Embora direito e tecnologia estejam em evolução constante, essa transformação ocorre inegavelmente em ritmos diferentes: enquanto o primeiro anda de jegue, a segunda cavalga um corcel árabe. É começando com este paralelo do mundo animal – e seguindo o exemplo do filósofo que inspirou este artigo, embora de forma muito menos requintada – que tecemos algumas considerações acerca da dificuldade que nosso sistema jurídico ainda demonstra ao lidar com o fenômeno do Airbnb nas locações.
Em “Kant e l'ornitorinco”, Umberto Eco explica que, quando nos deparamos com um fenômeno desconhecido, reagimos por aproximação: buscamos aquele fragmento de conteúdo, já presente em nosso mapa mental de conceitos, que parece se amoldar à informação nova. Com brilhantismo, o semiólogo italiano ilustra as falhas e limitações desse processo cognitivo ao explorar o ornitorrinco e a dificuldade inicialmente enfrentada pelos zoólogos para classificar a espécie.
A metáfora do ornitorrinco, pensada para a ciência do conhecimento, é útil ao direito – o que era de se esperar, dada a relação basilar entre ambas as áreas – e é perfeita para ilustrar as complexidades que o jurista enfrenta ao lidar com as novas tecnologias, na tentativa de identificar a regulação aplicável a fenômenos inéditos. Assim como ocorre com as novas tecnologias e o direito, o ornitorrinco impôs desafios no campo da taxonomia, dada a dificuldade de enquadrá-lo no sistema preexistente: uma toupeira venenosa com bico de pato, nadadeiras e que secreta leite. Um verdadeiro pesadelo para o biólogo da época.
Talvez não seja mera coincidência o fato de que as novas tecnologias, a exemplo do que ocorreu com o simpático ornitorrinco, ao menos tradicionalmente, não costumam ser bem recebidas pelo paradigma científico vigente. Costuma haver um grande afã dos operadores do direito no sentido de encaixá-las à força em normas criadas em um contexto completamente distinto, quase que em sentimento de negação, primeiro estágio do luto, diante da inovação que presenciam. Basta observar que as criptomoedas foram enquadradas – na verdade continuam sendo, até hoje – nas mais variadas naturezas jurídicas, o que, ao final, gera evidente insegurança no seu manuseio.
Não é à toa que as normas mais modernas e bem sucedidas em tema de inovação apostam em abordagens completamente diferentes do problema: ou buscam a adoção de conceitos mais abertos e princípios, mantendo como foco a essência do propósito da regulamentação, ao invés de torná-la um fim em si mesma – cite-se, como exemplo, a LGPD –, ou investem no experimentalismo (normas emanadas pela CVM, Susep e Bacen), reconhecendo que é preciso flexibilidade para regular e compreender novos fenômenos sociais.
Para aqueles que não têm acompanhado o tema com tanta proximidade é bom dizer que, sim, o Airbnb ainda sofre com essa falta de compreensão e com a tentativa de encaixá-lo em um paradigma anacrônico. A lógica binária, entre locação residencial e comercial, ainda limita a visão de muitos operadores do direito. Tratam o ornitorrinco ora como um pato, ora como uma toupeira.
Não é porque o negócio de locação residencial hoje tem uma dinâmica mais ágil e baseada no sistema de reputação da economia compartilhada que se tornou comercial. Um locador bem-sucedido e sortudo, no mundo offline, poderia alugar por temporadas seus imóveis em uma velocidade semelhante ao que ocorre hoje por meio do Airbnb. Hoje, no mundo online, todos podem fazer isso com um investimento baixíssimo. O ornitorrinco, embora venenoso, não é uma serpente ou um escorpião. Uma vez que a tecnologia é ferramenta de automatização e aceleração de processos, não há motivo para encarar a atividade que dela se utiliza como uma aberração.
Neste apego a um paradigma científico anterior, só há perdedores. O indivíduo, pois fica tolhido de alugar um imóvel por temporada a um preço justo e obter uma complementação de renda. A cidade, uma vez que a assimetria informacional para a contratação de uma locação impede o desenvolvimento e até mesmo a revitalização de determinados bairros. O país, porque deixa de atrair turistas do mundo inteiro que já estão acostumados com a facilidade do aluguel via plataforma. Nesta zona de penumbra, cabe ao Poder Judiciário moldar o direito para além da previsão mecânica da legislação, iluminando o caminho para inovação, sem estancá-la.