Migalhas de Peso

Violência doméstica, guarda dos filhos e a aplicação do art. 1.584, §2º, do Código Civil

Um mau marido é um bom pai? Há incompatibilidade entre o regime automático da guarda compartilhada e o sistema legal protetivo da mulher vítima de violência doméstica?

9/11/2021

(Imagem: Arte Migalhas)
1. Introdução

Não deve haver dúvidas de que a dignidade da pessoa humana é fundamento norteador do sistema normativo, do que não escapa o Direito Civil. Também é inquestionável que, ao lado da dignidade humana, o princípio da igualdade é diretriz basilar para a construção do Estado Democrático de Direito.

Mesmo passadas décadas desde a concretização desses princípios pela Constituição da República, ainda há situações graves de desigualdade e violações da dignidade das mulheres. Guilherme Calmon Nogueira Gama atribui a desigualdade de gênero a fatores assimilados pelos nossos antepassados que fizeram “com que a mulher, por meio das convicções e dos valores culturais, se tornasse subordinada e subserviente ao poder masculino, especialmente a partir do convencimento de que a mais importante função da mulher na civilização era a de procriar e, além disso, de educar sua prole”.1

Mais concretamente, desse contexto de desigualdade surge um grave problema social: embora a lei 11.340/06 (a lei Maria da Penha), de natureza essencialmente criminal, represente avanço na proteção da mulher contra a violência doméstica, o ordenamento jurídico brasileiro ainda carece de disposições que confiram à violência doméstica repercussões também sobre o Direito Civil, em especial nas relações familiares.

Noutro giro, as inovações trazidas pela lei 13.058/14 estabelecem a guarda compartilhada como regime automático, equilibrando a distribuição das responsabilidades dos pais sobre a criação e o desenvolvimento dos filhos, bem como buscando evitar situações de “alienação” dos menores.2 Contudo, a opção legislativa pela guarda compartilhada como regra geral não está isenta de críticas.

Criou-se, assim, uma situação em que a literalidade das disposições legais pode permitir que, mesmo em relações conjugais marcadas por violência doméstica (durante a vigência da relação ou até mesmo após a sua dissolução), o ex-cônjuge agressor ainda tenha o direito de exercer a guarda do filho menor, ainda que de forma compartilhada. Para se resolver tal impasse, recorre-se a princípios constitucionais que regem o Direito de Família.

2. Princípios aplicáveis

Além da dignidade da pessoa humana, a Constituição de 1988 consagrou o princípio da igualdade e estabeleceu como objetivos da República a construção de “uma sociedade livre, justa e solidária”, a redução das “desigualdades sociais e regionais” e a promoção do “bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Também interessam ao tema tratado neste texto, os princípios da “paternidade responsável” e do melhor interesse da criança.

Para Heloisa Helena Gomes Barboza e Vitor de Azevedo Almeida Junior, em um contexto social marcado pela violação à dignidade das mulheres, “[a]o legislador não cabe simplesmente garantir uma igualdade formal entre os gêneros”, sendo necessário “promover uma igualdade substancial, que vise tutelar a dignidade social e a autonomia da mulher de forma efetiva”.3

Guilherme Calmon Nogueira Gama, com propriedade, entende ser mais adequado referir-se ao princípio da “paternidade responsável” como princípio da “parentalidade responsável”, definindo-o como “a assunção de deveres parentais em decorrência dos resultados do exercício dos direitos reprodutivos – mediante conjunção carnal, ou com recurso a alguma técnica reprodutiva”, que deve estar atrelada à “responsabilidade individual e social das pessoas do homem e da mulher que, no exercício das liberdades inerentes à sexualidade e à procriação, vêm a gerar uma nova vida humana cuja pessoa – a criança – deve ter priorizado o seu bem-estar físico, psíquico e espiritual, com todos os direitos fundamentais reconhecidos em seu favor”.4

O princípio do melhor interesse da criança, também surgido em meio ao processo de preeminência da dignidade da pessoa humana como valor maior da Constituição, traduz a concepção do menor como sujeito de direito, merecedor de tutela e com absoluta prioridade no ordenamento, o que é reverberado pela lei 8.069/1990 (o Estatuto da Criança e do Adolescente).5

3. Guarda compartilhada, violência doméstica e o recente avanço legislativo

A guarda compartilhada estabelece a possibilidade de ambos os pais assumirem a “plena e cotidiana responsabilidade pela criação, educação e lazer dos filhos” e a chamada “corresponsabilidade parental, capaz de assegurar aos filhos a participação de ambos os genitores no processo de sua formação e educação, o que frequentemente não se conseguia alcançar com o ‘direito-dever de visita’, decorrente da guarda unilateral”.6

Pela lei 13.058/2014, o art. 1.584, §2º, do Código Civil foi alterado para prever a guarda compartilhada como regime automático, salvo acordo dos genitores ou declaração expressa de um deles em sentido contrário.

O TJ/RJ já julgou caso concreto no sentido de que, havendo violência familiar, a guarda compartilhada não é compatível com “o melhor interesse das crianças, as quais devem receber a mais ampla e irrestrita proteção”, o que “se mostraria ameaçado com o convívio de forma compartilhada com seus genitores”.7

Devolvida a matéria ao STJ, a Terceira Turma, por unanimidade, mesmo diante da premissa de ocorrência de violência familiar considerada em segundo grau, reformou o acórdão do TJ/RJ para conferir ao pai agressor o direito à guarda compartilhada, entendendo que “a nova redação do art. 1.584 do Código Civil irradia, com força vinculante, a peremptoriedade da guarda compartilhada”.8

Há aí grave incompatibilidade com os valores constitucionais que estabelecem a própria função do instituto da guarda compartilhada, que é promover o melhor interesse da criança, sempre à luz dos preceitos de dignidade da pessoa humana, igualdade nas relações familiares e parentalidade responsável.

Nessa linha, não é raro que os filhos do casal envolvido nos casos de violência doméstica contra a mulher, dentro do seu próprio lar, presenciem as discussões entre seus pais e, ainda que de modo indireto, também sejam vítimas das agressões.9

Um outro impasse decorrente da implementação automática da guarda compartilhada foi relatado pela Defensora Pública Flávia Nascimento em reunião realizada em 9.5.2018, na Comissão Permanente Mista de Combate à Violência contra a Mulher da Câmara dos Deputados. Para Flávia Nascimento, então coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, a guarda compartilhada acentua a vulnerabilidade de mulheres vítimas de agressão, já que “os autores de violência usam a visitação para se aproximar das mulheres”, ponderando ainda que a guarda compartilhada por vezes é um subterfúgio do pai para manter um vínculo com a mãe.10

É natural no sistema jurídico brasileiro que problemas sociais e temas controvertidos primeiro cheguem às Cortes e sejam tratados pela doutrina para, somente então, o legislador responder a determinadas demandas sociais. E, nesse contexto em que há precedentes que não vislumbram que a guarda compartilhada pode provocar danos aos próprios filhos e acentuar a vulnerabilidade da mulher, foram editados os Projetos de lei 29/2020 e 3.696/2020.

A ementa do Projeto de lei 3.696/2020 revela que seu objetivo é alterar o parágrafo 2º do artigo 1.584 do Código Civil e a legislação processual “para estabelecer causa impeditiva para a concessão da guarda compartilhada, bem como impor ao juiz o dever de indagar previamente o Ministério Público e as partes sobre situações de violência doméstica ou familiar envolvendo os pais ou genitores ou qualquer deles e um filho ou fatos outros que indiquem o risco considerável de sua ocorrência”.11

Nenhum dos Projetos de lei acima referidos foi concluído e não há previsão de entrarem em vigor, tendo sido aprovados em parecer da Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados em 23.9.2021.

Embora a passos lentos, o legislador ordinário dá indícios de que diagnosticou graves problemas sociais e busca solucionar tal impasse concretizando na proposta de alteração do art. 1.584, §2º, do Código Civil os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade material, da parentalidade responsável e do melhor interesse da criança.

4. Conclusão

A guarda compartilhada como regime automático apresenta dilemas ao intérprete, notadamente nas situações de violência doméstica. A despeito da existência de princípios que fundamentem as soluções desse impasse, mediante a aplicação excepcional da guarda unilateral do ex-companheiro agredido, a insuficiência de instrumentos legais para regular essa situação gera grave instabilidade na jurisprudência.

Daí se conclui que a edição dos Projetos de lei 29/20 e 3.696/20, ao excepcionarem da regra geral de guarda compartilhada as situações de agressões no âmbito familiar, serão valiosos instrumentos de promoção da dignidade da mulher e da igualdade substancial almejada pelos movimentos feministas, bem como de prestígio à parentalidade responsável e ao melhor interesse da criança.

________

1 O autor complementa que tal indesejável situação de desigualdade decorre inclusive de razões biológicas: “[e]nquanto o homem contribui com o espermatozoide para a futura formação do novo ser, a mulher, além de também contribuir com o óvulo, cede o interior de seu corpo para o desenvolvimento do embrião, fornecendo todo o conjunto de recursos – materiais e imateriais – para permitir, após quarenta semanas, o nascimento da pessoa de seu filho.” (GAMA, Guilherme Calmon Nogueira. Princípio da Paternidade Responsável. Doutrinas essenciais família e sucessões, vol. 4. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 521)

2 Nesse sentido: MORAES, Maria Celina Bodin. A guarda compartilhada e o direito da criança à convivência familiar, desde que a salvo de toda forma de violência. Editorial à Civilística.com. Rio de Janeiro, a. 8, n. 2, 2019. Disponível aqui. Acesso em: 4.11.2021.

3 Os autores acrescentam ser necessário promover a igualdade no seu viés material voltada às mulheres, dado que “a igualdade formal rompeu-se com a emergência de figuras subjetivas não comportadas pela categoria teórica, a qual acolheu em sua completude por longo tempo somente o homem burguês, maior, alfabetizado e proprietário. Nesse contexto, as mulheres foram excluídas e sofreram redução de sua capacidade com o casamento, além de verdadeira ‘mortificação da sexualidade’” (BARBOSA, Heloisa Helena Gomes; ALMEIDA JUNIOR, Vitor de Azevedo de. (Des)igualdade de gênero: restrições à autonomia da mulher. Pensar-Revista de Ciências Jurídicas. Fortaleza, v. 22, n.1, p. 243 e 262, jan./abr. 2017).

4 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira. op. cit., p. 525-526.

5 Para Luiz Edson Fachin, a concretização do princípio do melhor interesse da criança decorre de alguns fatores primordiais, tais como “o amor e os laços afetivos entre o pai ou titular da guarda e a criança; a habitualidade do pai ou titular da guarda de dar à criança amor e orientação; a habitualidade do pai ou titular da guarda de prover a criança com comida, abrigo, vestuário e assistência médica; qualquer padrão de vida estabelecido; a saúde do pai ou titular da guarda; o lar da criança, a escola, a comunidade e os laços religiosos; a preferência da criança, se a criança tem idade suficiente para ter opinião; e a habilidade do pai de encorajar contato e comunicação saudável entre a criança e o outro pai”. (FACHIN, Luiz Edson. Da paternidade. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 98.)

6 MORAES, Maria Celina Bodin. A guarda compartilhada e o direito da criança à convivência familiar, desde que a salvo de toda forma de violência. Editorial à Civilística.com. Rio de Janeiro, a. 8, n. 2, 2019, p. 1. Disponível aqui. Acesso em: 4.11.2021.

7 Em virtude do sigilo do processo, o trecho do julgamento em segundo grau foi extraído da transcrição feita no subsequente acórdão do STJ, disponibilizado para acesso ao público e também tratado neste artigo.

8 Segundo a Terceira Turma, “o termo ‘será’ [previsto no artigo 1.584, §2º, do Código Civil] não deixa margem a debates periféricos, fixando a presunção – jure tantum – de que se houver interesse na guarda compartilhada por um dos ascendentes, será esse o sistema eleito, salvo se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda do menor (art. 1.584, § 2º, in fine, do CC)”. (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, Recurso Especial nº 1.629.994/RJ, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 6.12.2016)

9 Alice Bianchini reconhece a existência de “danos advindos do fato de a criança ou o adolescente testemunhar episódios de violência entre seus pais ou pessoas próximas de si”, nomeando tais circunstâncias como “vitimização indireta”. Para a autora, o filho(a), “apesar de não ter sofrido nenhuma violência, é contagiada pelo impacto da violência dirigida contra uma pessoa com quem mantém uma relação próxima. A violência contra a mãe, nesses casos, é uma forma de violência psicológica contra a criança. (BIANCHINI, Alice. Os filhos da violência de gênero. Disponível em: . Acessado em 4.11.2021.)

10 Debatedoras defendem exceções à guarda compartilhada em casos de violência. Disponível aqui. Acesso em 4.11.2021.

11 Baseando-se em tal propósito, assim seriam redigidos os parágrafos 2º e 2º-A (este a ser acrescido) do artigo 1.584 do Código Civil:

§ 2º Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho e se encontrando ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se um deles declarar ao magistrado que não deseja a guarda do menor ou ainda em caso de demonstrada violência doméstica e familiar praticada por qualquer dos pais contra o outro ou um filho ou de haver indícios suficientes ou risco considerável de sua ocorrência

§ 2º-A Para os fins do disposto no § 2º do caput deste artigo, considera-se violência doméstica e familiar qualquer ação ou omissão que o agente, na condição de autor, coautor ou partícipe, tenha dolosamente praticado e que importe grave ofensa, em razão do resultado obtido ou sofrimento provocado, à vida, à integridade física ou psicológica, à liberdade, à dignidade sexual, à saúde corporal, à honra ou ao patrimônio do ofendido.”

João Rafael Castro de Oliveira
Advogado da área de Solução de Conflitos do BMA Advogados, pós-graduado em Direito Processual Civil e mestrando em Direito Civil-Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

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