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Legítima defesa da honra e dignidade da pessoa humana: a decisão do STF

A decisão do STF apontando a evidente inconstitucionalidade da tese da legítima defesa da honra, em particular no contexto do feminicídio, deve ser elogiada, em nome do princípio maior da dignidade da pessoa humana.

17/9/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Em decisão de março de 2021, o Plenário do Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional a tese da legítima defesa da honra no cenário do feminicídio, prestigiando o princípio constitucional regente da dignidade da pessoa humana. Vedou a sua utilização no Tribunal do Júri, sob pena de anulação do julgamento. Por certo, o acerto da decisão é inequívoco e merece aplauso da comunidade jurídica, em especial na atualidade quando se busca, por diversos meios, inclusive pela edição de leis, combater a violência contra a mulher. Cuida-se de tema de preocupação universal, objeto de aprimoramento da legislação não somente do Brasil, mas de outros países.1

Seguindo diretamente ao ponto central da questão: a legítima defesa da honra, no cenário dos crimes passionais, onde se pode vislumbrar um número impressionante de vítimas mulheres, é um arremedo de tese de direito penal, cuja aceitação, a bem da verdade, somente se dava no cenário do Tribunal Popular, pois sempre encontrou repulsa pelos juízos e tribunais togados. Há vários defeitos nessa pretensa tese: a) mesmo que se possa sustentar a possibilidade de defender a honra por meio de alguma forma de violência, torna-se nítido e flagrante o excesso doloso, quando alguém mata outra pessoa, porque foi por esta ofendido;2 b) em termos ideais, se o homicídio é o resultado de traição conjugal, quando o marido mata a esposa porque esta foi surpreendida em flagrante adultério, é preciso considerar que o dever de fidelidade, no matrimônio, cabe a ambos os cônjuges; quem trai o outro é o culpado, razão pela qual aquele que deveria ter a sua imagem e reputação maculados – e não o cônjuge inocente; c) a deturpação da mencionada tese lastreia-se, na essência, em transferir à mulher toda e qualquer responsabilidade por fatores ligados a uma traição durante um relacionamento amoroso, além de lhe atribuir a culpa pelo término de um namoro, noivado ou união; isto se dá como fruto evidente do machismo em sociedade patriarcal, ainda resistente no Brasil; d) o erro é fatal: quando a mulher rompe o relacionamento amoroso, sem a concordância do homem, ingressa no cenário o orgulho ferido e emerge a reação abusiva, símbolo da arrogância e da prepotência, pretendendo impor um reatamento, sob pena de ser vítima de grave violência. Ora, essa reação não constitui legítima defesa de absolutamente nada.3

Surge o segundo ponto, que despertou a atenção da comunidade jurídica: após a reforma introduzida pela lei 11.689/2008, o quesito relativo à(s) tese(s) absolutória sustentado pela defesa em plenário não mais é desdobrado em várias indagações dirigidas aos jurados, mas deve ser formulado de uma só vez. Após as perguntas relativas à materialidade do fato e sua autoria, ingressa-se no quesito da defesa, conforme dispõe o art. 483, § 2º: “o jurado absolve o acusado?”.

É inequívoca a simplificação do questionário para o Conselho de Sentença responder, mas terminou por envolver um outro lado, que pode ser complexo: afinal, por que o júri absolveu o réu? Se a defesa invocou várias teses, nunca se saberá (há o sigilo da votação e ausência de fundamentação) qual delas foi acolhida. Ademais, pode até mesmo o júri absolver o acusado por pura clemência ou outra razão alheia às jurídicas teses defensivas. Em decorrência disso, houve decisões do STF no sentido de que a absolvição no Tribunal do Júri, podendo ter qualquer fundamento, não comportaria recurso do órgão acusatório. A questão ainda será avaliada pelo Plenário. Entretanto, despertou a seguinte preocupação: pode o júri absolver o feminicida, entendendo haver legítima defesa da honra, pois a mulher o traiu ou terminou o relacionamento amoroso contra a sua vontade? Em época de intensa luta contra a violência doméstica e familiar, vitimando particularmente as mulheres, seria um despautério tolerar tamanha injustiça, que, por certo, fere a dignidade humana. Nesse quadro, o STF proferiu decisão vedando o uso da legítima defesa da honra no processo criminal contra agressores de mulheres. Eis a ementa: “1. ‘Legítima defesa da honra’ na~o e', tecnicamente, legi'tima defesa. A traição se encontra inserida no contexto das relações amorosas. Seu desvalor reside no a^mbito e'tico e moral, na~o havendo direito subjetivo de contra ela agir com violência. Quem pratica feminici'dio ou usa de viole^ncia com a justificativa de reprimir um adultério não está a se defender, mas a atacar uma mulher de forma desproporcional, covarde e criminosa. O adulte'rio na~o configura uma agressão injusta apta a excluir a antijuridicidade de um fato ti'pico, pelo que qualquer ato violento perpetrado nesse contexto deve estar sujeito a` repressa~o do direito penal. 2. A ‘legi'tima defesa da honra’ e' recurso argumentativo/reto'rico odioso, desumano e cruel utilizado pelas defesas de acusados de feminicídio ou agresso~es contra a mulher para imputar a`s vi'timas a causa de suas pro'prias mortes ou leso~es. Constitui-se em ranc¸o, na reto'rica de alguns operadores do direito, de institucionalizac¸a~o da desigualdade entre homens e mulheres e de tolera^ncia e naturalizac¸a~o da viole^ncia dome'stica, as quais na~o te^m guarida na Constituic¸a~o de 1988. 3. Tese violadora da dignidade da pessoa humana, dos direitos a` vida e a` igualdade entre homens e mulheres (art. 1º, inciso III, e art. 5o, caput e inciso I, da CF/88), pilares da ordem constitucional brasileira. A ofensa a esses direitos concretiza-se, sobretudo, no esti'mulo a` perpetuac¸a~o da viole^ncia contra a mulher e do feminici'dio. O acolhimento da tese tem a potencialidade de estimular pra'ticas violentas contra as mulheres ao exonerar seus perpetradores da devida sanc¸a~o. 4. A ‘legi'tima defesa da honra’ na~o pode ser invocada como argumento inerente a` plenitude de defesa pro'pria do tribunal do ju'ri, a qual na~o pode constituir instrumento de salvaguarda de pra'ticas ili'citas. Assim, devem prevalecer a dignidade da pessoa humana, a vedac¸a~o a todas as formas de discriminac¸a~o, o direito a` igualdade e o direito a` vida, tendo em vista os riscos elevados e siste^micos decorrentes da naturalizac¸a~o, da tolera^ncia e do incentivo a` cultura da viole^ncia dome'stica e do feminici'dio. 5. Na hipo'tese de a defesa lanc¸ar ma~o, direta ou indiretamente, da tese da ‘legi'tima defesa da honra’ (ou de qualquer argumento que a ela induza), seja na fase pre'-processual, na fase processual ou no julgamento perante o tribunal do ju'ri, caracterizada estara' a nulidade da prova, do ato processual ou, caso na~o obstada pelo presidente do ju'ri, dos debates por ocasia~o da sessa~o do ju'ri, facultando-se ao titular da acusac¸a~o recorrer de apelac¸a~o na forma do art. 593, III, a, do Co'digo de Processo Penal. 6. Medida cautelar parcialmente concedida para (i) firmar o entendimento de que a tese da legi'tima defesa da honra e' inconstitucional, por contrariar os princi'pios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1o, III, da CF), da protec¸a~o a` vida e da igualdade de ge^nero (art. 5o, caput, da CF); (ii) conferir interpretac¸a~o conforme a` Constituic¸a~o aos arts. 23, inciso II, e 25, caput e para'grafo u'nico, do Co'digo Penal e ao art. 65 do Co'digo de Processo Penal, de modo a excluir a legi'tima defesa da honra do a^mbito do instituto da legi'tima defesa; e (iii) obstar a` defesa, a` acusac¸a~o, a` autoridade policial e ao jui'zo que utilizem, direta ou indiretamente, a tese de legi'tima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza a` tese) nas fases pre'-processual ou processual penais, bem como durante o julgamento perante o tribunal do ju'ri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento. 7. Medida cautelar referendada” (ADPF 779 MC-REF/DF, Plenário, rel. Dias Toffoli, 15.03.2021, v. u.). 

Foi nítida a preocupação do Supremo Tribunal Federal com a indevida teoria da legítima defesa da honra, que não pode dar abrigo a homicidas de mulheres, sob pretextos ilegais e até mesmo imorais, pois calcados em orgulho ferido, machismo e pretensa superioridade masculina, impondo regras de convívio e de relacionamento amoroso às suas parceiras. Por isso, mesmo prestigiando, como sempre fez o Pretório Excelso, os princípios norteadores da instituição do júri, consistentes na plenitude de defesa e na soberania dos veredictos, bem se sabe que nenhum princípio constitucional é absoluto, visto que todos precisam conviver harmonicamente, sob a regência do princípio maior da dignidade da pessoa humana. Por certo, havendo quesito genérico de absolvição, sem especificar qual caminho seguiu o Conselho de Sentença, a solução apontada pelo STF foi considerar inconstitucional a tese da legítima defesa da honra, que, a bem da verdade, sempre foi ilegal, pois não se encaixa com a devida adequação ao art. 25 do Código Penal e somente era acolhida no âmbito do Tribunal Popular, cuja visão é diversa da magistratura togada em muitos aspectos. Assim considerando, vedou-se a sua arguição em qualquer fase do processo, sob pena de nulidade do julgamento. Entretanto, há alguns pontos a destacar, pois certamente despertarão controvérsias e debates em torno do cenário do feminicídio em confronto com a plenitude de defesa do acusado, tudo isso contextualizado no Tribunal do Júri. São os seguintes: a) quando a decisão do STF indica seja vedado à defesa, à acusação, à autoridade policial e ao juízo que utilizem, direta ou indiretamente, a legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese), em qualquer fase da persecução penal, sob pena de nulidade do ato e do julgamento, pode-se apontar: a.1) na fase investigatória, em nenhuma hipótese, poderia a autoridade policial encaminhar a colheita da prova para o lado da legítima defesa da honra e, por via de consequência, não seria cabível um pedido de arquivamento do inquérito, por parte da acusação, reconhecendo uma excludente de ilicitude4. Mas, para argumentar, se ocorresse, estar-se-ia apontando uma ilegalidade no procedimento da autoridade policial e/ou do Ministério Público.

Não há como reconhecer nulidade na investigação, pois as falhas de procedimento ligam-se ao processo – assim tem sido a posição dominante nos tribunais e na doutrina. No entanto, tendo havido patente ilegalidade, cabe ao juiz invocar o art. 28 do CPP (ou, na nova redação dada pela lei 13.964/2019, suspensa por liminar do STF, ser o arquivamento reavaliado por instância superior do MP), enviando os autos ao Procurador-Geral de Justiça, que certamente corrigiria tal situação, indicando outro promotor a oferecer denúncia. Quem invocou a tese inconstitucional e ilegal deve responder no âmbito funcional; a.2) havendo denúncia e, após a fase de formação da culpa, torna-se incabível a absolvição sumária, por decisão judicial, com fundamento na legítima defesa da honra (excludente de ilicitude).5 Se ocorrer, cabe recurso do Ministério Público e o juiz, também, deve responder funcionalmente por acolher tese rejeitada e vedada pelo STF expressamente; a.3) atingindo o feminicídio a fase de julgamento em plenário do Tribunal do Júri, segundo nos parece, caso seja invocada pela defesa, nos debates, deve o juiz presidente interferir, com ou sem pedido do órgão acusatório, para solicitar ao defensor que cesse imediatamente aquela sustentação, orientando os jurados a desconsiderá-la, mencionando, inclusive, a decisão do Supremo Tribunal Federal; se houver insistência, deve-se dissolver o Conselho de Sentença, considerar o réu indefeso e intimá-lo a constituir outro defensor e, caso não o faça, será defendido por dativo ou por defensor público. Não há nenhum motivo para se prosseguir no julgamento, permitindo que os jurados decidam sobre algo manifestamente ilegal. Portanto, a única possibilidade de isso acontecer precisaria contar com a cobertura do juiz presidente, que não obstaria o prosseguimento e permitiria o julgamento. Cabe ao Ministério Público pleitear o registro em ata e, com certeza, o processo será anulado em superior instância. Entretanto, cremos viável que o magistrado responda funcionalmente pelo desrespeito à decisão do STF.  Note-se o registro extraído do voto do Ministro Gilmar Mendes: “vale destacar que eventual abuso das partes para ensejar dolosamente a anulac¸a~o de um Ju'ri a partir de tal motivo pode acarretar eventual sanc¸a~o, a depender do caso concreto e da ana'lise devidamente realizada pelo o'rga~o competente”. Essa antevisão do que pode ocorrer é realística.

A parte que utilizar a tese (defesa) com a complacência, por exemplo, da outra (acusação) e, igualmente, do juiz permite formar um quadro geral de desrespeito ao que foi expressamente vedado pelo STF, por unanimidade de seu Plenário. Logo, há uma infração funcional a ser apurada pelos órgãos da advocacia, do MP e/ou da magistratura. Obstar o julgamento é o caminho indicado, senão, poderia haver um plenário atrás de outro, com nulidades sucessivamente reconhecidas, sem chegar a um final, permitindo até mesmo a ocorrência da prescrição;

b) em particular, quando em plenário, a defesa do acusado pode camuflar a tese e levantar aos jurados todos os fatores inerentes à “legítima defesa da honra”, sem mencionar uma só vez essa designação. Para tanto, santifica o réu, demoniza a vítima, indica uma traição conjugal, menciona o amor do acusado pela ofendida e, com isso, cria todo o cenário para chegar à absolvição. Seria a forma indireta de levantar a vedada tese. Caberia o mesmo procedimento ao juiz presidente: advertir o defensor para que não prossiga e, havendo insistência, proceder como indicado no item a.3 supra. Assim perceberam os Ministros Barroso e Fux. O primeiro insere no seu voto que o art. 483, § 2º, do CPP, permite a absolvição por clemência. Assim, o argumento vedado pode ser levado aos jurados sub-repticiamente e por eles acolhido. O segundo destaca que nada impede que os jurados absolvam o réu acusado de feminicídio, por íntima convicção de que houve uma defesa da honra, mesmo não alegada expressamente pela defesa. Mas a matéria passa a um campo movediço, pois é muito comum em crimes passionais, envolvendo relacionamentos conjugais ou amorosos conturbados, mesmo sem qualquer referência à honra, que o defensor, valendo-se da plenitude de defesa, aprecie destacar todos os pontos positivos da personalidade e da conduta social do acusado, indicando ser a vítima uma pessoa repleta de defeitos graves e, com isso, espelhando que o réu “agiu bem” no caso concreto. Isto, também, estaria vedado? Seria uma forma de abordagem indireta da legítima defesa da honra? Assim não nos parece, pois não são somente nos casos passionais que a defesa do réu faz isso. Se o acusado honesto e bem-quisto em sociedade mata uma vítima, com antecedentes criminais e reincidente em grave crime doloso, essa situação será explorada no júri e não se pode sequer falar em honra. É preciso muita cautela para não asfixiar a defesa de réus somente porque foram acusados de feminicídio, pois isto seria uma grave lesão à plenitude de defesa e entraria em choque com julgados do próprio STF, que têm consagrado a intocabilidade da absolvição por clemência. De qualquer forma, uma absolvição nesse quadro pode levar à discussão sobre o caso concreto – se cabe falar em utilização indireta da tese vedada pelo Pretório Excelso;

c) além de estudar a instituição do júri, estivemos atuando como juiz do 3º. Tribunal do Júri da Capital de São Paulo durante 7 anos. Portanto, não somente pelos julgados que temos colhido ao longo dos anos, mas pela própria experiência, podemos afirmar, com segurança, que, depois dos notórios julgamentos de legítima defesa da honra, que foram anulados e novamente apreciados na década de 1980, com ênfase ao divisor de águas – o caso Doca Street – os defensores abandonaram a legítima defesa da honra, em sua maioria, para sustentar o homicídio privilegiado. Alega-se, como fundamento, ter sido o réu injustamente provocado pela vítima, que pode ter cometido uma traição conjugal, descoberta por ele, com o feminicídio na sequência, afinal o acusado estava sob domínio de violenta emoção (art. 121, § 1º, do Código Penal). Se essa tese for acolhida, embora não haja absolvição, o réu pode ser condenado a quatro anos de reclusão, em regime aberto, por exemplo. Ficará em liberdade (regime de prisão albergue domiciliar). Pode-se até comparar com a condenação de Doca Street, no primeiro julgamento: homicídio culposo (detenção de 2 anos, com sursis), quando se levantou expressamente a legítima defesa da honra, mas os jurados entenderam ter havido excesso culposo. Nada muito diferente. Se for uma tentativa de feminicídio, pode até redundar em uma pena idêntica de dois anos, com sursis. Portanto, nenhum cenário de legítima defesa da honra foi alegado, nem mesmo indiretamente, pois não há pedido de absolvição (essa tese seria uma excludente de ilicitude). Estaria havendo uma ofensa à dignidade da pessoa humana? A pena branda para um feminicídio encaixar-se-ia no contexto de confronto ao combate à violência contra a mulher? Do mesmo modo, assim não cremos, pois o STF, conhecedor do homicídio privilegiado, no campo passional, não o mencionou em momento algum. A concentração do julgado do Pretório Excelso deu-se no cenário de uma absolvição por legítima defesa da honra. Então, é preciso cautela do juiz para não obstar teses semelhantes, mas não correlacionadas, direta ou indiretamente, à legítima defesa da honra;

d) a legítima defesa da honra, embora tese incompatível com a excludente de ilicitude do art. 25 do Código Penal, por causa da nítida imoderação (não se mata uma pessoa par a defesa da honra), pode ser utilizada em qualquer caso, que não tenha a mulher por vítima de um homem, afinal, este foi o cenário vedado pelo STF de maneira bem clara. Entretanto, o homicídio justificado pela defesa da honra, tendo por vítima um homem, também não seria situação apta a provocar lesão à dignidade da pessoa humana? Pode-se invocar o julgado do Pretório Excelso para justificar a reforma desse veredicto, determinando novo julgamento pelo júri? Pode o órgão acusatório pleitear a nulidade da decisão, porque ofensiva à dignidade humana, em atenção ao que foi deliberado pelo Plenário do STF (quando a vítima for mulher)? Será questão a ser avaliada no futuro no caso concreto. Segundo nos parece, abolindo a tese da legítima defesa da honra no campo do feminicídio, louvando-se a dignidade da pessoa humana, ela precisaria ser completamente eliminada dos julgamentos do júri, mesmo quando a vítima for homem;

e) abrindo-se o debate em torno dos limites da plenitude de defesa, com a finalidade de evitar danos incontestes ao regente princípio da dignidade da pessoa humana, tornando inconstitucional a tese da legítima defesa da honra, no tocante ao feminicídio, outras questões igualmente relevantes podem surgir. Imagine-se o homicídio de uma vítima, com base em elementos nitidamente discriminatórios (racismo, homofobia, dentre outros). Pode o júri, instado por argumentos de supremacia racial ou de gênero, absolver o réu? Legalmente, inexiste qualquer tese a acompanhar esse veredicto, a não ser a tal clemência, porque os jurados podem nutrir sentimentos racistas ou homofóbicos. Parece-nos indevida essa absolvição, consagrando valores deturpados e negativos em prol dos autênticos valores que a sociedade democrática procura defender, como o respeito à igualdade dos seres humanos e à diversidade em vários setores do comportamento humano. Mantida a decisão do júri, vedando-se qualquer recurso por parte da acusação, está-se transmitindo para a sociedade a legitimidade do homicídio, com fundamento em elementos visivelmente discriminatórios, em ferida aberta contra o princípio da dignidade da pessoa humana.6

Em conclusão, a decisão do Supremo Tribunal Federal apontando a evidente inconstitucionalidade da tese da legítima defesa da honra, em particular no contexto do feminicídio, deve ser elogiada, em nome do princípio maior da dignidade da pessoa humana. Entretanto, não encerra o debate em relação às absolvições proferidas pelo Tribunal do Júri, quando ingressarem em temática similar, também envolvendo a dignidade humana, em outros cenários, devendo-se despertar a devida atenção para o entendimento de que o quesito genérico da absolvição não poderia ser impugnado pelo órgão acusatório, mesmo quando a tese de defesa tiver sido lançada em ata e o veredicto final, por conta disso, afrontar diretamente a prova dos autos. Segundo nos parece, até mesmo para conceder clemência o júri precisaria de uma base fática razoável, como indicada, por exemplo, pelo art. 66 do Código Penal (atenuante inominada): “a pena poderá ser ainda atenuada em razão de circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei”. Note-se ser possível avaliar se há, nos autos, prova indicativa de uma circunstância relevante, anterior ou posterior ao delito, mesmo não prevista expressamente na lei penal.

Sob outro prisma, para que a tão relevante decisão do STF tenha a devida amplitude e extensão torna-se cauteloso permitir que o órgão acusatório interponha apelação para questionar formatos alternativos de defesa, cujo propósito seja contornar a legítima defesa da honra, mas chegar ao mesmo resultado favorável para o feminicida. Ademais, como já expusemos, há hoje o predomínio de tese alternativa, que, também, avalia o quadro da honra masculina em confronto com a conduta sexual feminina, no cenário do feminicídio, consistente na figura da diminuição de pena do art. 121, § 1º, do Código Penal (domínio de violenta emoção após injusta provocação da vítima). Tem sido a tese substituta da legítima defesa da honra quando alguns homens matam as mulheres, em crimes passionais. Pode-se discutir se isto não seria capaz de atingir a dignidade da pessoa humana, enfraquecendo a luta para a eliminação da violência do homem contra a mulher. Ademais, resta sempre a questão em aberto: poderia o homem matar a mulher de hábitos sexuais devassos e ser absolvido pela clemência de um júri conservador e machista? Sem que a defesa tenha invocado a legítima defesa da honra, mas, apenas, apontado que o réu é um verdadeiro santo e a vítima, demonizada, merecia morrer. Esta porta defensiva estaria, igualmente, fechada? Seria considerada uma forma indireta de se invocar a legítima defesa da honra? Se as respostas forem afirmativas, está-se dando uma amplitude maior que a essência do julgado do Pretório Excelso, que não abordou o homicídio privilegiado em ponto algum. Por outro lado, se as respostas forem negativas estar-se-ia restringindo, sobremaneira, o princípio constitucional da plenitude defesa.

Enfim, parece-nos que muito debate advirá e a possibilidade do recurso para o órgão acusatório deveria permanecer viável para questionamentos ligados a decisões absolutórias completamente desvinculadas da prova constante dos autos e até mesmo desligadas da tese exposta pela defesa, inscrita em ata. Sempre defendemos a soberania do Tribunal do Júri e, na prática, quando há revisão criminal, temos sustentado que essa reavaliação se faça, igualmente, pelo Tribunal Popular – e não diretamente pelo tribunal togado. Porém, permitir que o júri profira uma única decisão, sendo ela absolutória, em caráter absoluto, vedando todo e qualquer recurso da acusação, deixando-se de prestigiar o também princípio constitucional do duplo grau de jurisdição, parece-nos muito rigoroso. Seria conceber absoluto prestígio à soberania não dos veredictos, mas de um único veredicto, como se os jurados nunca errassem. Adotar o meio-termo indicaria o mais adequado equilíbrio entre os princípios constitucionais, permitindo-se o recurso do órgão acusatório, quando envolvesse questionável e controversa absolvição, afinal, se provido o apelo, o acusado seria outra vez julgado pelo Tribunal Popular, dessa vez em caráter definitivo, havendo absolvição.

_________

1 Este artigo é fruto da novidade do tema, abordado com mais detalhes em nossa obra Tribunal do Júri, 9ª edição (no prelo).

2 A alegação de legítima defesa da honra ocorre, igualmente, em cenários onde o autor e a vítima são homens. Um político brasileiro, à época Governador de Estado, ouvindo um adversário proferir ofensas à pessoa de seu filho foi atrás do ofensor e deferiu-lhe vários tiros à queima-roupa. Por sorte, a vítima sobreviveu. O caso se tornou nacionalmente conhecido.

3 Há casos de mulheres que matam seus parceiros ou ex-parceiros por causa de traição ou rompimento de relacionamento amoroso, embora seja um número ínfimo, quando comparado aos feminicídios pela mesma razão.

4 Cuida-se de mera hipótese, pois não há notícia ou registro conhecido de que isto tenha efetivamente ocorrido, embora não fosse situação impossível da acontecer em qualquer Comarca do imenso Brasil.

5 Igualmente, não se tem notícia de decisão judicial nesse sentido, embora não seja impossível.

6 Há inúmeros casos concretos de grupos supremacistas raciais, que matam vítimas pertencentes a minorias discriminadas mundo afora (basta pesquisar na Internet). Seria admissível permitir a aplicação de clemência a esse tipo de homicida? Cremos que não.

Guilherme de Souza Nucci
Livre-docente em Direito Penal, Doutor e Mestre em Direito Processual Penal pela PUC-SP. Professor da PUC-SP, atuando nos cursos de Graduação e Pós-graduação (Mestrado e Doutorado). Desembargador na Seção Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo.

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