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Mudanças na Lei Improbidade Administrativa

A Improbidade Administrativa e a crise do Direito.

30/9/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Já dizia na Antiguidade o famoso senador, orador, advogado e filósofo romano Marco Túlio Cícero que “fazem muito mal à República os políticos corruptos, pois não apenas se impregnam de vícios eles mesmos, mas os infundem na sociedade, e não apenas a prejudicam por se corromperem, mas também porque a corrompem, e são mais nocivos pelo exemplo do que pelo crime” (Manual do Candidato às Eleições: Carta ao Bom Administrador Público. São Paulo: Nova Alexandria, 2020. p. 32).

Nada mais elementar para a sociedade, portanto, do que a elaboração de um sistema anticorrupção sólido e sério em prol da ética e da probidade administrativa, capaz de impor freios inibitórios ao ímpeto justamente daqueles primeiros responsáveis por zelar pela coisa pública, o que faz rememorar a clássica máxima de Rudolf von Ihering, de que “a balança sem a espada é a impotência do Direito” (A Luta pelo Direito. São Paulo: Martin Claret, 2004. p. 27).

Nesse sentido, a Constituição de 1946 (art. 141, §31), depois a Constituição de 1967 (art. 150, § 11), modificada pela EC 1/1969 (art. 153, § 11) já aludiam ao sequestro e perdimento de bens de autores de condutas lesivas ao patrimônio público ou geradoras de enriquecimento ilícito.

Atualmente, é a Constituição Federal de 1988 a principal fonte normativa em matéria de improbidade administrativa, trazendo as balizas gerais em seus arts. 15, inc. V e 37, §4º, dispondo este último que as sanções e consequências dos atos de improbidade administrativa “importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”.

Por sua vez, a lei 8.429/92, a chamada Lei de Improbidade Administrativa (LIA), regulamentou com profundidade a Carta vigente, prevendo quatro modalidades de atos ímprobos: (i) os que importam enriquecimento ilícito (art. 9º); (ii) os que causam lesão ao erário (art. 10); (iii) os que atentam contra os princípios da administração pública (art. 11) e (iv) os decorrentes de concessão ou aplicação indevida de benefícios financeiros ou tributários (art. 10-A, incluído pela Lei Complementar n. 157/2016).

Indo direto ao ponto, a LIA impôs retidão ao gestor público na lida com a res publica, o que não a isentou, todavia, de uma certa fadiga decorrente de disfunções reveladas no transcurso dos seus quase trinta anos de vigência, sendo certo que toda e qualquer legislação nunca deve ser vista como um dado completo, não se podendo olvidar ainda, conforme Ronald Dworkin, que “o raciocínio jurídico é um exercício de interpretação construtiva” (in O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 12).

Com efeito, a LIA carece de melhorias e aperfeiçoamento normativo para fins de melhor adequação à Constituição Federal, para fazer frente às novas demandas sociais, à realidade contemporânea, muito distinta daquela dos anos 90, e para consolidar a valiosa contribuição da jurisprudência pátria, firmada paulatinamente em seu esforço interpretativo em julgamentos de milhares de casos concretos.

Com esse propósito de modernização da legislação, tramita no Senado Federal o Projeto de Lei (PL) n. 2.505/2021, que propõe diversas alterações na LIA.

A proposta é robusta: apenas os arts. 15 e 19 não são objeto de modificação, e os demais dispositivos ou sofrem alteração (arts. 1º a 3º; 7º a 10; e 23), ou são revogados (arts. 4º a 6º e 10-A), ou acrescentados (arts. 8º-A, 17-B, 17-C, 18-A, 23-A, 23-B e 23-C).

Inúmeras são as inovações pretendidas pelo PL, como tornar expresso que a LIA se aplica também aos agentes políticos. A modificação é cosmética somente na aparência, pois o tema suscitou, de fato, acalorados embates nos tribunais ao longo de décadas, culminando, p. ex., no julgamento de mérito do RE 976566/PA (Tema 576, com repercussão geral), no qual o Plenário do Supremo Tribunal Federal, em 2019, fixou a tese de que “o processo e julgamento de prefeito municipal por crime de responsabilidade (Decreto-lei 201/67) não impede sua responsabilização por atos de improbidade administrativa previstos na Lei 8.429/1992, em virtude da autonomia das instâncias”.

Quer dizer, noutras palavras, que os chamados agentes políticos, com exceção do Presidente da República, estão sujeitos a um duplo regime sancionatório, de modo que se submetem tanto à responsabilização civil pelos atos de improbidade administrativa, quanto à responsabilização político-administrativa por crimes de responsabilidade.

Mas neste momento queremos destacar uma inovação especialmente positiva constante do PL 2.505/21, e que corrige a maior das distorções em matéria de direito sancionador: o ato de improbidade administrativa, seja qual for a modalidade na qual se enquadre, somente estará configurado na presença do dolo específico do agente. Isto é, no elemento subjetivo dos tipos infracionais, não se admitirá mais a figura da culpa, exigindo-se a demonstração da vontade livre e consciente do agente na consecução do fim ilícito descrito na norma sancionadora.

Como se sabe, atualmente os atos descritos no art. 10 da LIA admitem a culpa como elemento subjetivo, enquanto os atos previstos nos arts. 9º e 11 somente caracterizam improbidade administrativa quando presente o dolo.

Essa redação atual da LIA, embora bem intencionada, contraria a própria finalidade da lei, e tem sido, na prática, fonte de graves abusos e temeridades contra gestores públicos e particulares, comumente acusados pelo Ministério Público em ações verdadeiramente desprovidas de justa causa, voltadas para o indevido controle de políticas públicas, ou simplesmente “encomendadas” por adversários políticos, desfigurando o sistema constitucional de proteção da moralidade administrativa, bem como inibindo o bom gestor de praticar atos regulares de mera execução ou até mesmo atos tipicamente político-institucionais de governo.

O fato é que a culpa como elemento subjetivo do ato ímprobo é inconstitucional, de modo que o PL n. 2.505/2021, ao eliminar o frágil elemento normativo consistente na culpa, representa importantíssimo prestígio à Constituição Federal, às liberdades individuais e à finalidade da própria LIA, prevenindo e punindo a desonestidade sem qualquer fragilização do combate aos ilícitos administrativos.

Isso porque, consoante o escólio de Marcelo Figueiredo, o legislador ordinário foi além do comando constitucional ao incluir a culpa como elemento subjetivo do tipo, ferindo de morte os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade (in Probidade Administrativa: comentários à Lei nº 8.429/92 e legislação complementar. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 82).

Vale lembrar que todo excesso compromete a legalidade e desvia a finalidade do exercício do poder, que deve ter por bússola o primado da razoabilidade e da proporcionalidade (CF, art. 37, caput c/c Lei n. 9.784/99, art. 2º, caput), pois a proibição de excesso é princípio geral de direito inclusive na edição das leis, traduzindo a consagrada fórmula da necessidade e adequação.

É essa a lição de Gilmar Mendes e Paulo Gustavo Branco, para os quais “a utilização do princípio da proporcionalidade ou da proibição de excesso no direito constitucional envolve, como observado, a apreciação da necessidade (Erforderlichkeit) e adequação (Geeignetheit) da providência legislativa” (in Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 367).

Aliás, se a sanção é individual e se deve ela ser imposta de forma proporcional, sem excessos, de acordo com a gravidade da conduta, pois a individualização da pena é garantia constitucional (CF, art. 5º, inc. XLVI), então não se pode atribuir genericamente, já in abstrato, a mesma pena de quem age com dolo a quem age com mera culpa.

Afinal, conforme Isabela Giglio Figueiredo, “não se pode conceber a ideia de que alguém atue com desonestidade ou de maneira corrupta, com desvio de caráter, simplesmente por negligência, imprudência ou imperícia, que são modalidades culposas” (in Improbidade Administrativa - dolo e culpa. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 127).

Além disso, a LIA não se destina a punir o inábil ou o incompetente, mas sim o desonesto, o malfazejo, o desonrado, circunstância que, por si só, pressupõe de forma imanente a consciência do agente acerca do potencial lesivo do seu ato, mesmo porque, de acordo com José dos Santos Carvalho Filho “o agente ímprobo sempre se qualificará como violador do princípio da moralidade” (in Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2017, p. 599), não se havendo falar em imoralidade sem consciência.

Nessa linha de raciocínio, vale frisar que também o Superior Tribunal de Justiça já consolidou, há muito, o entendimento de que “a Lei nº 8.429/92 visa a resguardar os princípios da administração pública sob o prisma do combate à corrupção, da imoralidade qualificada e da grave desonestidade funcional, não se coadunando com a punição de meras irregularidades administrativas ou transgressões disciplinares, as quais possuem foro disciplinar adequado para processo e julgamento” (AgRg no REsp 1245622/RS, Rel. Min. Humberto Martins, 2ª T., j. 24/6/2011).

Tudo leva a reconhecer que, deveras, “a vontade do agente, o fim por ele almejado, é fundamental para a caracterização do ato de improbidade”, consoante também Benedicto Pereira Porto Neto e Pedro Paulo de Rezende Porto Filho (in BUENO, Cássio Scarpinella e PORTO FILHO, Pedro Paulo de Rezende (Orgs.). Improbidade administrativa – questões polêmicas e atuais. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 115-6).

Portanto, a LIA, em sua redação atual, falha rigorosamente ao tipificar qualquer ação culposa, que importe em lesão ao erário, como ato de improbidade administrativa, igualando situações não análogas ao ponto de ignorar a boa-fé do agente.

O PL 2.505/21, ao eliminar o frágil elemento normativo consistente na culpa, acrescentando a necessidade de demonstração do dolo específico, representa importantíssimo prestígio à Constituição Federal, às liberdades individuais e à finalidade da própria LIA, prevenindo e punindo a grave desonestidade sem qualquer fragilização do combate aos ilícitos administrativos.

O Direito está em crise. É preciso mudar, pois “o componente ideológico acompanha todo conhecimento científico no campo social – por conseguinte, também na esfera jurídica”, não havendo mais espaço para esse “corte epistemológico”, essa “inércia reflexiva”, essa “falta de interesse na mudança”, enfim, esse “conformismo dos satisfeitos e a ausência de crítica por parte dos juristas” (WARAT, Luís Alberto. O sentido comum teórico dos juristas. In: FARIA, José Eduardo (org.). A crise do direito numa sociedade em mudança. Editora Universidade de Brasília, 1988. p. 32).

Willer Tomaz
Advogado do escritório Willer Tomaz Advogados Associados.

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