Migalhas de Peso

O trabalho “social” do Administrador judicial e a inconstitucionalidade da alteração da ordem de pagamento provocada pela lei 14.112/20

Há que se remunerar aquele que presta serviço para que outro receba.

18/10/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Aparentemente existe uma profissão no Brasil cuja remuneração não se caracteriza como verba alimentar e nem mesmo, quiçá, seja considerado um trabalho: a do Administrador Judicial e do antigo Síndico.

A lei 14.112/20 promoveu várias alterações na lei 11.101/05. Uma das mais profundas foi aquela operada no artigo 84 e seus incisos, porque trata dos créditos extraconcursais na falência e sua ordem de pagamento.

Pela redação antiga, a primeira obrigação extraconcursal a ser adimplida na falência seriam os honorários do Administrador Judicial, ou seja, da pessoa (física ou jurídica) responsável por organizar o ativo e passivo, representar a massa falida e conduzir o feito ao seu objetivo principal, que é a venda do ativo para pagamento do passivo, na extensão do que for arrecadado.

A alteração arrastou a remuneração do Administrador Judicial da primeira posição para a quarta, pois o inciso I foi desdobrado em outros cinco, I-A ao I-E, sendo que a remuneração do auxiliar ficou relegada ao inciso I-D, sendo preferenciais a ele as despesas antecipadas pelo próprio administrador judicial (reembolso) – art. 150, créditos salariais vencidos nos últimos 03 (três) meses antes da decretação da quebra – art. 151,  o crédito do DIP1 eventualmente concedido durante a recuperação judicial – I-B – e os créditos das restituições que eventualmente tenham que ser realizadas em dinheiro – I-C.

Em relação aos dois primeiros, a alteração parece razoável, uma vez que poderá o Administrador Judicial reaver os valores que eventualmente adiantou em favor da massa, o que faz parte do dia a dia de quem se aventura em tal profissão. Do mesmo modo, as verbas salariais, posto que tal e qual o Administrador Judicial, quem laborou em favor da agora falida igualmente tem direito de receber sua devida remuneração, de caráter eminentemente alimentar.

Em relação aos demais, entretanto, se observa flagrante inconstitucionalidade na preferência. Explica-se:

Para realizar o pagamento dos credores agora preferenciais, é necessário trabalho, empenho, dedicação. De quem? Do Administrador Judicial.

O Administrador Judicial é entidade inerente ao processo falimentar, condição sine qua non de seu andamento. Todos os atos voltados ao pagamento dos credores são iniciados somente após a assinatura do termo de compromisso, que é o primeiro ato de labor do profissional. Não há falência que prossiga sem a necessária presença e participação do Administrador Judicial.

Eventualmente, em uma falência com poucos ativos, o resultado da alienação sequer é suficiente para realizar o pagamento dos créditos extraconcursais. Neste ponto, ao menos, era garantida a remuneração daquele que fez este pagamento acontecer, por mínima que seja.

Com a alteração na ordem, o legislador passou ao largo de inúmeros dispositivos constitucionais que alçam o trabalho à fundamento da República Federativa do Brasil, conforme expresso no artigo 1º, inciso IV e caput do art. 6º, ambos da Constituição Federal.

Imaginemos a falência de uma grande transportadora. Uma frota de 200 (duzentos) caminhões, todos alienados fiduciariamente, algo comum neste ramo de atividade. Sede alugada. 300 (trezentos) funcionários.

A instituição financeira que financiou os caminhões tem o direito de receber todo seu crédito. O Administrador Judicial é obrigado a reunir os veículos, armazená-los adequadamente, investir em segurança, encontrar o proprietário fiduciário e realizar a entrega. Além disso, deve realizar todas as rescisões, defesas em eventuais ações trabalhistas, além de dar andamento no feito falimentar, organizando a lista de credores. 

Entregue todos os veículos, não sobram mais ativos. Como será remunerado o Administrador Judicial?

Não será.

No meio falimentar existe um mito de que o Administrador Judicial, como auxiliar do juízo, trabalha em falências sem patrimônio para, em recompensa, ser nomeado em casos com patrimônio, seja falência ou recuperação judicial. Na expressão popular, “roe-se o osso para comer a carne”.

Em verdade, este tipo de entendimento é referendado explicitamente por alguns atores de processos falimentares. Para estes operadores do direito, quem se propõe a exercer a função de administrador judicial deve se fiar no interesse maior, de auxiliar a justiça, mesmo que sem receber por isso.

Felizmente existe corrente jurisprudencial forte no sentido de que, constatando o Administrador Judicial não haver ativos suficientes para a própria administração da massa falida, pode propor ao juízo que determine aos credores que prestem caução de honorários mínimos ao Administrador Judicial2.

Daniel Cárnio Costa e Alexandre Nasser de Melo3 bem orientam sobre o tema: 

“Se for verificado, no caso concreto, que a massa falida sequer terá ativos suficientes para remunerar o administrador judicial, os credores podem providenciar recursos para, ao menos, cobrir as diligências referentes à busca de bens do falido. Se bens suficientes forem localizados, os credores serão reembolsados (como crédito extraconcursal). De outra sorte, se nada for localizado, o administrador judicial receberá o valor caucionado a título de reembolso de despesas”. 

Do mesmo modo, o Mestre Manoel Justino Bandeira4: 

“Está em formação forte corrente jurisprudencial no sentido de que, se houver risco ou mera indicação de que a massa falida não terá meios suficientes para pagar a remuneração do administrador judicial, deve o requerimento da falência adiantar os valores necessários a tanto, podendo   ressarcir-se   futuramente,  se   possível, na forma   do   art.   84, II. Alternativamente, o próprio requerente poderá assumir o encargo de administrador, evidentemente se o juiz da falência entender que pode o juiz julgar extinto o processo falimentar. Nesse sentido, confira-se a Apelação 0034551-17.2011.8.26.0100, rel. Fábio Tabosa, j. 27.04.2016, TJSP, com farta indicação jurisprudencial. No REsp 1.526.790-SP, Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 10.03.2016, o STJ firmou o entendimento de que o requerente da falência deve caucionar o valor necessário para o pagamento da remuneração do administrador, valor que será devolvido na forma do inc. II do art., 84, se houver arrecadação suficiente. Este entendimento está correto pois, efetivamente, não  haveria  como  pretender-se  que  o  árduo  trabalho  exigido  do  administrador judicial fosse prestado sem garantia de remuneração, relembrando-se ainda que no regime da lei atual não existe mais a figura do “síndico dativo”, que no regime da lei anterior,  era  nomeado  livremente  pelo  juiz,  normalmente  entre  advogados  que  se dispunham a prestar tal colaboração, mesmo sem garantia de recebimento, por ausência de produto da massa falida. Enfim, é intuito que não se pode determinar a alguém que exerça um trabalho, sem que se lhe preste a correspondente remuneração”. 

Corroborando com a tese a, destacar o entendimento doutrinário de JOÃO PEDRO SCALZILLI, LUIS FELIPE SPINELLI e RODRIGO TELLECHEA5: 

“Em situações excepcionais, quando a arrecadação de bens é manifestamente insuficiente para cobrir as despesas mínimas decorrentes da administração da falência, tem-se admitido impor   ao credor o ônus   de providenciar a caução  da remuneração do administrador judicial e demais despesas do processo.  Trata-se de ônus do credor que requereu a quebra e de qualquer outro que tenha interesse no prosseguimento da execução coletiva, como dispõe o art. 82 do CPC. Isso porque a parte litigante deve agir com responsabilidade, arcando com as despesas dos atos necessários, e por ela requeridos, por reaver seu crédito. Segundo a jurisprudência do STJ, “o administrador judicial, principal auxiliar do juiz na  condução  do  processo  falimentar,  é  de  suma importância, não se podendo falar em seu exercício de forma gratuita”. 

Afinal, ninguém é obrigado a trabalhar de graça, por amor à justiça. É trabalho relevante tal e qual aquele exercido pelos membros do Ministério Público, do Poder Judiciário e da Advocacia, sem os quais os feitos falimentares não se desenvolvem.

Dentro deste entendimento agiu o juiz Paulo Furtado De Oliveira Filho, da 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo, Capital, que fixou remuneração a administrador judicial em preferência aos credores que pela lei receberiam antes. Para o magistrado, os credores que preferem ao administrador judicial na ordem legal só recebem em razão de seu trabalho. Assim, não há como não o remunerar, ainda que minimamente[6].

Com efeito, o reconhecimento da inconstitucionalidade da alteração da ordem de preferência conforme nova redação do inciso I do artigo 84 da lei 11.101/05 se impõe, devendo ser considerado que a remuneração do administrador judicial deve ser precedente a todo e qualquer pagamento de credores que não tenham desempenhado função laborativa em favor da falida e da massa falida.

________________

1 Debtor-In-Possession

2 TJ/PR 18ª C.Cível -0010447-02.2018.8.16.0000

3 COSTA, Daniel Cárnio; MELLO, Alexandre Nasser de. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. Curitiba, Juruá, 2021, Pg 115

4 Filho, Manoel Justino Bezerra (Coord). Lei de Recuperação de Empresas e Falências, 12ª ed., p. 128.

5 Scalzilli, João Pedro (Coord). RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS E FALÊNCIA, 2ª. Ed., Editora Almedina, 2017, p. 210.

6 https://www.migalhas.com.br/quentes/350762/juiz-fixa-remuneracao-do-administrador-judicial-como-indispensavel

Luiz Eduardo Vacção
Advogado e Administrador Judicial no Paraná. Sócio do escritório Vacção Carvalho Duck Advocacia e Vacção Carvalho Duck Administração.

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