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Direito do médico em renunciar o atendimento a paciente

A falta de respeito, de confiança ou de harmonia (além de agressividade do paciente e seus familiares) são justificativas comuns, porém extremamente plausíveis para que o médico decida pôr fim à relação até então mantida com o paciente, o que deve ser avaliado de maneira individual em cada caso.

10/9/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Não há dúvidas de que a relação existente entre o médico e seu paciente é regida por diversos princípios éticos, dentre os quais o da confiança recíproca. Deve, portanto, haver entre ambos a certeza de que a relação profissional médico-paciente seja pautada por respeito, transparência e fidúcia, à semelhança do que ocorre com outros profissionais.

Tais princípios éticos contribuem para que o profissional da medicina exerça o ato médico de forma livre e independente e que o paciente receba o tratamento adequado e tenha seu bem-estar (saúde) priorizado, respeitando também a autonomia deste. 

No exercício da medicina, respeitada a autonomia profissional, a regra geral é a assistência à saúde do paciente, em favor do qual o médico atuará com respeito, zelo, e exímia capacidade profissional, assumindo a responsabilidade pelo ato médico praticado em prol da saúde do paciente. 

Há preceitos que devem ser observados pelo médico, como, por exemplo, não abandonar paciente sob seus cuidados, jamais afastar-se de suas atividades sem deixar outro médico com incumbência de atender seus pacientes internados ou estado grave, bem como é vedado recusar atendimento na ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente. 

Percebe-se, pois, que a relação profissional entre médico e paciente é baseada na priorização da saúde deste, respeitada sempre a autonomia profissional. A propósito, o Código Penal prevê o crime de omissão de socorro (art. 135), conduta que, eventualmente e em situações pontuais, pode ser praticada pelo médico em determinadas circunstâncias concretas.   

Embora o Conselho Federal de Medicina já tenha decido que comete “delito ético” o médico que não preza pelo bom relacionamento com o paciente1, parece que todo e qualquer relacionamento, precisa ser analisado em uma via de mão dupla, devendo haver respeito e urbanidade recíprocos.  

Há situações em que a relação médico-paciente, por diversas razões, pode ser rompida, seja por vontade do paciente ou mesmo por vontade do médico2. Cuida-se de um direito potestativo tanto do médico, quanto do paciente. Aliás, no âmbito da advocacia, também assiste ao advogado direito de renunciar o patrocínio do cliente (§ 3º do art. 5º do Estatuto da Advocacia – lei 8.906/1994), da mesma maneira que o cliente pode revogar a procuração concedida ao advogado.  

A propósito, na arena médica, quando o paciente não mais deseja continuar sob os cuidados de determinado médico, assiste-lhe o direito de obter laudo, de ter acesso ao seu prontuário e, ainda, de obter explicações necessárias à sua compreensão. Deve ainda o médico fornecer a outro médico informações sobre o quadro clínico de paciente, desde que autorizado por este ou por seu representante legal.

No que se refere ao médico, também lhe assiste o direito de renunciar o atendimento a paciente, conduta que é fruto de sua autonomia profissional. O item VII da Capítulo I (Princípios Fundamentais) do Código de Ética Médica assegura ao médico o direito de não ser “obrigado a prestar serviços (...) a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente”.

Especialmente no que toca a este momento em que o profissional da medicina opta por não mais dar continuidade ao tratamento de determinado paciente, é imprescindível obedecer a requisitos estabelecidos de forma clara no Código de Ética Médica, em seu artigo 36, §1º, bem como no inciso VII, Capítulo I.

Segundo a referida norma, na hipótese de ocorrer fatos que inviabilizem a continuidade da relação médico-paciente, inclusive no que toca ao bom relacionamento entre ambos, deve o profissional que optar por interromper o atendimento notificar previamente o paciente ou seu representante legal. É importante que o médico, em sua manifestação/registro, não cometa “excesso de linguagem”, devendo expor, de maneira objetiva, a razão pela qual não dará continuidade ao tratamento em relação ao paciente. 

Nessa comunicação – que preferencialmente deve ser feita por escrito, de maneira que assegure a comprovação de recebimento pelo paciente – o profissional deve repassar ao paciente as informações que julgue necessárias para que o próximo profissional que for assisti-lo tenha ciência das especificidades do caso e possa dar continuidade ao tratamento de maneira adequada.

É relevante destacar ainda, que o médico deve fornecer ao paciente os documentos relativos ao caso, como prontuário médico, laudos e exames que eventualmente se encontrem em seu poder, dentre outros.

Tal rompimento de relação não pode ocorrer motivado pelo simples fato de o paciente ser portador de moléstia ou doença crônica incurável, cabendo ao profissional assegurar que o paciente receba o tratamento que julgue pertinente, ainda que meramente paliativo.

Relembre-se que, em casos de ausência de outro profissional ou emergência, deve o médico priorizar a vida do paciente, em respeito à própria natureza de sua função, que tem por princípio básico zelar pela vida humana.

Ademais, essa ruptura deve ser pautada por premissas básicas de toda relação contratual, notadamente a boa-fé, civilidade, bem como o sigilo profissional que rege todo o relacionamento entre médico e paciente do início e, inclusive, ao fim. 

Evidente, portanto, que não há qualquer obrigatoriedade para que o vínculo profissional havido entre médico e paciente seja mantido nos casos onde uma das partes não mais se sente confortável com a relação profissional médico-paciente. Embora se reconheça a importância dos cuidados médicos ao paciente, seria ilegítimo e contraproducente exigir do profissional da medicina a prática de ato médico em pacientes onde a relação profissional encontra-se esgarçada. 

A falta de respeito, de confiança ou de harmonia (além de agressividade do paciente e seus familiares) são justificativas comuns, porém extremamente plausíveis para que o médico decida pôr fim à relação até então mantida com o paciente, o que deve ser avaliado de maneira individual em cada caso.

É certo que, caso o médico se assegure das precauções aqui recomendadas, se resguardará de eventual responsabilização civil, administrativa ou mesmo penal, bem como evitará questionamentos, processos, ou punições ético-disciplinares. 

_________

1 Processo 003452/2017. Recurso ao PEP. Pleno do Tribunal Superior de Ética Médica do Conselho Federal de Medicina. Relator: Dalvédio de Paiva Madruga. Acórdão publicado no DOU nº 98, de 23/05/2019, seção 1, página 75. 

2 Não será objeto de análise no texto a “recusa terapêutica” por pacientes e a “objeção de consciência” na relação médico-paciente.

Ruana Arcas
Advogada e sócia do Escritório João Bosco Filho Advogados.

João Bosco Won Held Gonçalves de Freitas Filho
Professor de Direito e advogado do escritório João Bosco Filho Advogados.

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