Inicialmente faremos uma breve explicação acerca dos temas 492 do Supremo Tribunal Federal e 882 do Superior Tribunal de Justiça, para que seja demonstrada a necessidade da aplicação da técnica do distinguishing1 aos casos que envolvam condomínios irregulares, oriundos de áreas particulares, pendentes de regularização pelo poder público, tendo em vista que os casos utilizados como leading cases2, para a consolidação dos temas acima, divergem em vários pontos do caso mencionado.
As teses firmadas dizem respeito à impossibilidade da cobrança pelos condomínios das taxas associativas em substitutivo as taxas condominiais, e conforme será exposto a seguir, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, decidiram pela impossibilidade da cobrança, porém os casos utilizados para a consolidação dessas teses, são distintos da realidade do Distrito Federal e de outros condomínios “irregulares” oriundos de áreas particulares, cuja exista pendência de regularização pelo poder público.
O tema 882 do STJ, que fixou a tese de que “as taxas de manutenção criadas por associações de moradores não obrigam os não associados ou que a elas não anuírem”, tiveram como leading cases, dois recursos, o REsp 1.280.871/SP e o EREsp 1.439.163/SP, porém ocorre que nos dois casos - nas ações de origem - tratam-se de imóveis regularizados, escriturados e registrados perante o competente cartório de registro de imóveis, e a constituição das associações se deram em momento posterior.
Ou seja, tratam-se de imóveis devidamente regularizados, escriturados e registrados e que em um momento posterior, alguns transeuntes se reuniram para a constituição de um condomínio irregular através de uma associação de moradores. Em sua grande maioria a constituição dessas associações se dão em decorrência da má prestação dos serviços públicos, como por exemplo a segurança, a pavimentação asfáltica, iluminação pública, dentre outras.
O mesmo vale para o RE 696.911/SP, o imóvel objeto da ação de origem - ação anulatória - que levou o caso a apreciação da Suprema Corte, possuía escrituração e registro desde 1981, posteriormente, foi criada uma associação visando a manutenção do condomínio em prol dos interesses da coletividade. O resultado do julgamento que originou o tema 492, fixou a seguinte tese: “É inconstitucional a cobrança por parte de associação de taxa de manutenção e conservação de loteamento imobiliário urbano de proprietário não associado até o advento da lei 13.465/17, ou de anterior lei municipal que discipline a questão, a partir da qual se torna possível a cotização dos proprietários de imóveis, titulares de direitos ou moradores em loteamentos de acesso controlado, que i) já possuindo lote, adiram ao ato constitutivo das entidades equiparadas a administradoras de imóveis ou (ii) sendo novos adquirentes de lotes, o ato constitutivo da obrigação esteja registrado no competente Registro de Imóveis.”.
O STF definiu como marco temporal a edição da lei 13.465/17, para o tratamento da controvérsia, definiram os ministros que os atos constitutivos da associação de imóveis em loteamentos e as obrigações delas decorrentes vinculam tanto os já titulares de direitos sobre os lotes que anuíram com sua constituição, por óbvio, quanto os novos adquirentes de imóveis se a tais atos e obrigações forem conferidas publicidade por meio de averbação no competente registro do imóvel, desde que posteriormente ao advento da lei supracitada.
Além do fato dos imóveis objeto da discussão dos temas 882 e 492 serem imóveis escriturados e registrados, os condomínios irregulares que se constituíram a posteriori, abarcam propriedades particulares e áreas/vias públicas.
A título de exemplo, determinado bairro carente das prestações dos serviços públicos, unem alguns indivíduos para constituírem uma associação com o objetivo de suprir essa má prestação dos serviços públicos, em sua grande maioria, realizando inclusive o fechamento do bairro com muro e constituindo uma guarita. Nesses casos os “condomínios” abarcam tanto as propriedades particulares, quanto as áreas e vias públicas.
O fato desses condomínios (leading cases dos temas 882 e 492), abarcarem áreas/vias públicas e propriedades privadas, por si só, já demonstram a necessidade de se realizar a distinção, dos casos em que o condomínio irregular é oriundo de uma propriedade particular, conforme será demonstrado mais à frente.
Além disso, resta impossibilitado a aplicação do tema 492/STF, principalmente sua parte final - sendo novos adquirentes de lotes, o ato constitutivo da obrigação esteja registrado no competente Registro de Imóveis – uma vez que os condomínios irregulares, oriundos de áreas particulares, cuja exista pendência de regularização pelo poder público, não possuem matrícula, não sendo possível realizar a averbação dos atos constitutivos das associações e nem mesmo o registro da convenção de condomínio.
Feitas essas singelas considerações acerca dos temas, e demonstrado os pontos que divergem dos leading cases, que deram origem aos temas, passamos a demonstrar alguns casos práticos aqui no Distrito Federal, onde o Tribunal de Justiça Distrital, assertivamente estão deixando de aplicar os temas 882 e 492, nos casos de condomínio irregulares, oriundos de propriedade particulares, pendentes de regularização pelo poder público.
Fazendo um parêntese, a dificuldade e a demora na regularização desses imóveis pelo Poder Público no Distrito Federal são tamanhas, que em 9.6.2021, o Superior Tribunal de Justiça, julgou fixando o tema Repetitivo 1.025, onde possibilitou a aquisição de imóveis particulares situados no Setor Tradicional de Planaltina/DF, por usucapião, ainda que pendente o processo de regularização urbanística.
Essa pendência na regularização pelo Poder Público, não é um tema novo no Distrito Federal, e diante dessa inércia, muitos condomínios foram se consolidando ao longo desses anos, e a venda dessas unidades se deram através de cessões de direitos, prática essa muito comum no Distrito Federal, diante da impossibilidade de se escriturar e registrar os imóveis.
Esses condomínios, embora sejam intitulados de “condomínios irregulares”, devido a sua materialização em desconformidade com as legislações ambientas e urbanísticas, ou por ausência de regularização por inércia do Poder Público, na prática possuem as mesmas características de um condomínio regular no tocante a sua formação e gestão cumprindo o papel para que fora constituído.
Vale ressaltar que na grande maioria dos casos, existe a escritura pública de constituição do condomínio que se encontra registrada nos cartórios de notas, devido a ausência das matrículas. Além disso, existe também a convenção de condomínio e o regimento interno do condomínio.
Inclusive nas cessões de direitos (diante da ausência da matrícula/escritura/registros) que fora observada por esse autor no decorrer do exercício da profissão, podendo existir realidade diversa por não se tratar de regra, existem previsões acerca da existência do condomínio registrado, da convenção e do regimento interno, onde os cessionários anuem em cumprirem o que lá foi pactuado já caracterizando portanto a aceitação expressa pelo cessionário em respeitar o lá pactuado não podendo alegar desconhecimento a posteriori.
Além dos cessionários conhecerem o que de fato estão adquirindo e saberem da situação irregular do Distrito Federal, as previsões nas cessões de direito dão amplo conhecimento ao terceiro adquirente, não podendo se quer alegar desconhecimento, no intuito de se esquivar do pagamento das taxas para a manutenção do condomínio.
Outro ponto que merece destaque e que foi muito bem explanado pela Desembargadora Sandra Reves, no julgamento da Apelação 0726607-10.2018.8.07.0001, em um caso em que o Condomínio ajuizou Ação de Cobrança em face de uma moradora que deixou de arcar as suas obrigações em face do condomínio, é acerca das áreas comuns do condomínio.
Ressaltou a Desembargadora, que os casos invocados como precedente para embasar o recurso de Apelação, REsp 1.280.871/SP e o EREsp 1.439.163/SP (Tema 882/STJ), divergem da realidade do Distrito Federal, destaco trecho do voto:
Do ponto de vista fático, a situação analisada no precedente indicado é distinta da situação atinente aos condomínios irregulares existentes no Distrito Federal.
No precedente, foi analisada uma estrutura habitacional, denominada “loteamento fechado”, adotada correntemente no Estado de São Paulo. Naquele ente federativo, notadamente para fins de proteção da violência urbana, moradores de diversos bairros residenciais reuniram-se e constituíram associações de bairros, com cobrança de contribuições dos habitantes, objetivando a construção de portaria, colocação de cancelas, contratação de seguranças e outras benfeitorias.
Nessa medida, esses bairros residenciais se converteram em “loteamentos fechados”, mas sem observar a lei 6.766/79, que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano, a lei 10.257/01 (Estatuto da Cidade) e o respectivo plano diretor da localidade.
Destaca-se que em tais estruturas, as áreas comuns não pertencem aos moradores, pois possuem destinação pública. Em dita modalidade residencial, o sistema viário é livre à população. No máximo, poderá ocorrer um controle de circulação, mediante apresentação de documentação, especialmente para quem não reside ou trabalha no local. Não pode haver restrição de entrada. Via de regra, o fechamento é ato subsequente à construção das casas, sua conformação é posterior.
No âmbito do Distrito Federal, os condomínios aqui estabelecidos, a exemplo do ora apelado, possuem constituição diversa. Ordinariamente, foram originados de parcelamentos irregulares de chácaras e fazendas, mas já concebidos na forma da lei 4.591/64 e dos arts. 1.331 a 1.358 do Código Civil, em que pese a sua informalidade.
Com efeito, ao adquirir um terreno nos condomínios distritais, o interessado obtém uma fração ideal da área, que, além do lote de uso privativo, possui os espaços comuns. Aliás, em diversos condomínios identifica-se estrutura de lazer, área verde e praça. O acesso é controlado, mediante autorização dos moradores ou administração do empreendimento. As vias internas não são de livre acesso. Ao mudarem para essa modalidade residencial, “os condôminos”, de antemão, tem pleno conhecimento de que integraram uma coletividade com interesses comuns e que obrigatoriamente contribuirão para a manutenção e aperfeiçoamento do empreendimento.
Assim, entende-se que, nos casos de imóveis situados em condomínio irregular localizado no Distrito Federal, quando são adquiridos os direitos sobre o bem, o adquirente automaticamente adere à associação de moradores, motivo pelo qual se dispensa a filiação do possuidor à associação de moradores para cobrança de taxas de rateio das despesas.
(TJ-DF 0726607-10.2018.8.07.0001, Relatora: SANDRA REVES, Data de Julgamento 4.12.2019, 2ª Turma Cível, Publicado no DJE 21.1.2020).
Ainda nessa esteira, a Desembargadora Relatora Vera Andrighi, no julgamento da Apelação 0709124-41.2017.8.07.0020, pela 6ª Turma Cível do TJDFT, destaca em um caso semelhante, que complementa o que foi exposto acima, acerca da inexistência de estrutura pública dentro desses condomínios, e diante dessa inexistência de estrutura pública, por consequência, inexiste verbas públicas para a manutenção desses “condomínios”, o que ocasiona o financiamento exclusivamente privado dos próprios moradores para a habitualidade dos referidos locais.
Ou seja, caminhando para a conclusão, longe de querer dar um sinal verde para os magistrados julgarem em desconformidade com os precedentes apresentados, mas os fatos trazidos são totalmente relevantes e fundamentais para a aplicação do distinguishing. Portanto, far-se-á necessário que nos casos em que os condomínios irregulares sejam oriundos de áreas particulares, cuja exista pendência da regularização pelo poder público, a aplicação da distinção e o julgamento isolado, sendo possível inclusive a criação de um novo precedente para esses casos específicos.
Ressalto que esse autor teve o intuito de apontar as distinções entre os leading cases dos temas 492 e 882, para os casos dos condomínios irregulares, oriundos de áreas particulares, pendentes de regularização pelo poder público, e não apontar qualquer equívoco ou necessidade de revogação dos precedentes, os precedentes invocados apenas não se aplicam para os casos apresentados.
1 Ao realizar o distinguishing, o juiz deve atuar com prudência e a partir de critérios. Como é óbvio, poder para fazer o distinguishing está longe de significar sinal aberto para o juiz desobedecer precedentes que não lhe convêm. Aliás, reconhece-se na cultura do common law que o juiz é facilmente desmascarado quando tenta distinguir casos com base em fatos materialmente irrelevantes. Diferenças fáticas entre casos, portanto, nem sempre são suficientes para se concluir pela inaplicabilidade do precedente. Fatos não fundamentais ou irrelevantes não tornam casos desiguais. Para realizar o distinguishing, não basta ao juiz apontar fatos diferentes. Cabe-lhe argumentar para demonstrar que a distinção é material, e que, portanto, há justificativa para não se aplicar o precedente. Ou seja, não é qualquer distinção que justifica o distinguishing. A distinção fática deve revelar uma justificativa convincente, capaz de permitir o isolamento do caso sob julgamento em face do precedente. Nota-se que, exatamente pela circunstância de que o distinguishing, depende de justificativa, há que se ter uma pauta racional uniforme na identificação dos seus critérios. Ou melhor, há que se uniformizar a aplicação dos próprios critérios para a realização do distinguishing, criando-se aí também uma obrigação de respeitar as decisões passadas. A não adoção do precedente, em virtude do distinguishing, não quer dizer que o precedente está equivocado ou deve ser revogado. Não significa que o precedente constitui bad law, mas somente inapplicable law. (MARINONI, Luiz Guilheme. Precedentes obrigatórios. 4. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. Páginas 230 e 231);
2 “Leading cases” na tradução literal: “Casos principais”.