉTICA
A Bioética, segundo Segre (1999), refere-se à parte da Ética, ramo da filosofia, que abarca questões pertinentes à vida humana e à saúde, tratando-se, então, de ramo que estuda as relações humanas com a vida e com a morte. Ou seja, não se trata de moldar o que é lícito ou não à evolução da ciência e da tecnologia, mas sim, à luz de novos e modernos conhecimentos, elaborar outras perspectivas à vida humana, com novas experiências e novos valores atribuídos ao que é vida, morte, saúde e liberdade.
A Bioética rejeita o que é bom e o que é mau, o certo e o errado. Existe sim a ideia do que é construtivo e o que é destrutivo, eficaz e ineficaz, devendo cada situação ser considerada de per si, sempre com riqueza de valores individualmente constituídos, inerentes à vida e à saúde. Representa, portanto, campo de ação multidisciplinar, em diversas áreas de conhecimento da natureza humana, como por exemplo: Medicina, Biologia, Psicologia, Teologia, Filosofia e, finalmente, o próprio Direito.
Van Rensselaer Potter definiu a Bioética como a "ciência da sobrevivência humana", pensando sempre como uma ponte entre ciências biológicas e a ética, sendo que sua ideia, posteriormente, evoluiu para a dimensão da ética global (Potter, 2016). Em suas palavras, a bioética:
"[...]constrói-se com base em quatro tipos de ponte: (1) Ponte entre o presente e o futuro: a bioética é uma nova abordagem focada em interesses de longo alcance e com objetivos de salvaguardar a sobrevivência da humanidade; (2) Ponte entre ciência e valores: a bioética é uma nova disciplina que combina conhecimento biológico com o conhecimento de sistemas de valores humanos; (3) Ponte entre a natureza e a cultura: a bioética abre-se para o futuro, aplicando o conhecimento científico das realidades biológicas e a natureza dos seres humanos com o objetivo de favorecer uma evolução cultural; (4) Ponte entre o ser humano e a natureza: a bioética é uma nova ética que leva em consideração a nova ciência da ecologia e os seres humanos inter-relacionados com seu meio ambiente." (Potter, 2016, p. 15).
No Brasil, a Bioética teve consolidação a partir de 2003 com a construção da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos pela UNESCO, homologada em 2005, na França, com a reunião de grandes linhas de orientação, quais sejam: proporcionar enquadramento universal de princípios e procedimentos que orientem Estados na formulação de sua legislação, das suas políticas ou de outros instrumentos em matéria de bioética; orientar ações de indivíduos, grupos, comunidades, instituições e empresas públicas e privadas; além de contribuir para o respeito pela dignidade humana e proteção dos direitos humanos, em garantia pela vida e pelas liberdades individuais; reconhecer a importância da liberdade de investigação científica e de seus benefícios para a coletividade, em face dos progressos da ciência e da tecnologia; fomentar o diálogo interdisciplinar e pluralista sobre as questões de bioética em todas as partes interessadas e no seio da sociedade em geral; promover acesso equitativo aos progressos da medicina; salvaguardar e defender os interesses de gerações presentes e futuras; assim como sublinhar a importância da biodiversidade e de sua preservação enquanto preocupação comum da humanidade (Barbosa, 2013).
CONFLITOS (BIO)ÉTICOS
Conflitos surgem com a confrontação de vontades que se apresentam como legítimas e uma das partes busca dominar a outra com a expectativa de lhe impor a sua solução ideal. Ou seja, o conflito visa romper a resistência do outro, numa tentativa de dominação, com argumentos razoáveis ou não, gerando condutas contenciosas (Carreiro, 2011).
Fazem parte da sociedade democrática e permeiam relações sociais, mas podem contribuir para o desequilíbrio ou desigualdade sociais.
Muitas são as formas de solucionar tais divergências e, sem dúvida, a Bioética é uma delas, na medida em que envolve uma pluralidade de polêmicas, de ordem moral, filosófica e religiosa e possui intensa relação com as obrigações do Estado e com os direitos dos cidadãos.
Não se pode olvidar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 deixou explícita a necessidade de garantia de uma dignidade da vida humana, o que engloba o direito à saúde como um de seus principais, sem se afastar do critério da universalidade.
Disso, extrai-se a ideia de que um dos grandes desafios atuais do Estado moderno é assegurar condições, ações, e serviços, de acordo com determinantes sociais, que atendam peculiaridades regionais, como forma de construção de uma "consciência sanitária", capaz de garantir a dignidade humana diante de novas tecnologias (Barbosa, 2013).
A Bioética está, portanto, presente em todo discurso que envolve escolhas, inclusive, na própria gestão da saúde e na alocação de recursos cada vez mais escassos e, nesse sentido, ganha relevância uma bioética intervencionista, modelo defendido por Volnei Garrafa, que permite a adequação de determinantes sociais com interação à uma agenda social e envolvimento da comunidade, em busca da universalidade de atendimento e, por conseguinte, do respeito à vida digna dos seres humanos.
Ou seja, no Brasil, persegue-se a concretização do preceito constitucional do acesso à saúde gratuita, universal e integral para toda a população e, nesse sentido, temas como escassez de recursos e judicialização da saúde revestem-se de importância fundamental para a Bioética e aplicação de um de seus princípios basilares – da justiça.
Além desse conceito macro, não se pode esquecer que os demais princípios bioéticos -autonomia, beneficiência e não maleficiência - devem ser considerados, especialmente em situações concretas, em que envolvem a relação médico-paciente.
Quando do surgimento desses dilemas, que normalmente envolvem valores ético-morais, revela-se premente a habilidade de mediadores e profissionais de saúde hábeis a adequar técnicas de comunicação e escuta, na apresentação de aspectos clínicos e opções de tratamentos, proporcionando ao paciente uma visão ampla e segura acerca de seu estado de saúde e prognósticos, facilitando-lhe a tomada de decisão de modo compartilhado e, finalmente, seu assentimento informado.
A bioética desenvolvida no cotidiano da clínica médica, portanto, mostra-se eficaz para a busca de soluções possíveis, no âmbito dos dilemas enfrentados por médicos, pacientes e familiares, na medida em que possibilita a preservação e o respeito aos valores divergentes que estão presentes nestas relações (Carreiro, 2011).
A vulnerabilidade presente nestas relações acentua conflitos, que acabam por culminar em ações judiciais, razão pela qual a capacidade dos profissionais de saúde não se esgota mais apenas na competência técnica, mas também no desenvolvimento de habilidades bioéticas, capazes de resolver conflitos de ordem moral.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conflitos de ordem bioética envolvem intensa carga emocional, já que envolvem valores e questões emocionais divergentes, que podem surgir de maneira difusa e generalizada, acarretando eventos adversos e interações entre médicos e pacientes prejudiciais à própria recuperação do mais vulnerável.
Às vezes, basta a contextualização da disputa para tornar possível a transformação de um conflito, mas, por muitas vezes, são necessárias técnicas específicas capazes de ampliar perspectivas e aclarar caminhos possíveis e prudentes, sempre equilibrados.
Nesse sentido, além das já difundidas técnicas de negociação, mediação e conciliação, ganha relevo metodologias de deliberação em bioética, especialmente nas situações da clínica médica, cuja vulnerabilidade e diversidades mostram-se quase sempre presentes.
Nesse cenário, a proposta deliberativa de Diego Gracia ganha espaço, por se tratar de uma metodologia com itinerário sistematizado e contextualizado para análise de eventos de um dado caso concreto. Segundo Zoboli (2012, p. 49):
"A deliberação não cabe em todos os âmbitos da vida humana, porque se delibera sobre o que pode ser de outro jeito, ou seja, sobre o que depende da intervenção humana para acontecer. Não se delibera sobre o que acontece sempre da mesma maneira, por necessidade ou qualquer outra causa semelhante."
A Bioética pode ser, então, utilizada como um procedimento intelectual que busca a eleição de alternativas e caminhos possíveis e prudentes. Ou seja, ela é feita durante o surgimento do conflito de valores morais, e não após a instauração de um litígio, e tem por objeto a eleição da melhor decisão médica sobre o que deve ou não ser feito, valorando-se o que está envolvido em cada opção que surge, no intuito de se alcançar uma decisão razoável.
De acordo com Zoboli (2012), trata-se de um procedimento que envolve conhecimentos específicos e habilidades que implicam atitudes de respeito mútuo, humildade ou modéstia intelectual, com um desejo intrínseco de enriquecer as compreensões dos envolvidos, por meio da escuta e da ponderação, além de uma análise crítica e pública dos próprios pontos de vista.
Conclui-se, portanto, que a deliberar a Bioética é um comportamento ético e não natural, que leva ao autoconhecimento e à tolerância, o que, sem dúvida, culmina na diminuição de condutas judicializáveis na área da saúde.
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BARBOSA, Swedenberger. Bioética e direito à saúde: dilemas. In: ALVES, Sandra Mara Campos; DELDUQUE, Maria Célia; DINO NETO, Nicolao (org.). Direito sanitário em perspectiva. Brasília: Escola Superior do Ministério Público da União; Fiocruz Brasília, 2013. v. 2. p. 321-337.
CARREIRO, Natalia Maria Soares. Mediação Bioética: Busca de Soluções Compartilhadas para Resoluções de Conflitos Bioéticos. UNB: Brasília. 2011.
POTTER, Van Rensslaer. Bioética: Ponte para o futuro. Trad. de Diego Carlos Zanella. São Paulo: Edições Loyola, 2016.
SEGRE, Marco; COHEN, Claudio - organizadores. Bioética. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999.
ZOBOLI, Elma. Bioética clínica na diversidade: a contribuição da proposta deliberativa de Diego Gracia. In: Revista BioEthikos. Centro Universitário São Camilo: São Paulo, 2012.