(...) No entanto a primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que não matarás. Ela é a minha maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim.
Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina – porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.
Essa justiça que vela o meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais. (...)
O trecho acima integra a afiada crônica de Clarice Lispector denominada Um grama de radium – Mineirinho, esta que foi publicada originalmente na antiga revista carioca Senhor1. Vinda ao público no mês de junho de 1962, a crônica narra o espanto de Clarice com a forma da morte do assaltante carioca, José Miranda Rosa - apelidado de Mineirinho por conta de seu estado natal -, assim como cede ao leitor reflexões de última grandeza sobre justiça, pena, vingança, vida, morte e condição humana.
Mineirinho, nome este que participa do título do texto da literata, tornou-se um personagem famoso, controvertido e singular de sua época. Em razão de suas infrações perigosas, figurou-se como um dos assaltantes mais procurados pelas forças de segurança do Estado do Rio de Janeiro nas décadas de 50 e 60. Acredita-se que mais de 300 policiais participaram das investigações e buscas do "Cangaceiro do Asfalto".
No dia primeiro de maio de 1962, Mineirinho foi localizado em um matagal com treze tiros de metralhadora alojados em seu corpo. O jornal Diário Carioca2 escreveu sobre o fato: "Com uma oração de Santo Antônio no bolso e um recorte de jornal sobre seu último tiroteio com a polícia, o assaltante José Miranda Rosa, o Mineirinho, foi encontrado morto no Sítio da Serra, na Estrada Grajaú-Jacarepaguá, com três tiros nas costas, cinco no pescoço, dois no peito, um no braço esquerdo, outro na axila esquerda e o último na perna esquerda, que estava fraturada, dado à queima-roupa, como prova a calça chamuscada."
Anos depois da publicação da crônica e da morte de Mineirinho, em entrevista à TV Cultura, a escritora Clarice Lispector voltou a falar sobre o caso e declarou: "qualquer que tivesse sido o crime dele, uma bala bastava. O resto era vontade de matar. Era prepotência".
Pelos relatos da época, nota-se que a morte de Mineirinho foi invasiva e abundantemente noticiada pelos veículos de comunicação da época; comemorada por centenas de policiais; festejada por muitos; e perturbante/preocupante/grave para outros, incluindo aqui a escritora brasileira mais aclamada do século XX. Considerado como "Robin Hood Carioca" por parte da comunidade do Morro da Mangueira, Mineirinho "correu" para o crime, se tornou celebridade3 do crime e viu sua vida terminar – sem aplausos e com treze balas de metralhadora.
Décadas depois da morte de Mineirinho, neste corrente ano, o Brasil voltou a assistir um filme popularmente conhecido. Dessa vez, o personagem é Lázaro Barbosa, apontado como autor de inúmeros crimes – como homicídio, roubo, estupro e sequestro – e responsável por espalhar medo no Brasil e, especificamente, no Estado de Goiás.
Apelidado de "serial killer do DF", Lázaro mobilizou um grande contingente de policiais à sua caçada por vinte dias. Após uma suposta troca de tiros com policiais, nos arredores de Águas Lindas de Goiás, o criminoso foi abatido com pelo menos vinte tiros (entre disparos de pistola e fuzil) e três especificamente em sua cabeça.
Lázaro, assim como Mineirinho, recebeu uma gigantesca atenção dos veículos de comunicação; a forma de sua morte foi comemorada por policiais – com direito à selfie – e celebrada por muitos. Igualmente, a condução e o desfecho do caso causaram preocupações para uma parte da sociedade, incluindo especialistas em segurança pública.
Numa perspectiva sintética, o caso Lázaro contém os mesmos ingredientes de Mineirinho: um criminoso ativo; culturas de criação do medo e do espetáculo; mídia com ênfase em melodramaturgia; e manifestações justiceiras e punitivistas que influenciam diretamente as ações daqueles encarregados pela aplicação da lei. Resultado: uma morte e várias balas.
Mineirinho e Lázaro não são casos isolados. Num país historicamente pobre, desigual, sem educação e que se desenvolveu por meio de autoritarismos e violências, como é o caso do Brasil, as tonalidades que alimentam esses quadros se repetem com frequência. Noutro giro, as meditações da crônica de Clarice vão e vêm, como chuvas de um eterno verão. Passam-se os anos e as palavras de Clarice não saem de moda – sua obra continua irretocável e atual.
Como observado por Clarice, a indignação ou a crítica para com a forma em que a justiça é praticada não significa consequentemente a concordância ou até mesmo a relativização de atos cruéis cometidos por criminosos. É preciso ter discernimento para separar o joio do trigo – como na parábola de Jesus4. É necessário ter coragem para ir além da superfície, sair do raso e afastar a dramatização do real. Faz-se imprescindível se valer de lentes multifocais que auxiliam na compreensão dos fatos e dos sistemas envolvidos. Friedrich Nietzche bem alertou5: "Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você".
O caso Lázaro pode ser examinado por vários ângulos: estatal/tecnocrático, histórico, social, político, econômico, jurídico, filosófico e religioso. Os objetos (violência, sociedade, estado, comunicação, poder, direito, pena, justiça etc) entrelaçam-se inevitavelmente com a complexidade da vida humana. A busca pela compreensão razoável desse caso – e de outros tantos – exige um aprofundamento interdisciplinar, diante de suas variáveis e interrogações pré-estabelecidas.
A punição dada à Lázaro foi a morte, embora ela não esteja prevista em nosso ordenamento jurídico. O nosso ordenamento contempla as figuras da legítima defesa e do estrito cumprimento de dever legal, artifícios dos quais o Estado se utiliza para admitir a morte de criminosos em decorrência de ações policiais.
Consoante disposição do artigo 25 do Código Penal, entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. Já o estrito cumprimento de dever legal é a prática de um fato tipificado por um agente público dotado de antijuricidade (exclusão de ilicitude). O parágrafo único do artigo 23, no entanto, prevê que o agente deve responder pelo excesso doloso ou culposo.
Dada a quantidade de tiros empregada na ação policial que culminou na morte de Lázaro, algumas perguntas exsurgem como inevitáveis: (i) Lázaro era um combatente bem treinado, armado e capaz de enfrentar sozinho todo aquele contingente de policiais? (ii) os policiais responsáveis pela operação possuíam dificuldades para mirar e atirar? (iii) quantos tiros o ser humano é capaz de receber e continuar resistindo? Para justificar a quantidade de tiros empregada na operação em tela, Lázaro foi Rambo6 ou a polícia foi ineficiente e excessiva. Um tiro bastava, já diria Clarice - o resto era vontade de matar.
Para além da questão operacional, a morte de um acusado prejudica as próprias investigações. Como exemplo, no caso Lázaro, após sua morte, foram encontradas uma carta e a quantia de R$ 4.400,00 em seu bolso, o que indica que ele vinha recebendo ajuda, bem como que existiam outras pessoas envolvidas na chacina. Existe a possibilidade de que Lázaro seria apenas um executor, mas não o mandante.
A Delegada Rafaela Azzi, responsável pelo caso, apontou que a linha de investigação concluiu que Lázaro não agiu sozinho e que, por trás dos assassinatos, havia uma organização criminosa, que conta com a participação de empresários, fazendeiros e políticos. No entanto, a palavra de Lázaro não mais existirá. E aos que almejam que a justiça seja efetivamente feita, não se enganem, não será.
A justiça e o próprio Estado Democrático de Direito pressupõem que exista o devido processo legal e o tratamento igualitário a todos os acusados. Portanto, a partir do momento em que os suspeitos de serem os mandantes são liberados após realização de audiência de custódia e o outro acusado é alvejado, não estamos falando de justiça, mas sim de manutenção de uma estrutura de poder. Sabe-se muito bem quais vozes serão ouvidas e quais vozes serão silenciadas. E, diante disso, quem escolhe quem deve morrer?
A verdade é que se a justiça é feita por homens, já se tem um grave problema. Homens são dotados de emoção e muito provavelmente não se estará falando de justiça, mas sim de vingança. E é por isso que existem regras. Mas se essas regras são descumpridas pelos dois lados, já não estamos todos no mesmo lugar? Quem decide quando e em face de quem essas regras merecem ser flexibilizadas?
A observância às regras é inevitavelmente o campo de sustentação de um Estado de Direito que exerce seu poder por meio da racionalidade da lei. E é necessariamente no sistema penal em que o Estado se manifesta - o jus puniendi – por meio dessa racionalidade, a fim de evitar que a intervenção repressiva se converta em mal maior que aquele causado pela conduta que a ensejou. Retirados os limites racionais da lei, o poder se faz criminoso, rompendo com as bases que legitimam e estruturam o Estado de Direito e a sua justiça respectiva. Nessa prática, os papéis são alterados e subjugados: o criminoso atingido pela intervenção repressiva transforma-se em vítima, enquanto o Estado, em criminoso forte e destemido.
Nesse mesmo contexto, não é à toa que a guerra às drogas acontece nas periferias e não num ambiente elitizado. Não é à toa que um jovem negro periférico é punido por portar um frasco de desinfetante e os famosos autores de "crimes de colarinho branco" são absolvidos ou sequer julgados, embora o custo financeiro do segundo para a sociedade seja muito maior que o primeiro.
O fato é, portanto, que o grau de tutela penal não depende da gravidade do crime, mas sim do status, do rótulo e da etiqueta de criminoso que é distribuída desigualmente entre os cidadãos. Esse é o entendimento do criminólogo Alessandro Baratta7, que leciona: "a criminalidade é um bem negativo, distribuído desigualmente conforme a hierarquia dos interesses fixada no sistema socioeconômico e conforme a desigualdade social entre os indivíduos."
Assim, se nos pautarmos pelos casos destacados pela mídia e nos tranquilizarmos com o assassinato de um criminoso, seremos pra sempre os sonsos essenciais de Clarice Lispector. Dormiremos sob a falsa sensação de paz, enquanto os verdadeiros autores e as verdadeiras causas não serão atingidos. Clamaremos por punições cada vez mais severas e continuaremos ver as taxas de criminalidade aumentarem. Comemoraremos o assassinato de pessoas e teremos uma sociedade cada vez mais doente e criminosa, sem que qualquer problema tenha sido efetivamente resolvido.
E é desses sonsos que os donos do poder precisam. Porque eles continuarão enriquecendo às custas dos menos privilegiados. Porque eles continuarão sendo inocentados às custas de milhares de vidas perdidas para que eles se mantenham onde estão.
Como dito no início desse texto, nós precisamos tirar as discussões do raso. E não é necessário ter grandes feitos epistemológicos pra entender que os países que conseguiram diminuir drasticamente as taxas de criminalidade são aqueles que investiram em políticas públicas de saúde, educação, moradia, emprego e renda. Políticas estas que são pouco valorizadas em nosso país, pois sua eficácia só pode ser verificada a longo prazo. Em outras palavras, não rende apelo eleitoral. É mais fácil insistir nas figuras de bode expiatório e se utilizar disso como vitória – ao invés de propor mudanças estruturais -, como sinônimo de que algo esta sendo feito em prol da segurança dos cidadãos, quando na verdade sabemos que estamos todos perdendo.
Enquanto não acordarmos pra isso, continuaremos elegendo aqueles que bradam que "bandido bom é bandido morto" enquanto convivem com eles dentro de suas próprias casas. Continuaremos acreditando em soluções simplistas para problemas complexos, fechando os olhos para o que deve ser visto. E o resultado disso nós já sabemos.
Causa espanto, assombro e apreensão assistirmos a crescente aderência por parte das autoridades públicas às manifestações midiáticas e acríticas que tumultuam e tensionam pela mutação do sistema penal para um instrumento de vingança privada – um reacionarismo milenar. O Estado não pode se confundir com o criminoso. O Estado tem padrões de racionalidade a serem observados. O Estado não deve atropelar garantias fundamentais. O Estado deve alcançar os fins constitucionalmente estabelecidos.
Assim como Clarice, o que queremos é uma justiça que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento. O que queremos, portanto, é muito mais áspero e mais difícil: queremos o terreno8.
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1 Criada pelo jornalista brasileiro Nahum Benhamin Sirotsky, a Revista Senhor circulou inicialmente no Rio de Janeiro entre os anos de 1959 e 1964 e contou com nomes de peso nas suas páginas, como Clarice Lispector, João Guimarães Rosa, Paulo Francis, Sérgio Magalhães Gomes Jaguaribe, Glauco Rodrigues e Carlos Scliar.
2 Diário Carioca, 1 de maio de 1962.
3 Sob os cuidados do diretor Aurélio Teixeira, a biografia de Mineirinho ganhou adaptação para o cinema em 1967 com o título "Mineirinho Vivo ou Morto".
4 Mateus 13:24-30
5 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad.: Paulo César de Souza. - 1ª ed. - São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 70.
6 Rambo é uma série de filmes baseada no romance "First Blood", de 1972, escrito por David Morrell, mas que tornou-se célebre pelos filmes protagonizados por Sylvester Stallone.
7 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e crítica do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 101.
8 LISPECTOR, Clarice. "Mineirinho" em Todos os contos. Editora Rocco. 1ª Ed. 2016. Página 390.