“Não vou pagar”, respondeu o prefeito do Rio, Eduardo Paes, ao ser questionado sobre os restos a pagar. A negativa ocorreu na entrevista coletiva sobre os cem dias do governo.
É sabido que a cidade passa por mais uma crise fiscal-orçamentária. Nesse cenário de inadimplência, os credores da prefeitura que não receberam a tempo e modo ingressam na fila dos chamados “restos a pagar”, ou seja, na fila das despesas já geradas, mas que não foram quitadas pelo município no prazo correto.
O discurso do prefeito, eivado de má-fé, tinha fundamento no decreto 48.364/21, que introduzia novo procedimento para pagamento dos restos a pagar. A norma previa uma “ratificação” dos ordenadores de despesas para que essas dívidas — já reconhecidas — fossem, enfim, pagas.
Várias são as críticas ao decreto: por sua inconstitucionalidade; por usurpar competência legislativa; por não oferecer os parâmetros ou critérios objetivos para a “ratificação”; por não tratar dos efeitos da tal ratificação na ordem cronológica de pagamentos; por ignorar o empenho etc. No entanto, o que mais preocupa neste procedimento é a falta de elemento basilar na gestão administrativa: a transparência.
A falta de transparência preocupa não só por apego constitucional, mas porque suas potenciais consequências concretas são graves. Diante do desconhecimento da ordem de credores da prefeitura, e dos critérios utilizados por ela para realizar ou para cancelar pagamentos devidos, amplia-se a possibilidade da indesejável ocorrência de negociações pouco republicanas ou, no mínimo, de difícil controle.
Numa visão global, o último Resumo Orçamentário por bimestre do município dá conta do cancelamento de mais de R$ 421 milhões de RPs. Em conta rápida, pode-se notar que houve um cancelamento maior neste ano (superior a 8%) do que nos últimos cinco exercícios anteriores no mesmo período (mais próximo é o balanço de 2019, com cerca de 4%).
Não há, no entanto, o mínimo de informações sobre como e por que os números foram tão altos: não se sabe quais despesas foram canceladas, a motivação desses atos, muito menos a forma e os critérios de como foi feita a inédita “ratificação”. O diferencial deste para os outros exercícios é, justamente, o novo decreto — que, por ilegal, tornaria os cancelamentos também ilegais e, portanto, nulos.
O passivo é escondido e cria-se a impressão de que o problema foi resolvido. Porém, as despesas canceladas não desaparecerão por meio de um procedimento que é dissonante da legislação. Sabemos, falta grave. Já houve até impeachment de presidente por isso.
Neste caos, os prognósticos também não são favoráveis à Administração. Na hipótese de confirmação da ilicitude dos atos, o município arcará não só com as despesas canceladas de forma indevida, mas também com juros, correção monetária e, no caso de judicialização, custas e honorários, sem prejuízo da apuração de responsabilidade fiscal pelos atos. Ao final, o “alívio” pode ter sido rápido, mas não será indolor. Provisório, comprometerá ainda mais o orçamento e, invariavelmente, os contribuintes cariocas.
De todo modo, a promessa do prefeito foi concretizada, e R$ 421 milhões de restos a pagar “desapareceram”, ao menos momentaneamente. As dúvidas, as críticas, os questionamentos e as consequências econômico-financeiras, administrativas e judiciais geradas pela edição do decreto permanecem.
Oito meses depois, e tendo que enfrentar contestações de diversas ordens sobre a legalidade da norma, o município revogou o polêmico decreto. Porém, não sem antes deixar claro que a normativa cumpriu seu objetivo: cancelou o que deveria ser cancelado. Isso, claro, na visão da atual gestão municipal.
Não bastasse a celeuma, ainda publicou o recente decreto 49.320/21, que suspende de vez o pagamento dos restos a pagar até que seja editada nova norma prevendo as regras e procedimentos para tanto — ou seja, agora os credores dependem de uma improvável celeridade do processo legislativo para receber o que é devido.
Enfim, cedo ou tarde os cariocas arcarão com o custo tanto de suas dívidas, quanto pela tentativa de calote empreendida. Sem dúvidas, a fama de mau pagador do município ainda permanecerá, afastando os investidores, que preferirão alocar seus recursos em outras cidades, não tão belas, mas que honram os compromissos que assumem.
Restos a pagar: o drama dos credores no município do Rio
Cedo ou tarde os cariocas arcarão com o custo tanto de suas dívidas, quanto pela tentativa de calote empreendida. Sem dúvidas, a fama de mau pagador do município ainda permanecerá, afastando os investidores, que preferirão alocar seus recursos em outras cidades.
22/9/2021
(Imagem: Arte Migalhas)