A portaria 725/21 da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado do Ceará estabeleceu uma série de diretrizes acerca do protocolo de funcionamento da nova prisão de segurança máxima do Estado, localizada na cidade de Aquiraz-CE. Dentre regras estabelecidas pela fatídica portaria existe aquela que limita ad eternum a visitação do apenado ao parlatório, sem qualquer tipo de contato físico. É o que consta da previsão do art. 14, II in verbis
Art. 14. A inclusão na UPSM, no atendimento do interesse da segurança pública, será em regime fechado de segurança máxima, com as seguintes características:
(...)
II- Direito à visita do cônjuge, do companheiro e de parentes de primeiro grau, somente em dias determinados e pré-agendados, no parlatório, com o máximo de 2 (dois) visitantes, separados por vidro e comunicação por meio de interfone, filmadas e gravadas, pelo período máximo de 30 minutos por visita; (sem grifos no original)
A regra insculpida na portaria cearense em muito se assemelha àquela contida na Lei de Execuções Penais, em seu art. 52, III, ao tratar das punições previstas ao apenado que esteja no Regime Disciplinar Diferenciado, conforme vemos
Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasionar subversão da ordem ou disciplina internas, sujeitará o preso provisório, ou condenado, nacional ou estrangeiro, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características:
III - visitas quinzenais, de 2 (duas) pessoas por vez, a serem realizadas em instalações equipadas para impedir o contato físico e a passagem de objetos, por pessoa da família ou, no caso de terceiro, autorizado judicialmente, com duração de 2 (duas) horas; (sem grifos no original)
Entre os dois regramentos há uma distinção singular que escancara as ilegalidades e inconstitucionalidades do primeiro. No caso da Lei de Execuções Penais, a regulação do direito de visita do apenado sem contato físico acontece exclusivamente quando este cumpre pena sob a égide do Regime Diferenciado Disciplinar, ou seja, em razão de alguma falta grave cometida por este dentro do presídio. Já no âmbito da malograda portaria cearense, basta ao apenado que seja incluso na população carcerária do novel estabelecimento penitenciário para ser "agraciado" com a perda do direito de contato íntimo nas visitações.
Há inequívoca violação há toda sorte de argumentos, sejam eles as leis, a constituição, os princípios do direito, e, por que não, as regras de hierarquia e hermenêutica jurídica nessa prática adotada pela Secretaria de Administração Penitenciária Cearense. De início podemos citar a clara violação aos Princípios Constitucionais da Isonomia e Dignidade da Pessoa Humana. Inicialmente podemos dizer que a Lei de Execuções Penais, que rege todos os trâmites da execução penal no território brasileiro, não prevê, dentro da normalidade, à restrição ao contato físico no exercício do direito de visita ao preso. Além disso, é sempre de bom tom lembrar que a Unidade Prisional de Segurança Máxima do Estado do Ceará – USPM não é destinada à aplicação do Regime Disciplinar Diferenciado.
É notável que, considerando a normalidade da execução penal, somente os presos que estejam em Regime Disciplinar Diferenciado podem ser submetidos à restrição de contato em visitações. Dessa forma, a infeliz portaria cearense, ao estabelecer tal norma como regra geral, e não a exceção, em seu funcionamento, acaba por ferir o princípio constitucional da isonomia, tratando os presos que ali estiverem cumprindo pena de forma diferente de todos os demais custodiados no país.
É indiscutível também que a errática norma fere o princípio constitucional máximo da dignidade da pessoa humana. Não faltam estudos e publicações científicas sobre a importância do toque humano para o desenvolvimento social do indivíduo. É justamente o toque humano que dá racionalidade ao homem para não agir baseando-se tão somente em instintos animais. É de bom alvitre salientar ainda que a Carta Magna também prevê aos presos o direito de não serem submetidos a tortura e tratamento desumano e degradante (art. 5º, III) e de não serem submetidos a penas cruéis (art. 5º, XLVII).
Ao cortar integralmente qualquer possibilidade dos apenados de receberem contato humano de seus familiares, a administração penitenciária acaba por tratá-los como animais enjaulados. E bem sabemos qual é a reação de animais enjaulados para com aqueles que os mantém em cativeiro. Como se esperar que possa haver ressocialização dos presos com eles recebendo este tipo de tratamento da sociedade, aqui representada na administração penitenciária, indesejável até mesmo para outros seres vivos.
No âmbito das ilegalidades a norma analisada fera diretamente o cerne da Lei de Execuções Penais. É que esta garante ao apenado a manutenção de todos os direitos constitucional e legalmente assegurados não atingidos pela liberdade. Não havendo limitações na LEP quanto ao direito de visitação, desconsiderando a exceção do RDD, não pode a portaria cearense limar com esse direito assegurado legalmente assegurados ao apenado. Além disso, o primeiro artigo da LEP, ao elencar os objetivos da norma, afirma que um deles é justamente proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado. Como falar em integração do condenado quando este não pode sequer abraçar seu cônjuge e filhos? Impossível.
No que tange à teoria da hierarquia das normas, é inegável a insubsistência da portaria 725/21 da SAP/CE. É que não se vislumbra a possibilidade de uma simples portaria, enquanto norma latu sensu, contrariando leis strictu sensu, como a LEP – emanadas diretamente do Poder Legislativo –, ou mesmo a Constituição Federal, a qual todas as demais devem observar. Há uma verdadeira inversão de valores na portaria em comento.
Ainda, a adoção da restrição de visitação pessoal e com contato físico feita pela portaria 725/21 da SAP/CE, que em muito se assemelha às restrições do RDD, cai por terra, também, a partir do momento em que se percebe que ela é ad eternum. Uma vez sendo o preso inserido na população carcerária da UPSM de Aquiraz-CE ele ficará impossibilitado de tocar seus familiares até o final do cumprimento da pena. É inconcebível esse tipo de tratamento, tendo a jurisprudência pátria já se posicionado sobre o tema, in verbis
HABEAS CORPUS - ORDEM CONCEDIDA - RECURSO EX OFFICIO - ART. 41, X, LEP – DIREITO DE VISITAS RESTRITO AO PARLATÓRIO - JUÍZO DE CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE MOTIVADOS - DECURSO PROLONGADO DO TEMPO - ILEGALIDADE DA RESTRIÇÃO EXCEPCIONAL - REMESSA EX OFFICIO DESPROVIDA.
1. Habeas corpus concedido para restabelecer a plenitude de direito de visitas ao preso, não mais condicionando sua efetivação ao parlatório.
2. O direito do preso receber visitas do cônjuge, da companheira, de parentes e de amigos está assegurado expressamente na Lei de Execução Penal (art. 41, X) com o escopo de viabilizar a almejada ressocialização e reeducação do apenado até o retorno ao convívio familiar e social. Prevê o parágrafo único do artigo 41 da Lei de Execução Penal a possibilidade de restrição e até mesmo de suspensão do direito de visitas por ato motivado do Diretor do Estabelecimento Prisional.
3. Para bem gerir o estabelecimento prisional, a autoridade administrativa restringiu o direito de visita ao parlatório até que fossem concluídas investigações a respeito da comunicação ilegal de integrantes de organização criminosa com o mundo exterior através de bilhetes e mensagens intermediadas por visitantes.
4. A restrição ao direito de visitas imposta ao preso padece de ilegalidade em razão do decurso do tempo. Não é razoável a limitação de direito fundamental do preso por período injustificadamente prolongado (restrição à visita teve início em 08 de novembro de 2011 e perdurou até a concessão da ordem de habeas corpus, 14 de fevereiro de 2012).
5. Recurso ex officio improvido. REEXAME NECESSÁRIO CRIMINAL Nº 0001189-16.2012.4.03.6000/MS - Desembargador Federal Johonsom di Salvo
A manutenção de laços familiares com os parentes é imprescindível para a ressocialização dos apenados. E a visitação com contato físico é fundamental para a manutenção desses laços. Conforme visto, a própria Lei de Execuções Penais, em seu art. 1º releva o objetivo de manter a integração do preso à sociedade como uma de suas balizas fundamentais. Esta integração é feita primordialmente através da família, que tem na visitação a melhor, e muitas vezes única, forma de contato direto com a pessoa que está cumprindo pena.
Não há qualquer argumento plausível a justificar a ilegalidade e inconstitucionalidade que é o fato de impedir o apenado de ter contato íntimo com seus familiares. A despeito de qualquer inconstitucionalidade formal e material presentes na norma, são as questões humanitárias que realmente justificam a impossibilidade da manutenção da regra contida no art. 14, II da portaria 725/21 da SAP/CE no ordenamento jurídico. Há de haver um mínimo tangível de humanidade, e até mesmo hombridade, em nossas leis a permitir e possibilitar uma convivência social digna a todos os cidadãos, aqui incluídos aqueles que porventura tenham cometido algum crime. No final das contas, somos todos seres humanos.