Migalhas de Peso

Impropriedade da glosa de créditos de ICMS sobre o frete de transporte interestadual de combustíveis

Há sólidos argumentos para manutenção dos créditos nas contratações de fretes interestaduais relacionados com combustíveis, cujas operações interestaduais estão albergadas pela “imunidade” previsto no artigo 155, parágrafo 2º, inciso X, alínea ‘b’, da Constituição Federal.

5/10/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A tributação do setor de combustíveis no âmbito estadual é regida pela sistemática de substituição tributária do ICMS, regime pelo qual a responsabilidade pelo ICMS devido em relação às operações ou prestações de serviços de transporte é atribuída a outro contribuinte de forma antecipada, no caso, as refinarias de petróleo ou importadores (substitutos) em relação aos outros entes da cadeia da operação (substituídos).

Em resumo, a função do substituto tributário na cadeia de combustíveis consiste em (i) reter e antecipar o ICMS incidente; e (ii) efetuar o repasse do tributo aos respectivos Estados onde ocorrer o consumo da mercadoria.

Em referência a esta sistemática, válido transcrever excerto do elucidativo voto da Min. Ellen Gracie no julgamento da ADIn 4.171 ao tratar da venda da gasolina e do diesel pelas refinarias às distribuidoras: como se vê, o ICMS é, a princípio, todo ele exigido já na primeira operação, concentrando-se o recolhimento na refinaria. Em razão da substituição tributária para frente, a primeira operação de venda do derivado de petróleo já embute todo o custo de ICMS, considerado o preço da operação final, sendo que nas operações intermediárias não há tributação”.

E a Ministra complementa: ”importantíssimo, ainda, é considerar, nos termos das informações prestadas nos autos, que, tendo sido quase a totalidade do ICMS embutida na primeira operação, cabe à refinaria gerenciar verdadeira “câmara de compensação”, que “funciona com base e repasses e deduções de imposto às Unidades Federadas, ao invés de débitos e créditos em contas gráficas”.

Feitos esses apontamentos introdutórios, paralelo à comercialização dos combustíveis suscetível a incidência do ICMS, há também a prestação de serviço de transporte (igualmente fato gerador do ICMS mas com base de cálculo distinta), sendo nesse caso assegurado crédito no valor do ICMS devido àquele contribuinte para o qual o serviço foi prestado (tomador do serviço de transporte), desde que relacionada com operações ou prestações regulares e tributadas.

Todavia, os Fiscos Estaduais vêm reiteradamente glosando estes créditos de forma inapropriada, valendo-se de uma intepretação equivocada de que os combustíveis seriam imunes ao ICMS nas operações interestaduais1, o que resultaria no estorno do crédito do imposto sobre o frete nessas saídas2.

Lado outro, os contribuintes sustentam que deve ser mantido o crédito do ICMS quando estes figurarem como tomador de serviço de transporte de combustíveis, na hipótese de o frete se referir a operação interestadual com combustíveis.

Nesse imbróglio jurídico, fato é que a “imunidade” do ICMS aplicável às operações interestaduais com combustíveis não é um comando constitucional predisposto a desonerar os produtos do imposto. Em verdade, revela-se uma técnica de tributação que oferece a tributação de todo o ICMS ao Estado aonde estes serão efetivamente consumidos (princípio do destino).

No particular, o modelo constitucional do ICMS consta no artigo 155, inciso II, da Constituição Federal3, institui a competência dos Estados e do Distrito Federal para instituir o imposto sobre (i) “operações relativas à circulação de mercadorias”, (ii) “sobre operações de prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal”, bem como (iii) “de comunicação”.

Por sua vez, a lei Complementar 87/1996 (“lei Kandir”), exercendo a competência conferida pelo artigo 155, inciso II c/c parágrafo 2º, inciso XII, da Constituição Federal4, assevera que o ICMS incide sobre (i) operações de circulação de mercadorias e (ii) prestações de serviços de transporte interestadual.

Em suma, a legislação complementar estabelece 2 (duas) hipóteses de incidência distintas para as operações econômicas, sendo uma o “ICMS-Circulação” e outra o “ICMS-Transporte”. A hipótese de incidência do ICMS-Circulação é definida como a “saída” da mercadoria do estabelecimento do contribuinte, por sua vez, a hipótese de incidência do ICMS- Transporte é o “início da prestação de serviços de transporte5.

Feita esta distinção  acerca dos fatos geradores do ICMS, convém pontuar que há previsão constitucional de que o ICMS incidente sobre combustíveis “não incidirá sobre operações que destinem a outros Estados petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados6.

O Supremo Tribunal Federal, ao analisar o Recurso Extraordinário 198.088/SP7, exarou o entendimento que esta disposição constitucional não reflete um benefício fiscal de ICMS aos consumidores finais, mas, em verdade, trata-se de uma garantia de que a integralidade do imposto sobre os combustíveis será destinada ao Estado de consumo dos combustíveis, consagrando o chamado “princípio do destino” aplicável ao ICMS sobre os combustíveis.

Assim, com base no “princípio do destino”, o Estado de consumo dos combustíveis - desde a produção até o consumo do combustível - deve ficar com toda a arrecadação do ICMS, de modo que a operação não deixa de ser tributada, tão somente o sujeito ativo responsável pelo recolhimento do imposto é que é alterado.

Desta feita, eventual análise de que a operação interestadual de combustíveis é “imune”, “isenta”, ou “não tributada” é equivocada em razão da sistemática de substituição tributária (prevista no Convênio ICMS nº 110/2007), posto que o ICMS é efetivamente tributado sobre os combustíveis, enquanto recolhido na primeira operação pela refinaria de petróleo (produtora) ou pelo importador dos combustíveis, a depender da cadeia específica.

Conquanto as saídas nas operações intermediárias com combustíveis efetivada pelas distribuidoras não venham a gerar um débito de ICMS na operação em si - a não ser no caso de operação interestadual pela distribuidora com diferença de imposto a recolher tendo em vista os critérios definidos pelo Convênio ICMS 110/07 -, a integralidade do imposto já fora retido para aquela operação pelo regime de substituição tributária.

De tal modo, é evidente a impropriedade do argumento dos Fiscos Estaduais de que a operação interestadual de combustíveis efetuada pelas distribuidoras se trata de uma operação não tributada. Em verdade, seria não tributada na hipótese do ICMS sobre os combustíveis fosse calculado somente com base no valor da operação de venda direta da refinaria à distribuidora, a título de ICMS próprio, estando nessa ficção as etapas posteriores desoneradas do imposto.

Todavia, se assim fosse, o ICMS sobre os combustíveis apenas visaria a capacidade contributiva8 da refinaria ou do importador, de modo que as etapas seguintes seriam desoneradas do imposto.

No entanto, essa não é a realidade desta operação, posto que o ICMS é recolhido pela refinaria com base no regime de substituição tributária e levando em conta todos os custos agregados para mensuração do preço final do produto disponibilizado ao consumidor (dentre eles a produção, distribuição, tributos, fretes, seguros, etc.).

Assim, fato é que a “imunidade tributária” do imposto sobre as etapas intermediárias da cadeia apenas previne a bitributação, pois a incidência do imposto sobre a manifestação econômica da circulação da mercadoria, tendo em vista o preço final calculado, já foram considerados no recolhimento do início da cadeia, pela sistemática de substituição tributária.

Portanto, inequivocamente, as operações são efetivamente tributadas, motivo pela qual é incorreto o argumento do Fisco9 para a glosa dos créditos, não sendo possível dizer que as operações interestaduais não são tributadas, eis que foram tributadas anteriormente para toda a cadeia.

Ademais conforme já abordado, a lei Kandir evidencia duas hipóteses de incidência diferentes - circulação da mercadoria (“ICMS-Circulação”) e frete (“ICMS-Transporte”) - razão pela qual tornar-se-ia irrelevante se a mercadoria transportada fora tributada ou não.

Nos termos do artigo 13, inciso III, da lei Complementar 87/96, a base de cálculo do imposto é o preço pago pelo serviço de transporte10, em nada relacionado com a conjuntura tributária da mercadoria objeto do frete.

Ato contínuo, a sistemática da não-cumulatividade estabelece que o valor pago pela prestação do serviço de frete vira crédito do imposto para o tomador. Assim, na hipótese de exigência de estorno sobre o frete do combustível, estar-se-á onerando o preço da operação em desrespeito a sistemática de não-cumulatividade, uma vez que a distribuidora não poderá se utilizar do valor pago pelo ICMS naquela operação em sua apuração periódica.

Não poderia ser diferente: o direito ao crédito sobre o ICMS pago pelo transporte de mercadorias é prestigiado pelo STJ11, sob o fundamento de que a exigência do estorno infringe a sistemática da não-cumulatividade e acarreta que o ICMS incida em cascata.

Assim, a distribuidora de combustível está sujeita ao pagamento do imposto incidente sobre o transporte, enquanto tomadora do serviço, nos termos do artigo 11, inciso II, alínea ‘a’, da lei Complementar 87/9612, mesmo que a mercadoria transportada esteja sujeita a substituição tributária, motivo pelo qual ao arcar com o ônus financeiro da prestação do serviço de transporte, não pode ser obstado fruição do crédito do ICMS com base no princípio da não-cumulatividade.

Conclui-se, assim, que, ante a inexistência de previsão constitucional ou legal expressa, há sólidos argumentos para manutenção dos créditos nas contratações de fretes interestaduais relacionados com combustíveis, cujas operações interestaduais estão albergadas pela “imunidade” previsto no artigo 155, parágrafo 2º, inciso X, alínea ‘b’, da Constituição Federal.

________

1 Com base no artigo 155, inciso II, c/c parágrafo 2º, inciso X, alínea ‘b’, da Constituição Federal.

2 Lei Complementar  87/1996:

“Art. 21. O sujeito passivo deverá efetuar o estorno do imposto de que se tiver creditado sempre que o serviço tomado ou a mercadoria entrada no estabelecimento:

I - for objeto de saída ou data da entrada da mercadoria ou da utilização do serviço; ”prestação de serviço não tributada ou isenta, sendo esta circunstância imprevisível na

3 Constituição Federal:

“Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (...)

II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior:”

4 Constituição Federal:

“Art. 155 ...II - ...§ 2º ...

XII - cabe à lei complementar:

a) definir seus contribuintes; (...)

d) fixar, para efeito de sua cobrança e definição do estabelecimento responsável, o local das operações relativas à circulação de mercadorias e das prestações de serviços;”

5 Lei Complementar  87/1996:

Art. 12. Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento:

I - da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular; (...)

V - do início da prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal, de qualquer natureza;”

6 Constituição Federal:

Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (...)

II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior; (...)

§ 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte: (...)

X - não incidirá: (...)

b) sobre operações que destinem a outros Estados petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e energia elétrica;

7 “TRIBUTÁRIO. ICMS. LUBRIFICANTES E COMBUSTÍVEIS LÍQUIDOS E GASOSOS, DERIVADOS DO PETRÓLEO. OPERAÇÕES INTERESTADUAIS. IMUNIDADE DO ART. 155, § 2, X, B, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.   Benefício fiscal que não foi instituído em prol do consumidor, mas do Estado de destino dos produtos em causa, ao qual caberá, em SUA TOTALIDADE, o ICMS sobre eles incidente, desde a remessa até o consumo. Consequente descabimento das teses da imunidade e da inconstitucionalidade dos textos legais, com que a empresa consumidora dos produtos em causa pretendeu obviar, no caso, a exigência tributária do Estado de São Paulo. Recurso conhecido, mas desprovido.

8 Constituição Federal:

“Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos: (...)

§ 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.”

9 Com base no artigo 21, inciso I, da Lei Complementar 87/1996 e na “imunidade” do artigo 155, inciso II, c/c parágrafo 2º, inciso X, alínea ‘b’, da Constituição Federal.

10 Lei Complementar  87/1996:

Art. 13. A base de cálculo do imposto é: (...)  III - na prestação de serviço de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, o preço do serviço;”

11 PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL. ICMS. DIREITO AO CREDITAMENTO. PRINCÍPIO DA NÃO-CUMULATIVIDADE. COMPROVAÇÃO DA CONTRATAÇÃO DE FRETE PELA EMPRESA CONTRIBUINTE. SÚMULA 07 DO STJ. (...) Provado que a embargante foi a efetiva tomadora do serviço de frete não há que se falar em aproveitamento indevido de créditos do ICMS sobre fretes prestados pela firma Planalto Transportadora Ltda, tão-só por não dispor a embargante das primeiras vias dos Conhecimentos de Transporte Rodoviário de Carga. (Agravo Regimental no Recurso Especial 883.821/DF, Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, Relator: Ministro Luiz Fux, julgado em 04 de dezembro de 2008).

12 lei Complementar 87/1996:

“Art. 11. O local da operação ou da prestação, para os efeitos da cobrança do imposto e definição do estabelecimento responsável, é: (...) II - tratando-se de prestação de serviço de transporte: a) onde tenha início a prestação;”

Ricardo Henrique Rodriguez de Andrade
Advogado da área de Contencioso Administrativo e Consultoria Tributária do escritório Magro Advogados. Pós-graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários- IBET/RJ.

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