(1) INTRODUÇÃO
O ano corrente trouxe um pacote significativo de mudanças à Lei 9.279, mais conhecida como “Código” ou “Lei da Propriedade Industrial” (doravante LPI). Este breve ensaio busca sumarizar as vicissitudes negativas e positivas havidas na legalidade estrita do ambiente dos direitos intelectuais.
Como premissa contextual, não há qualquer problema em observar modificações a uma Lei que regula bens de produção imateriais após um quarto de século de vigência. A legitimidade e a efetividade de tais alterações, todavia, depende do Republicanismo e do debate público que antecedem sua efetivação.
(2) A ANUÊNCIA PRÉVIA DA ANVISA
Editada em 1996, sobre a imponente influência da adesão brasileira às regras da Organização Mundial do Comércio, a LPI vigeu durante meia década até vir a ser modificada pela lei 10.196/01. A última fonte normativa serviu à melhoria da interface dos direitos da propriedade industrial para com a seara da saúde pública, advinda da importante influência do então Ministro de pasta – hoje senador por São Paulo – José Serra (PSDB).
No texto da lei 10.196/01, os aperfeiçoamentos implementados que merecem destaque eram: (i) a inclusão de uma limitação no rol exemplificativo do art. 43 da LPI (inciso VII), salvaguardando interessados (em concorrer com os titulares de registros sanitários de referência) na produção dos dados de testes para a obtenção das autorizações de comercialização de produtos regulados (em especial de medicamentos); (ii) esclarecendo que os depositantes de pedidos de teor tecnológico proibido (particularmente, segmentos agroquímicos e farmacêuticos), antes da LPI/96, que não fizessem uso da faculdade das patentes de revalidação (na versão anglófona, pipelines) teriam seus pleitos indeferidos (art. 229 da LPI); e (iii) incluindo a agência reguladora ANVISA nos processos administrativos de concessão de patentes farmacêuticas (art. 229-C da LPI).
No que concerne à anuência prévia como etapa de um processo administrativo desta natureza (complexo1 e sensível), toda sorte de abrasões exsurgiram nos liames (a) administração vs. administração (INPI x ANVISA), (b) administrado vs. administração (em geral depositante de patente x ANVISA), e (c) administrado vs. administrado (titulares de pedidos de patente vs. não titulares). No conflito privado vs. público (a), os depositantes de patente se ressentiram da atividade complexa inter-autárquica, majorando o controle meritório dos anseios de exclusividade. Quando existe mais de uma autoridade pública escrutinando o bojo da tecnè, há mais chances de uma recusa e, deste modo, se está diante de mais hipóteses para que se precatem imperfeições e textos claudicantes em um pedido de patente. Para lidar com um filtro mais denso trazido pela inovação de 2001, alguns desgostosos com a legislação “inventaram” toda espécie de hermenêutica exótica: (1) ou a ANVISA só poderia se pronunciar sobre riscos à saúde pública, (2) ou o texto é inconstitucional, e (3) ou a ANVISA até poderá falar sobre o mérito tecnológico, mas sem vincular o INPI (portaria Conjunta 1/17 INPI-ANVISA).
Por sua vez (b), ANVISA e INPI passaram anos e anos disputando qual a natureza da anuência prévia, se a agência reguladora teria, mesmo, a competência para examinar patentes em seu mérito, e se não haveria um desvio de função da primeira. Como já se teve a oportunidade de defender2, a vaidade jamais poderia ser o enfoque de disputas intestinas ao primeiro setor. Apoiados pelos depositantes de patentes que estavam infelizes com o duplo controle, o INPI se sagrou vitorioso, administrativamente, com um parecer opinativo (rectius, não-vinculante) da AGU (Parecer de 337/PGF/EA/10). Aliás, no liame administrado-administração, a maioria das demandas judiciais questionando a anuência prévia da ANVISA foi proposta perante o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, Órgão Judicial que não goza, sequer, de uma Vara Federal ou Turma especializada em propriedade intelectual. O ajuizamento de demandas longe do TRF-2 não se mostrou aleatória, já que quase todos os precedentes favoráveis à plena anuência-prévia (meritória) da ANVISA foram advindos do TRF-23, até o começo da avalanche de ações na outra Região.
Ainda (c), o debate perante a Ágora judicial, afora a ANVISA (e parte da Academia) apenas alguns terceiros não-titulares apoiavam o cerne do art. 229-C da LPI, em geral visando a invalidação do ato administrativo de concessão de patentes. Ou seja, afora os entes públicos, tais conflitos eram marcados por serem subjetivamente permeados de ente privado proprietário (titular) vs. entes privados (não-titulares, incluindo ONGs de direitos humanos).
No âmbito Judicial, com a escolha das multinacionais de um foro desespecializado, e com as sucessivas sucumbências da ANVISA ao defender o (correto) entendimento acerca da anuência prévia, tudo se direcionava a uma estabilização de jurisprudência no sentido de tornar letra morta o espírito do art. 229-C da LPI. Contudo, um abalo sísmico foi produzido no corrente ano de 2021, a partir do caso-líder de hermenêutica sobre o art. 229-C, da LPI, dirimido no Tribunal da Cidadania. Sob a relatoria do Min. Salomão, o recurso especial – por farta maioria (4x1) – consagrou a tese ancorada pela ANVISA no sentido de que a anuência prévia de que trata o art. 229-C da LPI versa sobre o mérito de patenteabilidade (novidade, atividade inventiva, suficiência descritiva, best mode, reprodutibilidade técnica etc.), e não sobre atos ulteriores de comércio e saúde pública, além de vincular o INPI em eventual negativa de anuência4.
Vinte anos após o seu advento restaria cristalizada a interpretação correta da atividade cooperativa e coordenada que consiste no legal, legítimo e adequado duplo filtro de controle de ANVISA + INPI. Saia-se de uma lógica mesquinha adversarial, ou de restrição de competências da primeira, em prol dos interesses públicos primários (coletivos e sociais). Rechaçando os discursos proselitistas de uma minoria poderosa (economicamente), o sistema de patentes passaria a ter previsibilidade e uma fiscalização interministerial. Em um país munido de genuíno espírito Republicano, depositantes de patentes “fortes” lutariam em favor da anuência-prévia, visto que eventual exclusividade concedida teria sido produto de exame mais rigoroso e, logo, menos suscetível a ulteriores invalidações. Nem sempre este é o caso do Brasil.
No entanto, o Poder Legislativo extirpou a paz interpretativa do acidentado percurso da anuência prévia da ANVISA ao consagrar peça legislativa consistente na lei 14.195/21, revogando o art. 229-C da LPI apenas um dia após a publicação do precedente do STJ.
(3) A PEÇA LEGISLATIVA 14.195/21
Salada mista, pot-pourri, grosope, Frankenstein, ou colcha de retalhos: há mais de uma maneira de caracterizar ou batizar a fonte normativa de número 14.195/21. Originária de uma Medida Provisória 1.040/21 da Presidência da República, durante o trâmite junto ao Órgão Legiferante algum congressista teve a ideia de incluir dois preceitos para modificar a LPI, em que pese tal não ter sido objeto da propositura do Poder Executivo ou mesmo ser o funtor de direcionamento do ato oriundo da Administração Publica. Mutatis mutandi, é como se em um debate público temático sobre gastronomia alguém aprovasse, em um adendo, uma regra proibitiva sobre joguetes de ioiôs em vias públicas. Observa-se, assim, a morte das comezinhas noções de liame, de pertinência temática, de nexo causal e até de pudor.
A Lei é tão curiosa que, em um só texto, apresenta ter como causa legislativa resolver questões afeitas à: “facilitação para abertura de empresas, sobre a proteção de acionistas minoritários, sobre a facilitação do comércio exterior, sobre o Sistema Integrado de Recuperação de Ativos (Sira), sobre as cobranças realizadas pelos conselhos profissionais, sobre a profissão de tradutor e intérprete público, sobre a obtenção de eletricidade, sobre a desburocratização societária e de atos processuais e a prescrição intercorrente”. As conhecidas variações do adágio popular ressaltam que “tatu não sobe em toco” e “jabuti não escala coqueiro”. Nenhuma palavra da causa legiferante é destinada à modificação do sistema da propriedade industrial, revogando-se o texto que vigeu por uma década sem qualquer exposição de motivos, debate público oficial, audiência pública atual etc.
Um néscio otimista poderia ventilar que atos processuais – conforme mencionado na exposição de motivos – poderiam ser interpretados extensivamente e, assim, albergar o processo administrativo de concessão de patentes. Contudo, nem mesmo o mencionado entusiasta dos Fatores Reais de Poder conseguiria ver luz no fato de que a regra revogada consta no capítulo XIII, das disposições finais da novel Lei, ao invés de figurar no capítulo IX que cuida de “atos processuais, ou no capítulo X sobre “racionalização processual”. Ou seja, modificou-se a Lei da Propriedade Industrial no bolo de micro-revoluções de várias outras fontes normativas – todas – sem qualquer pertinência temática ou debate público. Pior, tal Lei foi publicada horas depois que o STJ pacificara a questão valorizando a saúde pública, uma maior qualidade de exame e, por fim, contrariando interesses de gente poderosa.
Uma última nota quanto ao exótico proceder do forjar legislativo na peça de número 14.195/21: decidiu-se por revogar5 (ex nunc) o parágrafo único, do art. 40, da Lei de Propriedade Industrial. Entretanto, o mesmo dispositivo da LPI já havia sido expurgado (ex tunc) do mundo jurídico desde maio, quando o Supremo Tribunal Federal acolheu o impecável voto do Min. Dias Toffoli na ADI 5529. Ou seja, a Lei ora em comento surtiu os mesmos efeitos de uma peça legislativa que adviesse a proibir corridas com centauros, vedasse selfies com o leão de Nemeia, ou que proibisse o nascimento do sol. Simplesmente é impossível revogar o que fora, preteritamente, decretado inválido a não ser que alguém creia que o tipo que prorrogava vigência de patentes criava uma espécie de disposição zumbi. Como em uma narrativa da história que cristalizou um episódio surreal: Inês de Castro era morta e já não podia mais casar.
Destarte, a lei 14.195/21, de constitucionalidade claudicante, conseguiu a proeza de combinar a inutilidade com a ilegitimidade. De um lado foi engenheira de obras prontas e, de outro, conseguiu erodir um dos filtros qualitativos mais relevantes ao sistema de patentes no Brasil: a anuência prévia.
(4) A PEÇA LEGISLATIVA 14.200/21
A derradeira modificação à LPI adveio de outra Lei sancionada no segundo semestre de 2021. Aqui, entretanto, a iniciativa fora do Poder Legiferante que, em labor conjunto dos Senadores Paulo Paim (PT-RS) e Nelsinho Trad (PSD-MS) construíram um texto harmonioso e progressista que restou aprovado no Senado Federal como o PLS 12/21. O escopo do – então – projeto era minimizar a burocracia para eventual decretação de licenças compulsórias. Como se sabe, a redação do art. 71 é tão defeituosa, que os entraves acabam por restringir hipóteses de incidência do dispositivo, sacralizando uma patente que é um direito de propriedade como qualquer outro (apesar de ter mais valia econômica e estratégica do que as exclusividades sobre meras coisas).
Após várias audiências públicas, debates caracterizados pelo pluralismo, pela democracia e pelo espírito Republicano, o projeto foi à segunda casa legislativa para aprovação. Infelizmente, as emendas propostas pelo Deputado Aécio Neves (PSDB-MG) tiveram o condão de podar vários excertos relevantes do projeto e, assim, delimitar o progresso legislativo. Ainda assim, a versão advinda da Câmara dos Deputados – com tímidos avanços perante sua antecessora produzida no Senado – restou aprovada e foi à mesa da Presidência da República para sanção.
No dia 2/9/21, o chefe do Poder Executivo federal exercendo sua competência de que trata o artigo 66, e seus parágrafos, da CRFB, sancionou o PL na versão Neves, vetando quatro parágrafos e um artigo da Lei. Uma das fundamentações utilizadas para vetar o dever instituído ao licenciante compulsório de fornecer informações anexas à reprodutibilidade técnica da invenção foi a seguinte: “a proposição legislativa contraria o interesse público, uma vez que pode trazer caos ao sistema patentário nacional, podendo suscitar conflitos com as indústrias farmacêutica e farmoquímica. Destaca-se, ainda, que o know how é de titularidade exclusiva da empresa, a qual terá a prerrogativa de licenciá-lo ou não”.
Caro leitor, leia novamente o excerto destacado da fundamentação do veto! Continua estranhando? Nós autores deste artigo ficamos apavorados. Há, no mínimo, duas excentricidades nesta parte da fundamentação da Presidência da República. Vamos a elas: (1) Os interesses privados dos titulares da tecnologia foram utilizados como se interesse público fossem, e eventual contrariedade à tal gente poderosa foi equiparada a situação de caos; e (2) o saber-fazer foi tratado como ainda mais sagrado do que a já, ultra tutelada, proteção patentária.
Desta sorte, espera-se que o Congresso no uso da prerrogativa de que trata o art. 57, §3º, IV, da CRFB derrube os vetos e mantenha o texto da lei 14.200/21 tal como aprovado nas Casas Legislativas.
(5) CONCLUSÕES
Vistos os perfis das mudanças emanadas na lei 9.279/96, pode-se endossar: (i) o completo acerto dos órgãos de cúpula do Poder Judiciário (STF e do STJ) no ato de dirimir os precedentes ADIn 5529 (Min. Toffoli) e REsp 1.543.826 (Min. Salomão); (ii) o acerto parcial do Congresso ao aprovar a lei 14.200/21, e o equívoco em – ilegitimamente – incluir preceitos sobre propriedade intelectual na Lei 14.195/2021; e (iii) o desacerto do Poder Executivo em promover vetos a legislação que se propunha a aperfeiçoar os textos normativos sobre licença compulsórias.
_______________
1 “Tampouco devem ser confundidos o ato administrativo conjunto e o ato administrativo complexo. O primeiro, como se expôs, é ato unilateral, enquanto o segundo, é ato bi ou multilateral, sendo conveniente distingui-los adequadamente, para evitar o emprego de uma nomenclatura que induza confusão entre essas duas figuras, que são, não obstante, absolutamente distintas, como adiante se examinará mais detalhadamente, quando do estudo do ato administrativo complexo” MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 16ª Edição, Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 164.
2 “A anuência prévia da ANVISA: Novas reflexões”. Rio de Janeiro, Lúmen Juris, 2018, In 20 Anos da Lei da Propriedade Industrial (Lei nº 9.279/1996): Estudos em Homenagem ao Professor Denis Borges Barbosa, Organizado por Enzo Baioochi e Ricardo Luiz Sichel. Texto disponível em clique aqui.
3 TRF-2, 31ª VFRJ, Juíza Edna Carvalho Kleeman, Decisão Interlocutória na AO 08053909420104025101, DJ 17.05.2012; TRF-2, 39ª VFRJ, Juíza Flávia Heine Peixoto, Sentença na AO 2004.51.01.530033-2, DJ 04.07.2007; TRF-2, 13ª VFRJ, Juíza Márcia Maria Nunes de Barros, Sentença na AO 08014156420104025101. E em segunda instância vide a ode à atividade cooperativa e meritória entre INPI e ANVISA "de forma que a análise se faça mais criteriosa e técnica dos requisitos de patenteabilidade" TRF-2, 1ª Turma Especializada, AMS 200451015138541, JC Márcia Helena Nunes, DJ 31.07.2008.
4 STJ, 4ª Turma, Min. Salomão, REsp 1.543.826, DJ 25.08.2021: “Por outro lado, a Anvisa, detentora de conhecimento especializado no setor de saúde, no exercício do "ato de anuência prévia", deve adentrar quaisquer aspectos dos produtos ou processos farmacêuticos — ainda que extraídos dos requisitos de patenteabilidade (novidade, atividade inventiva e aplicação industrial) — que lhe permitam inferir se a outorga do direito de exclusividade representará potencial prejuízo às políticas públicas do SUS voltadas a garantir a assistência farmacêutica à população. (...) O caráter vinculativo da recusa de anuência é, portanto, indubitável”.
5 “«Revogação» para o «critério cronológico» não significa propriamente que a norma anterior perdeu sua validade, mas sim que «não está mais em vigor»” SGARBI, Adrian. Introdução à Teoria do Direito. São Paulo: Marcial Pons, 2013, p. 152.