Migalhas de Peso

O precedente vinculante e o papel do STJ

A racionalização da atividade jurisdicional é desafiada pelo excesso de demandas e pela falta de uniformidade das decisões em casos semelhantes. A instituição do precedente vinculante pode mudar essa realidade.

3/11/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Desde a Constituição Federal de 1988, mais analítica, o Poder Judiciário vem ganhando maior projeção, firmando-se como um Poder Político mais atuante. O alargamento da atuação jurisdicional parece ocupar um espaço aberto pela ineficiência dos outros Poderes em oferecer respostas, em tempo e modo, às necessidades sociais, somado ao fato de o Estado, nas três esferas federativas, figurar como o maior litigante perante a Justiça brasileira.

Ao direcionar o foco para o Superior Tribunal de Justiça – que ostenta o título de Tribunal da Cidadania pelo alcance social de sua atuação jurisdicional –, cumpre destacar sua função precípua, qual seja, a de uniformizar a intepretação e aplicação da legislação federal infraconstitucional. A nobre incumbência, que lhe foi atribuída pelo Legislador Constituinte de 1988, na sua gênese, traduz a obrigação de produzir decisões aptas a servir de farol a juízes e tribunais, como forma de implementar uma justiça mais consentânea com os princípios da celeridade, igualdade, isonomia e, sobretudo, segurança jurídica.

A propósito, a criação do Superior Tribunal de Justiça veio ao encontro de uma premente necessidade de desafogar o Supremo Tribunal Federal, cujo funcionamento estava em ponto de crise. A quantidade de ingressos de novos processos era consideravelmente superior à capacidade de produção de decisões da Suprema Corte, gerando grande acúmulo e demora.

Ao longo da sua existência, o Superior Tribunal de Justiça vem enfrentando um crescente aumento do número de processos distribuídos e julgados, ano a ano, situação que, naturalmente, põe em cheque a sua capacidade de cumprir com eficiência sua missão institucional.

Nesse contexto, o Código de Processo Civil de 2015 instituiu o dever de juízes e tribunais observarem, dentre outros, os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recurso especial repetitivo; os enunciados das súmulas do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; e, no âmbito interno desse tribunal, a orientação da Corte Especial.

O que fez o Legislador foi introduzir no ordenamento jurídico o sistema de precedentes (vinculantes), com o claro propósito de trazer racionalidade à atividade jurisdicional, iniciativa resultante de uma escalada progressiva de esforços legislativos e jurisprudenciais para enfrentar a multiplicação exponencial de demandas, muitas delas repetitivas, gerando sobrecarga e, por conseguinte, morosidade da prestação jurisdicional.

A lei processual nova tem inspiração na experiência de países que adotam o sistema do common law, onde, a despeito de existirem diferenças de concepção e funcionamento, a noção de vinculação ao precedente foi construída ao longo de séculos de tradição, razão pela qual naquelas comunidades jurídicas sequer há necessidade de regramento expresso impingindo a obrigação.

A adoção de um instituto típico do common law, cujas nuanças não são familiares aos operadores do direito acostumados com o civil law, causa natural estranheza e compreensíveis dificuldades de adaptação.

Com efeito, a tradição romano-germânica tem a lei como principal fonte do direito, com conteúdo normativo geral e abstrato, que será a base de um raciocínio dedutivo, isto é, a partir de diretrizes gerais chega-se à solução de casos particulares, a qual, em regra, só obriga as partes.

No common law, ao revés, as decisões judiciais são a principal fonte do direito e seus efeitos são vinculantes e gerais, formadas a partir da utilização de um raciocínio é indutivo: a norma de direito é extraída a partir da decisão que resolve um caso concreto, a qual deve orientar a solução de casos semelhantes futuros.

A despeito das diferenças, nota-se um movimento de aproximação entre esses dois sistemas, tendência que ganhou impulso em meados do século XIX e se estende até os dias de hoje, nos dois sentidos. De um lado e de outro, por razões de índole eminentemente pragmática, percebe-se a troca de influências e quebra de alguns paradigmas.

A Inglaterra, por exemplo, berço do common law, precisou fazer adaptações internas para se integrar aos seus parceiros comerciais do continente europeu, como a edição crescente de leis e a restruturação do sistema judiciário; o Brasil, de bases no civil law, buscou na força da obrigatoriedade dos precedentes uma forma de alcançar estabilidade, integridade e coerência da jurisprudência dos tribunais, na dicção do art. 926 da novel legislação processual civil.

Neste momento de acomodação, uma das preocupações legítimas dos estudiosos do tema é não permitir que a influência positivista converta as Corte Superiores em arautos da revelação exclusiva da norma de direito que deve viger, em detrimento da contribuição das instâncias ordinárias, que podem ser excluídas do processo de construção do padrão decisório, caso não exista meios eficientes de rediscussão do entendimento fixado nos precedentes obrigatórios.

Cumpre observar que, no sistema do common law, a construção do precedente não parte da decisão da Corte Superior, mas do reconhecimento pelos juízes de piso da subsunção do caso julgado ao caso em julgamento, momento a partir do qual se reconhece sua força vinculante.

Como preleciona Dworkin, por meio de interessante metáfora, o direito deve ser construído como um “romance em cadeia”, isto é, cada intérprete deve analisar tudo que fora considerado nas decisões paradigmáticas passadas, para escrever um novo capítulo interpretativo da realidade hodierna.      

Nessa perspectiva, é relevante o papel que assume os sujeitos do processo na formação, manutenção e eventual reformulação dos precedentes, sobrelevando-se o princípio da comparticipação, como expressão da possibilidade de os personagens envolvidos contribuírem no resultado do julgamento.

Embora seja natural que se passe a exigir dos advogados a apresentação de argumentação mais elaborada, a fim de reafirmar ou rejeitar a subsunção do seu caso ao precedente, não se pode olvidar que também se espera do juiz idêntica postura, isto é, que sua decisão exponha claramente as razões pelas quais aplica ou deixa de aplicar a orientação firmada pelas Cortes Superiores e os porquês do acolhimento ou rejeição dos argumentos das partes litigantes.

Dessa dinâmica infere-se o princípio da inércia de Perelman, como forma de prestígio do que se lhe apresenta “habitual, real e atual” e, sobretudo, estável. Por isso, exige-se maior “carga de argumentação”, na expressão cunhada por Alexy, para aquele que pretende romper com o direito instituído.

Nesse contexto, em que se exorta com maior vigor o espaço da argumentação jurídica, é inevitável voltar-se a atenção aos estudos dos teóricos dessa árdua tarefa da qual devem-se desincumbir os operadores do direito. Incontáveis são seus estudiosos e suas teorias, muitas delas colidentes, razão pela qual não haveria como apontar um padrão depurado, porquanto inexistente. Contudo, ousando pinçar apenas uma ideia central, que parece ser comum a todas elas, busca-se sempre a “justificação de argumentos”, como preleciona Atienza, tendo como elemento basilar perquirir por “critérios universais”, como ensina Habermas.

Entre nós, o chamado “ônus argumentativo” revela-se como consectário lógico da lei processual civil em vigor, que, embora não o referencie de modo expresso, põe em evidência as consequências prejudiciais à parte que deixa de cumpri-lo, a exemplo do julgamento ab initio de improcedência do pedido ou do desprovimento monocrático dos recursos manejados, previstos, respectivamente, nos arts. 332 e 932, inciso IV, ambos da Código de Processo Civil.

Por conseguinte, se se exige a apresentação de uma argumentação “qualificada” para quebrar a tendência de inércia estabelecida com o precedente, mostra-se imprescindível a construção de decisões cuja ratio decidendi seja plasmada de forma mais explícita possível, de modo a permitir o exercício substancial da dialeticidade e, assim, o debate jurídico adequado.

A ratio decidendi é a alma do corpo da decisão. Encontrá-la não é tarefa das mais fáceis nem mesmo no judge made law. Ela é extraída da análise de um conjunto de elementos que descrevem o entendimento jurídico construído no processo decisório, os quais devem englobar não só os fundamentos da decisão, mas também os fatos relevantes para a contextualização da causa e a delimitação da controvérsia jurídica até a sua solução.

Vale ressaltar que o obiter dictum é a parte da argumentação do julgado desnecessária à solução da controvérsia, embora quase sempre circundante. Sendo uma discussão lateral, secundária, não pode integrar a ratio decidendi e não produz efeitos vinculantes para julgados futuros, quando muito inspiram a apreciação de novos casos. Por ser um elemento estranho à solução da causa, o pronunciamento judicial “de ofício” sobre matéria fora dos limites da lide, se fosse utilizado com força vinculante, afrontaria princípios constitucionais basilares, notadamente da inércia da jurisdição, da congruência e do devido processo legal, na medida em que não teria sido submetido a prévio contraditório.

Com esses elementos essenciais identificados, é possível pensar em revisitação do precedente no futuro, a partir da aferição de aspectos distintivos ou relevantes do caso sob análise, aptos a justificarem, respectivamente, eventual distinção (distinguishing) do paradigma ou mesmo superação (overruling) da decisão vinculante quando não mais adequada em razão de modificações profundas na lei ou no contexto social de sua aplicação.

Se, por um lado, é profícuo para a racionalidade do sistema processual recursal brasileiro a adoção de precedentes vinculantes, como meio de se conter a proliferação de demandas repetitivas, recursos infundados ou mesmo de litigâncias de má-fé, por outro lado, há de se viabilizar instrumentos para distinção ou superação dos entendimentos firmados pelas Cortes Superiores, sob pena de comprometimento da própria sobrevivência do recém incorporado instituto, ainda carente de bases sólidas em terreno ainda estranho de suas origens.

A conclusão inexorável, portanto, é que não se alcança isonomia de tratamento e segurança jurídica sem certa estabilidade das teses fixadas pelas Altas Cortes e, naturalmente, sua observância pelos diversos órgãos do Poder Judiciário, o que não implica sugerir engessamento de interpretações, tampouco desatenção a peculiaridades distintivas de cada caso no seu contexto atual.

Cumpridas essas diretrizes, cria-se condições aptas a gerar previsibilidade mínima dos julgamentos de casos semelhantes e, assim, inibe-se o ajuizamento de novas demandas e desestimula-se a interposição de recursos temerários, porquanto fadados ao insucesso, desafogando juízes e tribunais pátrios, assoberbados pelo excesso de litigiosidade, abrindo espaço para uma prestação jurisdicional mais racional, eficiente e igualitária.

Marcos Aurélio Pereira Brayner
Assessor de Ministro do Superior Tribunal de Justiça há mais de 20 anos, Mestrando do Programa de Mestrado Profissional em Direito, Regulamentação e Políticas Públicas da Universidade de Brasília.

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