Dominou os noticiários do mundo a tragédia ocorrida no set de gravações do filme Rust, nos Estados Unidos. O ator Alec Baldwin efetuou um disparo com uma arma cenográfica, causando a morte da diretora de fotografia Halyna Hutchins e ferimento do diretor Joel Souza.
Para avaliar qual poderia ser a responsabilidade criminal das pessoas envolvidas, à luz da legislação penal brasileira, importante, primeiro, estabelecer-se a hipótese fática. Considere-se terem os fatos ocorrido da forma como noticiado até o momento, sem aventar para eventuais novos indícios que possam advir das investigações.
Conforme narram as reportagens mais recentes, Baldwin acreditava que a arma cenográfica que recebeu estava carregada com balas de festim, que são cartuchos vazios, sem poder letal. No entanto, a munição era verdadeira.
Testemunhas ouvidas pela polícia local afirmaram que o ator foi avisado por Dave Halls, assistente de direção, que a arma estava pronta para filmagem, pouco antes do disparo1. Aparentemente, Halls também não sabia que a arma continha projétil real quando a entregou ao ator. A polícia ainda não descobriu quem carregou a arma com munição verdadeira e se havia qualquer intenção por trás disso. Os fatos, tais como efetivamente ocorreram, dependem de precisa coleta de provas.
Parece indiscutível, à primeira vista, que o ator Alec Baldwin não agiu com intenção de matar – o chamado animus necandi – que caracteriza o dolo direto do crime de homicídio. Na hipótese ora assumida, ele acreditava, com convicção, que a arma estava cheia de balas de festim e, por isso, que seria absolutamente ineficaz para ferir alguém. No mundo jurídico, “erro” pode ser tanto a falsa representação da realidade, quanto a sua ignorância ou desconhecimento.
No artigo 20 do Código Penal brasileiro está prevista a figura do “erro de tipo”, que caracteriza o engano incidente sobre elementos objetivos do tipo penal, a abranger qualificadoras, causas de aumento de pena e agravantes.
“Elemento constitutivo do tipo” significa cada componente integrante da norma penal incriminadora, isto é, do modelo legal da conduta proibida. Na descrição do Código Penal, o crime de homicídio possui dois elementos: “matar” e “alguém” (art. 121, CP).
Um exemplo tradicional da doutrina sobre erro de tipo é o caçador, no meio da floresta, que imagina estar mirando sua espingarda em um animal, mas, ao atirar, acaba matando, involuntariamente, um ser humano. O caçador incorria em erro sobre a elementar “alguém” do tipo penal de homicídio.
Pois bem. Se foi um terceiro indivíduo que levou o agente a incidir em erro, ele deve responder pelo delito. O §2º do artigo 20 do Código Penal prevê expressamente essa possibilidade, estabelecendo, in verbis, que “responde pelo crime o terceiro que determina o erro”.
O caso analisado é exatamente este. O ator Alec Baldwin, ao receber a arma, foi avisado que o instrumento estaria seguro para uso, a partir da expressão “cold gun” (arma fria), dita pelo assistente de direção Dave Halls.
Assim, o ator somente atirou porque pensava que a arma cenográfica estava corretamente munida de balas de festim. Ou seja, acreditando na sua absoluta ineficácia, puxou o gatilho. Só depois percebeu ter matado a diretora, tomando, finalmente, conhecimento da realidade: a arma havia sido munida com um projétil de verdade. O erro recaiu, no caso, sobre a situação da arma e sua aptidão para perfazer a conduta matar alguém. E este erro foi determinado por uma terceira pessoa.
Uma vez configurado o erro de tipo, exclui-se o dolo da conduta, podendo ainda haver condenação por crime culposo. É preciso verificar, então, se o erro não derivou de desatenção ou descuido indevido por parte do agente. Isto é, caso o agente tenha agido com imprudência, imperícia ou negligência, mereceria ser punido pelo resultado danoso a título de culpa.
Culpa é o comportamento voluntário descuidado que produz um resultado não desejado, mas previsível, que poderia ter sido evitado.
Um dos elementos da culpa é a ausência do dever de cuidado objetivo, que se caracteriza pelo descumprimento de regras básicas de atenção e cautela, exigíveis de todos os indivíduos da sociedade, especialmente em situações de risco.
Essas regras gerais de cuidado são originadas por diversos meios, desde leis formais, normas administrativas, até costumes. Visam a evitar danos, perigo de dano ou sua potencialidade.
Por outro lado, não se exige de uma pessoa atenção extraordinária ou além do razoável. Por isso, outro elemento da culpa é a previsibilidade, que significa a possibilidade de prever o resultado lesivo, inerente a qualquer indivíduo. Analisa-se, nessa etapa, se a média da sociedade teria condições de prever o resultado, empregando perspicácia comum, e se o agente do delito possuía capacidade pessoal para evitá-lo. Ausente qualquer viabilidade prognóstica, é também afastada a culpa da conduta.
Nesse cenário, pertinente compreender o Princípio da Confiança, que se define pela pressuposição, que qualquer pessoa tem, de que os outros respeitarão as normas, desde que não haja sinais apontando o contrário. Ou seja, quem age cuidadosamente, pode confiar que os demais também operarão com a mesma cautela. Exemplo doutrinário corriqueiro é o indivíduo que, ao atravessar na faixa de pedestres, confia que os motoristas dos carros irão parar diante do sinal vermelho, respeitando as normas de trânsito.
Num contexto empresarial, o princípio da confiança tem peculiar importância, pois os deveres de cuidado se relacionam com as tarefas e funções designadas a cada empregado.
Difícil imaginar que o ator, num set de gravações, fosse um dos encarregados de verificar a regularidade da arma cenográfica. Deve haver um departamento da equipe estritamente encarregado de observar o cumprimento dos protocolos de segurança quanto ao manuseio de armamentos, provavelmente incidindo, inclusive, regras institucionais de verificação. Neste quadro, uma vez recebido o aviso de “cold gun” do assistente de direção, o ator, movido pelo princípio da confiança, não teria motivo para supor que as normas de cuidado não haviam sido seguidas pelos responsáveis, de modo que coubesse a ele desincumbir-se dessa checagem.
A doutrina divide o erro de tipo em escusável ou inescusável. Escusável é o erro inevitável, o qual o agente não poderia superar nem se tivesse empregado grande diligência. Admite-se, ainda, como se viu, a imprevisibilidade em situações resultantes de ações de terceiros intervenientes, considerando o princípio da confiança. O erro de tipo escusável, portanto, exclui, além do dolo, também a culpa.
Destarte, no caso, a previsibilidade indispensável à configuração do crime culposo por Alec Baldwin foi evidentemente afastada pelo aviso de segurança do assistente de direção. Assim, uma vez reconhecido ter havido erro de tipo provocado por terceiro, a gerar ausência de previsibilidade do resultado danoso, em razão do princípio da confiança estabelecido na relação de trabalho, não se cogita ter havido nem dolo nem culpa na conduta do ator. Este, na hipótese assumida, não incorreria em nenhuma forma de punição, por completa atipicidade da sua conduta.
Importante mencionar que caso existisse alguma regra de cautela imposta pela equipe, por contratos, por lei, enfim, estabelecendo claramente que o ator que encena com arma de fogo deve, também, checar a munição antes de utilizá-la (ou seguir outras instruções) – o que não parece provável –, Baldwin, não o fazendo, poderia, sim, responder perante a justiça por homicídio culposo, ao agir com negligência.
Cumpre, agora, entender a conduta do terceiro, assistente de direção, a quem poderia recair responsabilização criminal, conforme prevê o Código Penal. Dave Halls, de acordo com os elementos de prova até o momento colhidos, também ignorava o fato de a arma estar munida com projétil real. Nesta hipótese, ele igualmente incorreria em erro de tipo, excluindo-se o dolo, mas possibilitando a responsabilização por crime culposo, caso restasse verificado que, em razão de seu cargo, ele possuía algum dever de cuidado objetivo, ou que por qualquer outro motivo circunstancial, pudesse ter previsibilidade do resultado.
Nesse sentido, se comprovado que Halls tinha obrigação de tomar alguma providência para conferir a informação de “cold gun” ou para verificar o cumprimento dos protocolos de segurança, ele responderia pelo crime de homicídio culposo, cuja pena é de detenção, de um a três anos, no Código Penal brasileiro. A pena poderia, ainda, ser aumentada em um terço, pois o crime resultaria da inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, conforme o § 4º.
O armeiro Bryan Carpenter, mestre em armas na indústria cinematográfica, disse à CNN que deve haver “certeza de que a arma está realmente fria”. Mike Tristan, fornecedor de itens de armamento a filmes de Hollywood, com mais de 30 anos de carreira na área, afirmou ao jornal Daily Mail que a responsabilidade pela segurança no set é de quem disponibiliza as armas de fogo: “A arma deveria estar esvaziada e o trabalho do armeiro no set é verificar isso antes de entregá-la”. Ele citou outros cuidados de segurança, como o posicionamento do ator em área previamente determinada e a garantia de nunca apontar a arma a qualquer membro da equipe2.
Nessa perspectiva, caso um terceiro ainda não identificado, responsável pela segurança, como o armeiro, tivesse avisado Dave Halls sobre a regularidade da arma cenográfica, o assistente de direção, não encarregado de conferir a assertiva, na hipótese de ter só repassado o aviso de “cold gun”, também estaria contemplado pelo princípio da confiança. A conduta de Halls seria atípica, não cabendo nenhuma punição.
Na esteira da declaração de Mike Tristan, acima transcrita, o erro teria sido, então, determinado pelo armeiro da equipe. A imprensa norte-americana identifica a armeira Hannah Gutierrez Reed como a que atuava no set de Rust, até agora sem reportar maiores detalhes sobre sua participação no acontecimento. Assim montados os fatos, a armeira deveria ser responsabilizada criminalmente. Aliás, ela só se livraria de qualquer imputação caso Dave Halls ou outra pessoa tivesse pegado a arma sem a consultar ou se de alguma outra forma tivesse passado por cima de suas atribuições.
Logo, cabe conjecturar a possibilidade de o assistente de direção Dave Halls ter agido de forma completamente autônoma, sem nenhuma intervenção de terceiros. Se ele pegou a arma sem confirmar se havia esta sido fiscalizada pela armeira, mas, ainda assim, ignorando estar carregada com munição autêntica, poder-se-ia considerar que ele teria assumido relevante risco de produção do resultado. Seria possível, neste caso, o entendimento, de acordo com a legislação penal brasileira, que se tratasse de um homicídio por dolo eventual por parte de Dave Halls.
Caso semelhante ao ora analisado ocorreu no México, durante as filmagens de “La Venganza del Escorpión”, em Cuernavaca: “Consta que o ator Flavio Penichedo recebeu da produção um revólver carregado com balas de verdade no lugar das de festim. Desferiu dois tiros e percebeu que o amigo estava ferido. O produtor do filme e um contrarregra desaparecem após o evento. Assim, alguém, desejando matar o ator Antonio Velasco, aproveitando-se da cena de disparo de arma de fogo com balas de festim, substituiu por projéteis verdadeiros, entregando o instrumento ao outro ator que, sem saber e não pretendendo matar alguém, puxa o gatilho, causando a tragédia”3.
A propósito, quanto ao caso Alec Baldwin, exaurindo todas as possibilidades jurídicas, na hipótese improvável de ter sido implantada a arma dolosamente, este outro terceiro hipotético e não determinado seria autor de homicídio doloso. Neste cenário, o ator e o assistente de direção, em erro de tipo, ao receberem o revólver, caso tivessem dever de checar a munição como regra imposta de cautela, não o fazendo, responderiam por participação culposa em ação dolosa de outrem.
Todas as considerações aqui expostas são meras conjecturas, levantadas para fim de divagação jurídica sobre este caso rumoroso. A verdade real, para instruir um julgamento legal e justo, só a prova dos autos trará.
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1 Disponível aqui.
2 Disponível aqui. .
3 NUCCI, Guilherme. Curso de Direito Penal. Volume 1. São Paulo, Editora Forense: 2021. Página 493.