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LGPD e métodos autocompositivos: um ensaio na perspectiva dos agentes de tratamento

Trata-se de ensaio que busca explorar a relação entre o direito da proteção de dados e os métodos autocompositivos de resolução de conflitos, na perspectiva dos agentes de tratamento.

11/10/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

É cediço que a temática da proteção de dados pessoais está em voga no país, notadamente após o advento da lei 13.709/18 – popularmente conhecida como lei Geral de Proteção de Dados (“LGPD”). Ao estabelecer direitos - para os titulares1- e deveres e obrigações - para os agentes de tratamento-, a LGPD busca proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade, assim como garantir o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural.

Como o próprio nome denuncia, a LGPD tutela apenas “dados pessoais”, entendidos como uma informação relacionada a uma pessoa natural, identificada ou identificável - vide art. 5º, I, da LGPD -, e se aplica, como regra, salvo exceções previstas no art. 4º, da LGPD, a qualquer operação de tratamento realizada por pessoa natural ou jurídica, de direito público ou privado, independentemente do meio (físico ou digital) ou país (nacional ou estrangeiro).

Em razão das contundentes mudanças provocadas nas rotinas empresariais, desde que entrou em vigor, em setembro de 2020, a LGPD vem provocando um significativo alvoroço nas empresas, que precisaram investir na adequação de estruturas e processos internos à correta tutela dos seus novos deveres, enquanto agentes de tratamento, assim como para o escorreito atendimento aos direitos a que fazem jus os titulares de dados, sejam eles clientes ou colaboradores, internos ou externos à empresa.

Como era esperado, acompanhando esse furor de adequações à LGPD, recentemente, tornou-se visível (em números) a gênese de uma onda de litigiosidade, calcadas neste novíssimo marco legal. Atualmente, de acordo com dados da ANPPD – Associação Nacional dos Profissionais de Privacidade e Proteção de Dados3 – estima-se terem sido ajuizadas mais de 600 (seiscentas) ações judiciais envolvendo a matéria da proteção de dados, discutindo-se os mais diversos assuntos correlatos: tratamento ilícito de dados, vazamento de dados, comercialização ilícita de dados, negativa de atendimento a direitos etc.

Considerando esse contexto, o presente ensaio, erigido com método dialógico e técnica de revisão bibliográfica e legislativa, buscará explorar a relação possível entre o direito da proteção de dados, a partir do marco legal da LGPD, e os métodos autocompositivos de resolução de conflitos, que vêm recebendo importantes estímulos para sua utilização, como tentativa de diminuir o número de litígios levados ao Poder Judiciário. O objetivo é examinar, individualmente, os métodos possíveis de resolução de conflitos, e instrumentalizá-los na perspectiva dos agentes de tratamento, e o seu relacionamento com os titulares e outros agentes de tratamento.

2. Métodos Autocompositivos para Resolução de Conflitos

Diferentemente da via judicial e da arbitragem, que são métodos heterocompositivos e adjudicatórios, nos quais a solução do litígio é imposta por um terceiro imparcial, na negociação, mediação e conciliação as próprias partes são protagonistas na solução de seus conflitos, e, por isso, são chamados de métodos autocompositivos.

Negociação, mediação e conciliação têm em comum a busca pelo consenso e o fato de serem pautadas pela autonomia da vontade das partes, que livremente escolhem resolver seus litígios por um desses métodos autocompositivos, optando por continuar a utilizá-los, decidindo quais matérias serão abordadas no procedimento e qual será o teor de um eventual acordo que se atinja por meio da utilização de um desses métodos.

Outros pontos em comum são a informalidade no procedimento de negociação, mediação ou conciliação, o que não significa que esses métodos não tenham etapas a serem seguidas45, mas, sim, que essas etapas são flexíveis e adaptáveis conforme o caso concreto (complexidade do conflito, número de partes envolvidas, tempo disponível para a solução dos litígios, entre outras características).

Enquanto na negociação a solução é construída diretamente entre as partes, na mediação e na conciliação a negociação é assistida por um terceiro imparcial.

Outra característica positiva na utilização desses métodos é a confidencialidade. Embora na negociação a confidencialidade não decorra de lei, por ser um método no qual as partes resolvem seus conflitos diretamente, sem interferência de um terceiro imparcial, a manutenção do sigilo entre as partes é o mais provável de ser acordado, pois muitas vezes os conflitos envolvem dados e informações das pessoas envolvidas, inclusive de natureza sensível, ou, ainda, segredos de negócios.

Na mediação e conciliação a confidencialidade decorre de lei. No art. 166, caput e parágrafos, do CPC, é previsto que a mediação e a conciliação são informadas, dentre outros, pelo princípio da confidencialidade. A mediação possui lei própria, lei 13.140/2015, que dispõe que um dos princípios da mediação é a confidencialidade (art. 2º, VII).

A confidencialidade permite que as partes tenham mais segurança em trazer fatos e dados para a “mesa de mediação”, já que tanto as informações e documentos que são trazidos no procedimento devem permanecer confidenciais, não podendo ser utilizados como “provas” em processos judiciais ou arbitrais, quanto as pessoas envolvidas (mediador, partes, advogados, assistentes técnicos, prepostos) têm o dever de sigilo, não podendo atuar como testemunhas em processos judiciais ou arbitrais. Excetua-se à regra de confidencialidade apenas a informação relativa à ocorrência de crime de ação pública, o dever legal de publicidade decorrente da matéria ou do sujeito envolvido na mediação e acordo entre as partes estipulando a dar publicidade a fatos e provas, total ou parcialmente.

A diferença entre a mediação e a conciliação é definida pela lei6 da seguinte forma: enquanto a conciliação é utilizada para casos que não envolvem vínculo anterior entre as partes, podendo o conciliador sugerir soluções para o litígio, a mediação é utilizada para casos nos quais as partes tenham vínculo anterior, adotando o mediador postura de auxílio às partes na compreensão do conflito, no restabelecimento da comunicação e na criação de soluções consensuais do tipo ganha-ganha.

Nada obstante essa definição legal, que aproxima a conciliação da escola avaliativa e a mediação da escola facilitativa, entende-se que, a depender do litígio, a utilização dos dois métodos na solução do mesmo litígio pode ser positiva e até essencial.

Nos três métodos as partes podem estar, ou não, assistidas por advogados. No entanto, para conflitos complexos que envolvem relacionamento a longo prazo, recomenda-se que as partes sejam assessoradas por um advogado e que seja utilizada a negociação de forma sistemática7.

3. Resolução de Conflitos e a LGPD

De maneira geral, a questão da resolução de conflitos, na LGPD, está calcada na perspectiva dos tradicionais métodos heterocompositivos, notadamente ações judiciais. A esse respeito, vale referência aos artigos 42 e seguintes, da LGPD, que estipulam as regras sobre responsabilidade e ressarcimento de danos, prevendo-se, por exemplo: (i) a responsabilidade dos agentes de tratamento por danos patrimoniais e/ou morais, individuais e/ou coletivos, inclusive de forma solidária, em certos casos, com direito de regresso aos demais responsáveis; (ii) a inversão do ônus da prova, a favor do titular, quando atendidos requisitos de hipossuficiência para produção da prova; e a (iii) possibilidade de acionamento dos agentes de tratamento, pelo titular, de forma individual e/ou coletiva, inclusive perante os juizados especiais.

Ou seja, a LGPD construiu sua normatividade, no que atine à resolução de conflitos, na perspectiva dos métodos heterocompositivos. Com efeito, em apenas um artigo, que aborda as sanções administrativas, a LGPD estabelece solução diversa. Trata-se do §7º do art. 52, que dispõe que “os vazamentos individuais ou os acessos não autorizados de que trata o caput do art. 46 desta Lei poderão ser objeto de conciliação direta entre controlador e titular e, caso não haja acordo, o controlador estará sujeito à aplicação das penalidades de que trata este artigo”.

Isto é, mesmo que de forma tímida, a LGPD estimula que os incidentes de segurança sejam objeto de conciliação direta entre o controlador e o titular. Mesmo que carente de regulação específica, interpretando-se literalmente o mencionado artigo, é possível deduzir que, uma vez entabulado acordo, não serão aplicadas as sanções administrativas, em vigor desde agosto de 2021.

Transportando idêntica lógica à polêmica questão do atendimento aos direitos do titular, é também salutar que os agentes de tratamento invistam nos seus canais de privacidade, visando a conferir adequada vazão aos pleitos que lhes serão submetidos, dissuadindo os titulares, portanto, de acionar seus direitos de titular pelos tradicionais meios de resolução de conflitos. No entanto, mesmo que não seja logrado êxito neste atendimento espontâneo, via canal do titular, verifica-se que a utilização da conciliação pode ser muito benéfica, especialmente porque representa método que visa a dar celeridade à resolução do conflito, via entabulação de acordo que satisfaça ambas as partes.

Indo além, também o relacionamento dos agentes de tratamento, entre si, pode gerar conflitos, inclusive capazes de inviabilizar a continuidade de negócios, apresentando-se a negociação e a mediação como instrumentos benéficos para solução desses conflitos, já que possibilitam que as partes entendam os interesses que estão em jogo, de modo a permitir que o relacionamento entre os agentes perdure. A mediação, por ter como característica a confidencialidade, inclusive decorrente de lei, pode proteger elementos sensíveis que estejam em jogo, como imagem das empresas ou segredo de negócios.

Exemplo de conflito envolvendo os agentes são as incansáveis tratativas de cláusulas contratuais em negócios diversos, que visam à distribuição de deveres e obrigações entre os agentes de tratamento, além da alocação de responsabilidades. É provável que Autoridade Nacional de Proteção de Dados crie exceções à aplicação da LGPD para pequenos negócios. Na atualidade, conquanto, as mesmas regras exigidas para as grandes companhias são aquelas exigidas para os pequenos negócios. Obviamente, uma pequena indústria e/ou comércio não disporá, jamais, da mesma maturidade institucional em proteção de dados que uma grande companhia, notadamente aquelas pertencentes a setores regulados, como é o caso dos setores bancários e da saúde. Neste exemplo, é provável que a continuidade de negócios estabelecidos entre empresas de diferentes portes seja colocada à prova com o advento da LGPD.

Os exemplos de conflitos entre agentes de tratamento são os mais diversos, e poderiam perpassar pelo atendimento a direitos dos titulares, e uma hipótese de controladores conjuntos, ou, ainda, de ações para resposta a incidentes com vazamento de dados pessoais, com consequências danosas, ou não. Em quaisquer destes cenários, é possível que a conciliação e a mediação sejam ferramentas estratégicas para o fomento e a manutenção de negócios, estimulando-se a resolução do conflito pela via consensual, o que acarretará probabilidade de melhor entendimento dos pontos conflituosos pelas partes, e a consequente implementação de ajustes pontuais que atendam às necessidades recíprocas.

4. Conclusão

Neste breve ensaio, buscou-se trazer luz ao necessário incentivo à utilização de métodos autocompositivos na resolução de conflitos envolvendo a matéria da proteção de dados. Consoante examinado, muito embora a LGPD estimule a utilização dos tradicionais métodos heterocompositivos, notadamente ações judiciais, a negociação, a mediação e a conciliação podem representar fortes aliados para os agentes de tratamento no enfrentamento de lides envolvendo os titulares, ou, ainda, outros agentes de tratamento. As vantagens estão calcadas no rápido tratamento dos litígios, e no possível incentivo à continuidade dos negócios, sem litigiosidade, polarização e animosidade.

________

De acordo com a LGPD: “pessoa natural a quem se referem os dados pessoais que são objeto de tratamento” (Art. 5, V, LGPD).

De acordo com a LGPD: “o controlador e o operador” (Art. 5, IX, LGPD).

ANPPD. Violações. Disponível aqui. Acesso em 20 Set. 2021, 16:46.

4 Utilizando-se dos ensinamentos de Adolfo Braga Neto: “Em relação à conciliação, esta possui quatro etapas, quais sejam: 1) abertura; 2) esclarecimento das partes sobre suas ações; 3) criação de opções e sugestões; 4) acordo. Em contrapartida, a mediação consiste em sete etapas: 1) pré-mediação; 2) investigação; 3) criação de opções; 4) escolha das opções; 5) avaliação das opções; 6) preparação para o acordo; e 7) acordo e assinatura”. (BRAGA NETO, Adolfo. Alguns aspectos relevantes sobre a mediação de conflitos In: Grinover, Ada Pellegrini (coord.). Mediação e Gerenciamento do Processo: Revolução Na Prestação Jurisdicional: Guia Prático para a Instalação do Setor de Conciliação e Mediação, São Paulo: Atlas, 2008. p. 64-65).

5 Para criar e distribuir valor, a negociação é normalmente dividida da seguinte maneira: 1) preparação; 2) condução da negociação; 3) resultado; e 4) implementação e avaliação do processo. (MOURÃO, Alessandra Nascimento S. F. (coord.) Resolução de Conflitos: Fundamentos da Negociação para o Ambiente Jurídico. São Paulo: Saraiva, 2014 (Série GVLaw). p. 135-144).

6 Utiliza-se aqui o conceito adotado no CPC, no seu art. 165, §§ 2º e 3º.

7 Embora este não seja o foco deste artigo, cabe mencionar ao menos um dos métodos da negociação, dando-se enfoque para a negociação baseada em princípios, da escola de Harvard. Este método tem como base quatro princípios: (i) separe as pessoas do problema; (ii) foque nos interesses e não nas posições; (iii) crie opções criativas para os problemas, que agreguem valor para as partes envolvidas; e (iv) tenha como base da negociação critérios objetivos.

Andressa Garcia
Mestre em Direito Privado pela UFRGS. Advogada sócia no Zugno e Peña Advogados, com atuação na área de Resolução de Disputas, notadamente em litígios envolvendo contratos empresariais, operações societárias (M&A), dissolução parcial de sociedades, anulação de assembleias gerais e recuperação judicial de empresas. Membro do Grupo Executivo da Câmara de Arbitragem da Federasul (CAF), do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr) e da Comissão Especial de Arbitragem da OAB/RS.

Maurício Brum Esteves
Advogado especializado em Direito Digital, Proteção de Dados e Propriedade Intelectual, com dez anos de experiência. Sócio e Data Protection Officer do Silveiro Advogados.

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