Migalhas de Peso

Inconstitucionalidade do ICMS da gasolina e da energia elétrica

Ao criar ou modificar o tributo situado no âmbito de sua competência, o legislador pode e deve quantificá-lo, não precisando, pois, de qualquer autorização adicional ou específica.

29/9/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Preliminarmente, é de mister sublinhar que o ICMS deve ser quantificado para mais ou para menos, conforme o grau de maior ou menor necessidade da mercadoria para a população.

Nesse sentido, diga-se de passo, estabelece o artigo 155, § 2º, inciso III, da Constituição Federal, a seguir transcrito, in verbis:

Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (Redação dada pela EC 3, de 1993)

II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior; (Redação dada pela EC 3, de 1993)

§ 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte: (Redação dada pela EC 3, de 1993)

III - poderá ser seletivo, em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços.

A bem ver, cabe esclarecer, embora o comando transcrito afirme que o ICMS poderá ser seletivo, o seu verdadeiro significado é que o referido imposto deverá ser seletivo. Realmente, não teria sentido a Constituição autorizar o legislador a realizar aquilo que ele já pode fazer, uma vez que a competência tributária por si só já compreende o poder de quantificar o tributo. Seria um sin sentido, segundo o jurista portenho Genaro Carrió que versou a linguagem jurídica em obras clássicas, dentre as quais "Sobre los limites del lenguaje normativo" ( Buenos Aires: Editorial Astrea, 1973)

Por conseguinte, ao criar ou modificar o tributo situado no âmbito de sua competência, o legislador pode e deve quantificá-lo, não precisando, pois, de qualquer autorização adicional ou específica.

A censurável visão literal da norma jurídica e o desconhecimento do que seja competência tributária, culmina por ensejar a existência de uma equivocada concepção, segundo a qual a seletividade ou mesmo a progressividade seriam autorizações em relação ao ICMS no primeiro caso e ao imposto sobre a renda no segundo.

A propósito, lembremos a lição de Carlos Maximiliano ao dizer que o Direito haverá de ser compreendido de maneira inteligente.  Ouçamo-lo, pois: "Deve o Direito ser interpretado inteligentemente: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis". (Hermenêutica e Aplicação do Direito, Forense, 9ª edição, 1984, pág. 166).

Ora, quando Texto Magno proclama que o ICMS e o IPI devem ser seletivos, não se trata de uma autorização, mas de uma ordem, a qual tem o condão de reafirmar o caráter imperativo da seletividade. Apenas para ilustrar, cabe observar que igual sorte ocorre na seara do Imposto de Renda, o qual deve ser necessariamente progressivo.

Posto isto, força é ressaltar que em respeito ao postulado da seletividade, as mercadorias supérfluas como caviar, perfumes, whisky e vodka, dentre outras, devem ser gravadas com percentagens mais elevadas, como corretamente estipula a legislação dos Estados.

Na mesma lógica, as mercadorias mais necessárias à população, a exemplo de alimentos da cesta básica que devem ser tributadas com alíquotas menores ou até isentos, conforme o caso.

Pois bem, as breves noções ora expostas revelam a existência de um flagrante e inconcebível descompasso com relação às alíquotas do ICMS no tocante aos combustíveis em geral e à gasolina em particular, o mesmo ocorrendo com a energia elétrica, os quais são tributados com a alíquota máxima no Estado de São Paulo, no caso de até 25%, o mesmo ocorrendo na maioria das demais unidades federativas. Impende ponderar que, em São Paulo, por exemplo, a alíquota de 25% recai sobre a conta residencial que apresentem consumo mensal acima de 200 kWh.

Por oportuno, insta destacar que o problema tematizado é objeto do RE 714.138 com repercussão geral – tema 745 –  no qual, à época da elaboração deste estudo, três ministros do pretório excelso reconheceram a inconstitucionalidade da alíquota de 25% em relação à energia elétrica, no caso o ministro Marco Aurélio, recentemente aposentado, a ministra Cármem Lúcia e o ministro Dias Toffoli. Convém frisar também que o RE in casu hospeda proposta de modulação, por certo como forma de solucionar questões concernentes aos efeitos pretéritos em relação ao assunto.

Um primeiro ponto merecedor de encômios consiste no reconhecimento por parte do pretório excelso no sentido de reconhecer que o consumidor – contribuinte de fato – desfruta de legitimidade do consumidor, o que exprime um importante avanço em relação ao entendimento tradicional.

Na mesma vereda já decidira o STJ ao reconhecer o direito que instrumentaliza o consumidor de demandar em relação à energia elétrica contratada e não utilizada, hipótese, é bem de ver, que culmina por admitir a legitimidade do chamado contribuinte de fato insurgir-se contra ilegalidades embutidas no preço. (Resp 1.299.303 - SC (2011/0308476-3).

Nessa trilha, diga-se de passagem, o autor deste ensaio sustenta de há muito a legitimidade ad causam e ad processam em prol do consumidor, até porque é ele que realiza o pagamento do tributo categorizado como indireto, enquanto o chamado contribuinte de direito apenas repassa o valor para a Fazenda Pública (CDC-20 Anos, SP,LTR, p.175 e ss, 2010).

No aludido feito, diga-se, à vol d'oiseau, ao lado da apontada inconstitucionalidade os mencionados magistrados decidiram pela aplicação da alíquota de 17%. Nesse aspecto, data venia, o autor do presente estudo propugna que a competência do Judiciário se limita tão somente a declarar se a alíquota estaria em harmonia ou não com a Constituição, cabendo privativamente ao legislador a incumbência de estabelecer a alíquota.

Ao demais, impende obtemperar que a percentagem compatível com o ICMS de elétrica, bem assim gasolina e combustíveis em geral, senão também para o Serviço de Comunicação haveria de ser o patamar mínimo de incidência então firmado em cada unidade federativa.

Entrementes, isso não é tudo, pois o artigo 13, § 1º, inciso I, da LC 87/1996, estabelece que o ICMS é cobrado não só sobre o valor da mercadoria, mas também sobre o próprio ICMS! É realmente incredível a que ponto chegamos, pois a referida absurdez destoa da razoabilidade, da lógica, do limite à competência tributária e da estrita legalidade, enfim, é algo decididamente teratológico.

Não obstante à objurgatória ora anotada, torna-se de mister obtemperar que o Supremo Tribunal Federal decidiu em sentido oposto, na medida em que declarou a constitucionalidade da incidência do ICMS sobre o próprio ICMS, ou seja, a chamada cobrança por dentro, consoante estampado no RE 582.461-SP, com proposta de súmula vinculante.

Por todas as veras, trata-se de mais uma transgressão ao texto excelso e a postulados de lógica, até porque o legislador não tem competência para tributar o próprio imposto, mas tão somente a mercadoria. Asserto, aliás, pacificado na doutrina, como preleciona, dentre outros, o renomado jurista e professor Roque Carrazza (ICMS, Malheiros Editores, p.252 e seguintes, 10ª. ed. 2005).

Em suma, trata-se de induvidosa inconstitucionalidade praticada pelo legislador de hoje e de antanho e, para piorar esse quadro absurdo, a legislação não investe o consumidor do direito de insurgir-se contra essa cobrança inconstitucional, embora seja ele que paga o tributo contido no preço das mercadorias.

É dizer, embora a Constituição proíba a fixação das alíquotas ora suscitadas, o legislador faz tábula rasa do figurino constitucional com o desígnio de arrecadar e o cidadão paga aquilo que não deveria pagar. Oh my God! diriam os ingleses.

Por derradeiro, merece lembrada a reflexão de Ruy Barbosa acerca do culto à legalidade. São suas palavras: "Com a lei ,pela lei e dentro da lei; porque fora da lei não há salvação" (Discursos Parlamentares. Tomo II. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde,1892,v.19, Capítulo XII,p.77-Obras Completas). Inspirado no Mestre, podemos deduzir como corolário inexorável que se não há solução fora da Lei, que dirá fora da Constituição.

Eduardo Marcial Ferreira Jardim
Mestre e Doutor em Direito pela PUC-SP. Professor emérito na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor no IBET. Professor no Curso de Especialização em Direito Tributário na Academia Brasileira de Direito Constitucional em Curitiba/PR e Professor no Curso de Especialização Damásio, sob a coordenação da Professora Regina Helena Costa e pelo Professor Rodrigo Frota. Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas, Cadeira 62. Membro Fundador do IBEDAFT. Autor de Obras jurídicas pelas Editoras Mackenzie, Noeses e Saraiva. Sócio de Eduardo Jardim e Advogados Associados.

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