Lançado com pompa e circunstância pelo governo federal, o decreto 10.854, de 10 de novembro de 2021, traz, novamente, as velhas “razões” de sempre para as alterações e as reformas da legislação trabalhista: modernizar, simplificar e desburocratizar. Regulamenta disposições relativas à legislação trabalhista, institui o Programa Permanente de Consolidação, Simplificação e Desburocratização de Normas Trabalhistas Infralegais e o Prêmio Nacional Trabalhista, e altera o decreto 9.580/18
O Decreto não é uma mini ou nova “Reforma Trabalhista”, mas segue sim a lógica da lei 13.467/17, ao prever, dentre seus objetivos, a redução dos custos empresariais (art. 5º, II) desincumbindo micro e pequenas empresas quanto ao cumprimento de normas de segurança e saúde do trabalhador a depender do risco ocupacional. Também estabelece a prevalência da livre iniciativa e do livre exercício de atividade econômica em desfavor dos direitos de trabalhadores e trabalhadoras, tendo como norte a lei 13.874/19, a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica.
Os objetivos enunciados revelam orientação por privilegiar a liberdade econômica, a redução de custos, a limitação da atuação fiscalizadora e o controle sobre o que chamou de “excessos” da ação do Estado. Nada disso se refere à simples consolidação de normas. Portanto, o problema não está apenas no presente, com a revogação de portarias e decretos antigos ou repetitivos, para incorporar seus textos esparsos, em único texto consolidado. O problema do Programa está em sua intenção.
A busca por segurança jurídica, na lógica desenvolvida em todo o texto (art. 5º, III), desconsidera a segurança jurídica das pessoas trabalhadoras. A segurança jurídica para quem trabalha é saber se tem um contrato de trabalho, quantas horas vai trabalhar e quanto receberá ao final do mês. E que esse valor não seja inferior ao valor do salário-mínimo mensal. A desconexão entre o salário mensal e o número mínimo de horas de trabalho, por exemplo, causa insegurança jurídica. A precariedade promovida por outras formas de contrato e a liberalização da terceirização são outros fatores de insegurança jurídica para a força de trabalho, mas esse lado da moeda não importa ao governo.
A expressão “moderno” (art. 5º, IV) também ganhou conotação de prevalência da liberdade econômica contra os direitos sociais consagrados na Constituição e que, na visão do governo, devem ser examinados apenas sob o ponto de vista do custo. A pergunta que deveria ser feita não é quanto custam os direitos, mas sim quanto custaria socialmente para o Brasil que a maior parte da população não tenha direitos (socialmente quer dizer fome, marginalidade e violência).
Por fim, convém destacar a ausência de participação social, mascarada pela suposta ampliação do diálogo social, ao afastar o tripartismo clássico das relações de trabalho.
As consultas públicas são, obviamente, forma de dar transparência aos atos e devem ser realizadas. Porém, não substituem e não podem substituir o papel do diálogo social promovido pelo tripartismo em matéria de relações de trabalho. Há necessidade de se estabelecer, conforme recomendação da Organização Internacional do Trabalho e em especial de sua Convenção 144, ratificada pelo Brasil, procedimentos de consulta efetiva aos representantes sindicais de empregadores e de trabalhadores, que, nos termos da lei 11.648/08, são as centrais sindicais, abrindo-se, ainda, para quaisquer organizações sindicais se manifestarem. A consulta pública não supre o rito das consultas às organizações sindicais representativas.
Aqui, novamente, a ausência da referência expressa às entidades sindicais é reveladora do tratamento dado pelo governo ao tema do diálogo social e do tripartismo nos temas afetos ao mundo do trabalho. Consulta pública direta; ausência da participação dos sindicatos expressamente na fiscalização; ausência de consulta e participação efetiva do Conselho Nacional do Trabalho.
O resultado da consulta pública da minuta do Decreto e o próprio Decreto, antes de sua publicação, não foram debatidos no Conselho Nacional do Trabalho.
O CNT foi criado para estimular os debates tripartites entre governo, representantes dos trabalhadores e representantes dos empregadores em assuntos relacionados ao trabalho, medida que deveria pôr em prática o diálogo tripartite, conforme compromisso internacionalmente assumido pelo Brasil, que ratificou a Convenção 144 da OIT.
O Decreto, na verdade, constitui um novo “museu de grandes novidades” do governo: uma proposta desconectada com a realidade atual, que demanda medidas de enfrentamento da crise econômica e sanitária, com o fim de garantir empregos e renda à população; o moderno que não inova e apenas beneficia as empresas; a participação social sem a participação direta das entidades representativas dos trabalhadores e das trabalhadoras.
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