Migalhas de Peso

O processo administrativo sancionador e as garantias constitucionais

Reserva-se ao processo penal – e não ao processo administrativo – o iter procedimental que poderá resultar na detenção ou reclusão da pessoa natural, importando, tal apenamento, na sanção mais severa que o direito possa endereçar a uma pessoa natural.

21/10/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

1. Introdução

A intensificação da interferência do Estado na vida cotidiana dos indivíduos é um fato incontestável. Se examinarmos o nosso dia a dia veremos que, grande parte das nossas condutas, resultam da obediência, em concreto, de determinações estatais, seja as provenientes dos legisladores, do governo, da administração pública ou das cortes de justiça.

O Estado brasileiro, nos tempos atuais, deixa pouca margem de domínios para exclusivamente serem manejados pelos indivíduos, de acordo com o seu querer. Com a pressuposição de que a sua atuação se volte para atender ao que – segundo ele - melhor consulte aos interesses da coletividade, prescreve condutas por vezes até excessivamente detalhistas, com isso cerceando a criatividade humana e tornando certos segmentos uma massa homogênea pasteurizada.

Pois bem, o foco das presentes considerações diz respeito às determinações provenientes da Administração Pública, que surpreendem certas condutas consideradas inadequadas, graves ou infringentes à respectiva ordem jurídica, suscitando a instalação de um processo administrativo da espécie sancionadora, ou seja, voltado para apenar o administrado, impondo-lhe, se caso for, sanções severas que afetem seu patrimônio ou, em determinadas circunstâncias, até uma porção da sua própria liberdade.

2. O Processo Administrativo Sancionador

Conforme já pudemos examinar noutra oportunidade1 vemos o processo administrativo como a “denominação que se atribui a atos e fatos jurídicos que, devidamente articulados, dentro de um determinado domínio, numa relação de coordenação sucessiva entre si e em estrito cumprimento à lei, geram, ao final, ato administrativo expedido pela Administração Pública, que altera a ordem jurídica até então vigente, criando, modificando ou extinguindo direitos tanto da própria Administração Pública quanto dos administrados, estando ambos em posição de convergência ou divergência”.

Já por processo administrativo sancionador o vislumbramos como uma espécie de processo administrativo marcado pela divergência e enfrentamento de seus coparticipes, no qual a Administração Pública procura escrutinar e identificar uma prática considerada infringente a determinados valores protegidos pela ordem jurídica - com ênfase no interesse público -, por parte do administrado, na esfera de sua competência, assim a declarando ao final de um iter, apenando-o com uma sanção previamente estabelecida nos normativos correspondentes, importando restrição ou sacrifício do direito de propriedade ou da liberdade, isso tudo, claro, desde que reste comprovada a prática lesiva em afronta ao bem tutelado pela ordem jurídica.

Aqui, diferentemente de grande parte das demais espécies de processos administrativos, não se criam e nem se ampliam direitos dos administrados, mas, predominantemente, seus direitos são restringidos ou até mesmo suprimidos, afetando, desfavoravelmente, tanto a esfera patrimonial, quanto, se caso for, a subjetiva envolvendo a liberdade do administrado.

É o que se passa, v. g., com processos responsabilizatórios e apenadores deflagrados pela Comissão de Valores Mobiliários - CVM, pelo Banco Central do Brasil - BACEN, pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE, pelas Controladorias no tocante à lei Anticorrupção etc., os quais procuram, nos domínios autárquicos ou da própria administração pública direta, de um lado, resguardar o bem jurídico sob sua competência, como, de outro, responsabilizar e apenar, muita das vezes, com extrema severidade, aqueles que tenham adotado uma conduta lesiva.

2.1. Os valores protegidos e a lesividade

Toda conduta passível de apenamento assim o é porque há um valor que a ordem jurídica deseja protegê-lo, em benefício da própria sociedade ou de um segmento dela, às últimas, em benefício de cada um dos indivíduos e das relações intersubjetivas das quais toma parte.

Pode referir-se à saúde, educação, alimentação, cultura, assistência social, sistema financeiro, mercado de capitais, ordem econômica, enfim, a diversas atividades e microsistemas que se mostrem significativos e relevantes para a sociedade, num certo átimo da sua longa jornada histórica, segundo assim reconhece e privilegia o ordenamento jurídico então vigente.

Pois bem, a Administração Pública, no ponto, volta-se para justamente proteger esse conjunto de valores relevantes, que consultam ao interesse público, conforme alojados na ordem jurídica vigente, para tanto dispondo-se a enfrentar e, se caso for, apenar, aquele que, efetivamente, tenha causado a respectiva lesão. Reverencia, à evidência, o interesse público, expressão multifacetária, que representa bem valioso em favor da coletividade ou de parte dela.

A lesividade da conduta do infrator em afronta ao interesse público, como se observa, é o motivo justificador da ação da Administração Pública ao instalar um processo administrativo sancionador. Havendo provas ou indícios efetivos de que o administrado tentou, está prestes ou já ocasionou danos aos valores resguardados pelo interesse coletivo, impõem-se o agir da Administração Pública tendente a apurar, e se caso for, responsabilizar e, consequentemente, apenar, aquele que tenha se insurgido contra o interesse coletivo.

2.2. Sanção: direitos restringidos ou suprimidos em relação à propriedade ou à liberdade

Conforme já aduzimos, há, no Brasil, diversas espécies de processos administrativos. Sem ter o objetivo de assinalar uma relação exauriente, há processos administrativos disciplinadores, rescisórios, competitivos, constitutivos, declaratórios, de outorga, de invalidação, de reparação de danos etc.

Invariavelmente, mas dependendo do objeto de cada um deles, observa-se que criam, modificam ou extinguem direitos, tanto da Administração Pública, quanto do administrado, nesta última categoria incluindo-se o próprio agente público aderente a um sistema jurídico estatutário previamente já estabelecido.

O processo administrativo sancionador possui a característica marcante de ter por objeto a possibilidade de ser aplicado apenamento ao administrado, não obstante possa, evidentemente, decidir pela inexistência de qualquer infringência jurídica por parte do administrado. Sendo assim, impõe, ao seu termo (repita-se, evidentemente, desde que a tanto comprovada a ilicitude), a possibilidade de condenação que possa impactar a propriedade ou a liberdade do administrado.

Seu efeito marcante, portanto, é impor, se caso for, um sacrifício patrimonial que até então dispunha ou disporia o administrado, predominantemente por meio da imposição de multa, não obstante possa, indiretamente, igualmente atingi-lo, através de restrições que, em caráter personalíssimo, o impeçam de formalizar contratações materiais com finalidades benéficas, caso de acesso a linhas de créditos diferenciadas de instituições financeiras estatais, inserção na condição de impedidos de licitar ou contratar, com isso diminuindo, por vezes, significativamente, o faturamento da empresa, reflexamente impactando o seu patrimônio etc.

Além disso, o processo administrativo sancionador também traz o efeito de, por vezes, restringir a liberdade do administrado, seja pessoa física ou jurídica. Claro, não no sentido pleno da limitação, como o que envolve a aplicação das penas de detenção ou reclusão, sanção que, como se sabe, é disciplinada pelo direito penal; diferentemente, aqui, nos domínios administrativos, essa restrição importa em determinados gravames que afetam, desfavoravelmente, tanto o individuo, quanto a pessoa jurídica.

É o que se passa ao impedir que uma pessoa física possa ocupar cargos de administrador numa companhia de capital aberto, ou de vedar o funcionamento de uma pessoa jurídica em função do desatendimento de um comando normativo de natureza administrativa, com isso restringindo uma parte do que se denomina iniciativa privada, na qual se aloja a liberdade de empreender. 

Assim, embora apresente traços comuns com algumas das espécies de processo administrativo já indicados (caso, v. g., do processo administrativo disciplinador), afasta-se doutros tantos, a partir desses efeitos que lhe são próprios, distanciando-se, intensamente, daqueles em que predomina a finalidade constitutiva ou criadora de direitos  aos administrados (pedido de alvará, recebimento de comenda, contratação de obra pública mediante a realização de certame licitatório, concurso para a contratação de agente público etc.). 

Esses fins, que lhe são ínsitos, segundo o direito constitucional contemporâneo e em conformidade com os valores inafastáveis de um estado democrático e social de direito, passam a exigir, no processo administrativo sancionador, a aplicação de diversas garantias do direito contemporâneo, sobretudo de prestigio constitucional, de sorte a evitar que a Administração Pública incorra em arbítrio para simplesmente apenar – e não efetivamente apreciar, julgar e somente sancionar, se for o caso – a conduta lesiva adotada pelo administrado.

2.3. Garantias e direitos

Como se sabe, a partir da Constituição Federal de 1988 atribuiu-se indiscutível importância ao processo administrativo, como meio formulador e solucionador das relações jurídicas que se estabelecem entre a Administração Pública e o administrado, nesse particular desonerando, grandemente, o já sobrecarregado enfrentamento judicial. Passou-se a, mais e mais, fazer-se justiça nos domínios administrativos, prescindindo-se do ingresso de medidas judiciais para tanto.

Tal orientação constitucional inseriu-se no contexto ocupado por diversos países europeus, no ponto, com ênfase no que se refere ao sistema administrativo punitivo e, no que mais aflora concretamente, ao processo administrativo sancionador. “Na generalidade dos países europeus, e no Brasil sem dúvida, o fenômeno da proliferação da legislação penal incriminadora produziu a hipertrofia desse ramo do Direito, levando à desvalorização da eficácia das normas penais e da função preventiva. Diante dessa constatação, ganha força o movimento descriminalizador, que prega a passagem para o âmbito da Administração a apreciação de condutas ilícitas menores, através da criação de um sistema punitivo conciliador dos princípios da eficácia e de respeito às garantias individuais, ficando ao Poder Judiciário a punição de ilícitos de maior reprovação, sem perder de vista a necessidade, hoje concreta, da elevação de outros bens jurídicos à condição de bem jurídico penalmente protegido, em áreas como o meio ambiente e a economia”.2

Considerando-se que essa espécie de processo administrativo poderá gravemente atingir a propriedade e a liberdade do administrado, neste proceder deverá lhe ser assegurado o exercício de todas as garantias e direitos de defesa constantes da Constituição Federal, assim como aqueles preconizados pela doutrina e pela jurisprudência.

Nesse particular, há o entendimento atualmente predominante, desenvolvido a partir da concepção germânica de 19493 e conforme nos permite exemplificar o Tribunal Constitucional de Espanha, de que determinados princípios e garantias penais se estendem também ao direito sancionatório, tendo em vista que ambos são a manifestação do direito punitivo do Estado, não só quando houver especial sujeição (caso, v.g., do processo disciplinar), como também onde essa relação possuir natureza geral.4

A proximidade da esfera de atuação do que se convenciona designar direito penal, quanto do direito administrativo sancionador, representativos do aspecto punitivo estatal, gravita em torno da proteção, publicista, de bens relevantes ao homem: aquele (penal) atinente aos seus valores fundamentais, sobretudo, por evidente, à vida; este (administrativo), referente ao resguardo do interesse público, que se direciona à parte ou à toda a coletividade; ambos, entretanto, apresentando pontos comuns de aplicabilidade reciproca, consubstanciando um núcleo comum normativo.5

Tais garantias e princípios, é natural, poderão ter nuances específicas a partir do ordenamento jurídico do país envolvido. Há, contudo, um núcleo duro normativo que frequenta a ordem dos países ocidentais juridicamente mais desenvolvidos (caso do Brasil), de obsequioso respeito e, mesmo, de imposição de obediência à legalidade, à tipicidade, à presunção de inocência, à retroação benéfica etc., alguns dos valores caros que se hospedam na ordem constitucional brasileira.

2.4. Aspectos distintivos entre sanções administrativas e penais

Observa-se que o processo administrativo diferencia-se do processo penal (que, como se sabe, em situações extremas, restringe, também, a liberdade daquele que tenha praticado o delito), pois não tem curso no Poder Judiciário, instalando-se, desenvolvendo e encerrando-se nos domínios administrativos.

Consequentemente, ambos os segmentos do direito obedecem a disposições instrumentais processuais bem distintas: na penal, predominantemente, codificada; na administrativa, alojada em legislação esparsa. Na processual penal há, indiscutivelmente, pleno atendimento ao devido processo legal e a todas as garantias, prerrogativas e princípios assecuratórios do direito de defesa do acusado, enquanto na esfera administrativa observa-se ainda um vagaroso caminhar nesse sentido (sobretudo, a partir da Constituição Federal de 1988), contudo, ainda não plenamente atingido nos dias de hoje. 

Prossegue a distinção observando-se que as decisões tomadas são proferidas por autoridades administrativas a tanto competentes, segundo critérios bastante diferentes entre as adotadas pelas diversas entidades administrativas (bastando cotejar as condições exigíveis de autoridades responsáveis por processos administrativos contra a corrupção, contra a ordem econômica, contra o mercado aberto, contra o sistema financeiro etc.), absolutamente distintas da esfera penal, cujos decisórios provem de magistrados, que se submetem ao atendimento de exigências, acesso, desempenho, prerrogativas e garantias bastante específicas e diferenciadas daquelas observáveis nos quadros da Administração Pública.

Além disso, o importante aspecto de considerar-se o que se insira na condição de processos administrativos sancionadores e não nos domínios penais, resulta de uma opção legislativa (diferida no tempo e não resultante da edição de um código num determinado átimo), no sentido de vislumbrar infrações que deverão ser censuradas e apenadas no âmbito administrativo (e não de considera-las como delitos passíveis de sanções penais), vontade essa que muito dificulta a distinção, a cargo dos doutrinadores e estudiosos do direito, entre esses dois segmentos jurídicos, haja vista que as opções do legislador não obedecem a sistematizações jurídicas, mas, sim, a decisões políticas e, por vezes, com ênfase tecnocrática, tomadas para atender a demandas concretamente ocupadoras de preocupações das casas legislativas num preciso instante da história do país. 

Reserva-se ao processo penal – e não ao processo administrativo – o iter procedimental que poderá resultar na detenção ou reclusão da pessoa natural, importando, tal apenamento, na sanção mais severa que o direito possa endereçar a uma pessoa natural: a limitação efetiva, e não meramente retórica, da restrição ao direito da liberdade. No limite – que não é o caso brasileiro – poderá remeter o acusado à morte, caso de alguns estados norte-americanos.

Assim, havendo, como há, nessa espécie de processo administrativo, restrições ou supressões de direitos, acompanhados de prescrições punitivas por parte do Estado, no portal da Administração Pública, é da natureza do direito contemporâneo que tal se dê somente nas hipóteses em que o administrado tenha assegurado e livremente disposto, de acordo com os preceitos e garantias constitucionais, de todas as possibilidades de, se for o caso, evadir-se dessa responsabilização e consequente apenamento.

________

1 Marcio Pestana, Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo : Ed. Atlas, 4ª. ed., p. 280.

2 De Agostini, Alexandra Comar et Hossepian Jr., Arnaldo. A Invasão Incondicional da Lei Penal e o Direito Administrativo Sancionador como mecanismo de legitimação e controle do poder punitivo do Estado. In Direito Administrativo Sancionador, Coordenadores Blazeck, Luiz Mauricio Souza et Marzagão Júnior, Laerte I.. São Paulo : Ed. Quartier Latin, 2015, p. 28.

3 “Com o fim da Segunda Guerra Mundial, foram promulgadas a Lei Penal da Economia, de 1949, e a Lei de das Contraordenações, em 1952, que decorreram das recomendações de Eberhard Schmidt, que falou da criação da Contraordenação, categoria que objetivasse a satisfação de três ordens diferentes de necessidade: ‘a de que se retirasse dos quadros do Direito Penal um larguíssimo número de infrações de nula ou duvidosa relevância ético-social remetendo-as para os quadros do direito administrativo; a de que essas infrações não fossem ameaçadas com penas criminais, mas com meras advertências sociais, sanções ordenativas ou coimas (Bussen em alemão), em que se ganhasse preponderância o caráter dissuasor próprio das sanções unicamente pecuniárias; e a que se revestisse o processamento destas infrações de especificidade que permitissem a aplicação das sanções pelos agentes administrativos encarregados da fiscalização e controle das respectivas atividades”. Direito Administrativo Sancionador ou Direito Penal Administrativo? Marco Antonio Marques da Silva. In Direito Administrativo Sancionador, Coordenadores Blazeck, Luiz Mauricio Souza et Marzagão Júnior, Laerte I.. São Paulo : Ed. Quartier Latin, 2015, p. 238-239.

4 Cf. Enterria, Eduardo Garcia et Fernandez, Tomás-Ramón. Direito Administrativo, p. 192-193.

5 “É forçoso concluir que o regime jurídico aplicável tanto ao direito penal quanto ao direito administrativo precisa apresentar um núcleo comum. Entendo que esse núcleo comum não decorre de um suposto jus puniendi único, que abrangeria o direito penal e o direito administrativo sancionador, mas sim do simples fato de os dois setores trabalharem com a aplicação de sanções aos particulares, atividade que, pela sua natureza, exige legitimação, limitação, garantias e procedimentos próprios. Nessa linha, pode-se identificar na própria Constituição normas jurídicas aplicáveis aos dois campos, que podem receber concretizações distintas, mas, repita-se, apresentam um núcleo comum”. Helena Regina Lobo da Costa. Direito Administrativo Sancionador e Direito Penal: a necessidade de desenvolvimento de uma política sancionadora integrada. In Direito Administrativo Sancionador, Coordenadores Blazek, Luiz Mauricio Souza et Marzagão Júnior, Laerte I.. São Paulo : Ed. Quartier Latin, 2015, p. 112.

Marcio Pestana
Advogado e titular do escritório Pestana e Villasbôas Arruda – Advogados.

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