Em 16 de setembro de 2021, a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), composta pelas Terceira e Quarta Turmas, iniciou o julgamento dos embargos de divergência1 que tratam da abusividade ou não da imposição de cláusula contratual, pelos planos de saúde, que restrinja a cobertura dos procedimentos ao rol estabelecido pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
A agência reguladora foi criada pela lei 9.961/2000 e possui como finalidade o fomento da defesa do interesse público no âmbito da saúde suplementar. O art. 4º, incisos III e XXXVII, da lei determina ser de competência da ANS a elaboração do “Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde” e de suas excepcionalidades.
Esse rol constitui referência básica para a lei 9.656/19982, conhecida como lei dos Planos e Seguros de Saúde, e visa a garantir a prevenção, o diagnóstico, a recuperação, o tratamento e a reabilitação das enfermidades previstas na “Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde” (CID) da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Há divergência de entendimento na Corte Superior, porquanto a Terceira Turma3 considera abusiva a cláusula que restringe a cobertura aos tratamentos elencados no rol estabelecido pela ANS, por sua natureza meramente exemplificativa, enquanto a Quarta Turma4 consignou recentemente entendimento de que a natureza do rol seria taxativa, de modo que a prestação dos serviços poderia se limitar aos procedimentos dele constantes.
Ou seja, o acórdão da Quarta Turma5, utilizado como paradigma nos embargos de divergência cujo julgamento teve início em 16 de setembro, realizou o overruling da tese antes consolidada no STJ de abusividade da recusa de cobertura, pelo plano de saúde, com base na lista de procedimentos estabelecida pela ANS.
A partir deste julgado da Quarta Turma, deu-se abertura para o entendimento de que o rol da ANS resulta da solução legislativa de harmonizar os interesses da relação contratual em questão, compatibilizando-se a segurança, a efetividade e o impacto econômico, o que “exige uma adequada divisão de ônus e benefícios dos sujeitos como parte de uma mesma comunidade de interesses, objetivos e padrões. Isso tem de ser observado tanto em relação à transferência e distribuição adequada dos riscos quanto à identificação de deveres específicos do fornecedor para assegurar a sustentabilidade, gerindo custos de forma racional e prudente”6.
Nesse mesmo sentido, o relator do caso neste novo julgamento, ministro Luis Felipe Salomão, votou no sentido de que o rol da ANS é taxativo e busca proteger os segurados e garantir a conveniência dos procedimentos médicos. Para o relator, apenas em situações excepcionais seria possível compelir a seguradora à cobertura de procedimentos não previstos na listagem, como ocorre em terapias recomendadas pelo Conselho Federal de Medicina com eficácia comprovada cientificamente.
Até o momento, o ministro destacou que o rol precifica os valores de “cobertura-base” das seguradoras, pois, caso o rol fosse de natureza meramente exemplificativa, o preço da cobertura não poderia ser definido em razão de uma lista de procedimentos ilimitada.
Por fim, o Relator defendeu que o rol estabelecido pela ANS demonstra a preocupação estatal de resguardar os segurados à submissão de procedimentos sem respaldo científico, e que a Resolução Normativa 470/2021, em vigor a partir de outubro, incluiu 69 novos procedimentos na listagem, o que demonstra que a ANS não favorece nenhuma das partes contratuais.
O julgamento foi suspenso em razão do pedido de vista da ministra Nancy Andrighi, defensora da tese da natureza exemplificativa do “Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde” da ANS e da abusividade da imposição de cláusula contratual que restrinja a cobertura do plano de saúde aos procedimentos nele previstos.
De fato, como o tema envolve o direito à saúde, ratificado pela Constituição como direito fundamental de caráter social e indisponível (art. 6º da CF/198), defende-se que o rol da ANS não deve ser considerado taxativo, sobretudo quando algum procedimento não previsto na lista for essencial para assegurar a saúde ou até mesmo a vida do segurado.
O argumento consequencialista de “equilíbrio econômico-financeiro”, tão defendido pelos planos de saúde, não pode inviabilizar o direito fundamental à saúde, corolário do direito à vida.
Por fim, como o julgamento dos embargos de divergência mencionados não ocorre em sede de recursos repetitivos, faz-se a ressalva de que o entendimento a ser consignado pela Segunda Seção será aplicado apenas aos casos em questão, em razão de seus efeitos inter partes.
Todavia, inegável que o resultado do julgamento ocasionará impactos futuros sobre uma possível definição de tese em sede de recursos repetitivos, desta vez com repercussão geral e eficácia erga omnes.
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1 Quais sejam, o EResp 1.886.929/SP e o EResp 1.889.704/SP, ambos de relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão.
2 No mesmo sentido, o art. 10, § 4º, da lei 9.656/1998, com recente redação conferida pela Medida Provisória 1.067/2021, determina que cabe à ANS editar norma sobre a abrangência das coberturas referentes à saúde suplementar.
3 Vide AgInt no AREsp 1.683.820/SP, 3ª Turma, Rel. Min. PAULO DE TARSO SANSEVERINO, DJe 10/03/2021; AgInt no REsp 1.882.735/SP, 3ª Turma, Min. Rel. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, DJe 12/02/2021; AgInt nos EDcl no AgInt no AREsp 1.691.550/SP, 3ª Turma, Rel. Min. MOURA RIBEIRO, DJe 08/02/2021; e AgInt no REsp 1.890.825/SP, 3ª Turma, Rel. Min. PAULO DE TARSO SANSEVERINO, DJe 18/12/2020.
4 Quando do julgamento do REsp 1.733.013/PR, em 10.12.2019, a Quarta Turma do STJ, por unanimidade, negou provimento ao recurso especial da segurada. No acórdão, foi ressaltada a inviabilidade de se considerar o rol de procedimentos da ANS meramente exemplificativo, pois deixar de limitá-lo implicaria na padronização e no encarecimento dos planos de saúde, de modo a compeli-los a prestar qualquer tipo de tratamento, de modo a restringir a livre concorrência e prejudicar o plano básico.
5 REsp 1.733.013/PR STJ, Quarta Turma, Rel. Min LUIS FELIPE SALOMÃO, j. 10.12.2019; DJe 20.02.2020.
6 Trecho da ementa do acórdão do REsp 1.733.013/PR, STJ, Quarta Turma, Rel. Min LUIS FELIPE SALOMÃO, j. 10.12.2019; DJe 20.02.2020.