Migalhas de Peso

A revogação da tutela de urgência e a responsabilidade do beneficiário

O objetivo deste texto é analisar a responsabilidade do autor em caso de tutela de urgência revogada e boa-fé decorrente da dupla conformidade.

6/9/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Este ensaio tem por objetivo analisar as variáveis acerca da responsabilidade decorrente da tutela de urgência posteriormente revogada e o direito ao ressarcimento, passando pela natureza da decisão judicial e pelos entendimentos do Superior Tribunal de Justiça sobre o assunto.

No tema, é importante observar que, em situações que tradicionalmente já estavam previstas desde o CPC/73, há possibilidade de formação de títulos executivos em favor do réu que, na fase de satisfação da obrigação lá contida, passa a ser considerado exequente.

Neste mesmo sentido, diversas situações jurídicas previstas no atual CPC também estabelecem a possibilidade de constituição de títulos executivos em favor do réu originário, gerando, inclusive, liquidação e cumprimento de sentença com a inversão da posição jurídica originária (vg. art. 302, parágrafo único, do CPC/15 com redação que lembra aquela prevista no art. 811, parágrafo único, do CPC/73).

Antes de mais nada, devem ser separadas duas hipóteses distintas: aquelas em que o réu deve promover demanda ou provocação judicial própria e as situações em que, pela própria natureza do título e do requerimento provisório pleiteado pelo autor, há certificação de existência de direito em favor do demandado.

No primeiro grupo, poder-se-á indicar como exemplos a reconvenção (art. 343 do CPC/15) e o pedido contraposto dos juizados especiais (art. 31, da Lei 9.099/95). No segundo, os exemplos são as tutelas provisórias de urgência não confirmadas – ou as demais situações previstas no art. 302, do CPC/15.

Destarte, nos casos envolvendo a tutela provisória de urgência posteriormente revogada, em regra há a inversão dos polos originários, visando o ressarcimento dos danos causados àquele que suportou os efeitos da ordem judicial precária. A fórmula a ser apresentada nos casos de provisoriedade do título é simples: risco/proveito X responsabilidade. 

A 2ª Seção do STJ, após a afetação, enfrentou a questão no julgamento do REsp 1.548.749/RS (Rel. Min. Luis Felipe Salomão – J. em 13/04/2016 - DJe 06/06/2016), consagrando expressamente que: 

“Em linha de princípio, a obrigação de indenizar o dano causado pela execução de tutela antecipada posteriormente revogada é consequência natural da improcedência do pedido, decorrência ex lege da sentença, e, por isso, independe de pronunciamento judicial, dispensando também, por lógica, pedido da parte interessada. A sentença de improcedência, quando revoga tutela antecipadamente concedida, constitui, como efeito secundário, título de certeza da obrigação de o autor indenizar o réu pelos danos eventualmente experimentados, cujo valor exato será posteriormente apurado em liquidação nos próprios autos”. 

Portanto, a constituição de título executivo em favor do réu originário é consequência natural da revogação da tutela de urgência anteriormente concedida. Aliás, no RESp 1.770.124/SP(Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze – J. em 21.05.2019, DJe de 24.05.2019), a 3ª Turma do Superior enfrentou situação em que a parte, beneficiada pelos efeitos da tutela provisória, requereu a desistência da ação e, uma vez homologada e extinto o processo sem resolução de mérito, este pronunciamento constituiu título executivo ao réu originário visando o ressarcimento dos valores despendidos para cumprimento da ordem judicial. Vale transcrever parte da Ementa do Acórdão em questão: 

“RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. DESISTÊNCIA DA DEMANDA APÓS A CONCESSÃO DA TUTELA PROVISÓRIA. EXTINÇÃO DO FEITO, SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA FORMULADO PELA PARTE RÉ PLEITEANDO O RESSARCIMENTO DOS VALORES DESPENDIDOS EM RAZÃO DO DEFERIMENTO DA TUTELA PROVISÓRIA. CABIMENTO. DESNECESSIDADE DE PRONUNCIAMENTO JUDICIAL PRÉVIO NESSE SENTIDO. OBRIGAÇÃO EX LEGE. INDENIZAÇÃO QUE DEVERÁ SER LIQUIDADA NOS PRÓPRIOS AUTOS. ARTS. 302, CAPUT, INCISO III E PARÁGRAFO ÚNICO, E 309, INCISO III, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015. REFORMA DO ACÓRDÃO RECORRIDO QUE SE IMPÕE. RECURSO PROVIDO. (...) 2. O Código de Processo Civil de 2015, seguindo a mesma linha do CPC/1973, adotou a teoria do risco-proveito, ao estabelecer que o beneficiado com o deferimento da tutela provisória deverá arcar com os prejuízos causados à parte adversa, sempre que: i) a sentença lhe for desfavorável; ii) a parte requerente não fornecer meios para a citação do requerido no prazo de 5 (cinco) dias, caso a tutela seja deferida liminarmente; iii) ocorrer a cessação da eficácia da medida em qualquer hipótese legal; ou iv) o juiz acolher a decadência ou prescrição da pretensão do autor (CPC/2015, art. 302, caput e incisos I a IV) (...)”. 

Não se deve esquecer que, pela leitura do art. 515, I, do CPC, a constituição de título executivo judicial depende do conteúdo decisório, pelo que eventual extinção do processo sem resolução de mérito, ou mesmo a improcedência do pedido, pode gerar obrigação a ser cumprida de forma invertida. Como bem ressaltou o Min. Marco Aurélio Bellizze, no voto pelo provimento do RESp 1.770.124/SP, “a obrigação de indenizar a parte adversa dos prejuízos advindos com o deferimento da tutela provisória posteriormente revogada é decorrência ex lege da sentença de improcedência ou de extinção do feito sem resolução de mérito, como no caso, sendo dispensável, portanto, pronunciamento judicial a esse respeito, devendo o respectivo valor ser liquidado nos próprios autos em que a medida tiver sido concedida, sempre que possível, conforme determina o parágrafo único do art. 302 do CPC/2015”. 

Logo, nos casos de medidas judiciais precárias (cumprimento provisório – arts. 520-522, do CPC/15 e tutela provisória de urgência) o resultado final da demanda poderá configurar inversão de polos originários, com a liquidação e execução nos próprios autos originários. 

Há, contudo, variável a ser analisada quanto ao automático direito ao ressarcimento ou à repetibilidade da verba recebida. A pergunta a ser feita é a seguinte: será que também incide o art. 302, do CPC nos casos em que, independentemente da vontade do beneficiado pela tutela provisória, o processo é extinto? 

Em recente julgamento também da 3ª Turma (Rep 1.725.736 – Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino – J. em 27.04.2021 – DJe 21.05.2021), a Corte da Cidadania analisou se a extinção do processo sem resolução de mérito, com revogação da tutela de urgência envolvendo prestação de saúde, em decorrência do falecimento da beneficiada, constitui título executivo visando o ressarcimento dos valores despendidos com fármacos, alimentação e materiais hospitalares. 

Esta é a Ementa do Acórdão: 

“RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. SAÚDE SUPLEMENTAR. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C.C. PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DA TUTELA. SERVIÇO DE HOMECARE. TUTELA DEFERIDA. PACIENTE PORTADORA DE MAL DE ALZHEIMER. MORTE DA AUTORA NO DECORRER DO PROCESSO. EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO. REVOGAÇÃO DA TUTELA ANTECIPADA. EFEITOS EX TUNC. RESTITUIÇÃO DOS VALORES DESPENDIDOS COM FÁRMACOS, ALIMENTAÇÃO E MATERIAIS HOSPITALARES. DESCABIMENTO. BOA-FÉ DA DEMANDADA EVIDENCIADA. 1. O cerne da controvérsia situa-se em torno do pedido de restituição dos gastos suportados para o cumprimento da decisão interlocutória concessiva da tutela provisória à parte autora, tendo em vista a posterior revogação da medida quando da prolação da respectiva sentença. 2. Em relação aos benefícios previdenciários complementares, o posicionamento da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que há direito à devolução dos valores percebidos, em razão da revogação da antecipação dos efeitos da tutela pela sentença de mérito. 3. Entretanto, a repetibilidade da verba recebida, com base em antecipação de tutela, deve ser examinada sob o prisma da boa-fé objetiva. 4. Consoante destacado pelo acórdão recorrido, na hipótese dos autos, não há evidência de conduta contrária à boa-fé na postura da paciente falecida ou de sua família. 5. A revogação da antecipação de tutela não decorreu da inexistência do direito da postulante, tendo o processo sido extinto apenas em razão da morte da demandante e a inexistência de conteúdo condenatório que aproveitasse aos herdeiros da requerente, pois o objeto da demanda era apenas a concessão de assistência à saúde em favor da paciente falecida. 6. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E DESPROVIDO”. 

Como se pode observar, a discussão travada neste RESp refere-se à restituição dos valores em razão da posterior revogação da tutela provisória quando prolatada a sentença de extinção do processo em razão do falecimento da autora. Alguns destaques deste julgado  que são importantes para a compreensão das múltiplas variáveis interpretativas que o assunto provoca: a) no REsp 1.555.853/RS (Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva – J. em 10/11/2015, DJe 16/11/2015), a 3ª Turma entendeu que, em regra, deve ocorrer a repetibilidade da verba previdenciária recebida antecipadamente, com revogação posterior da decisão judicial, o que deve ser examinado sob o prisma da boa-fé objetiva; b) a 2ª Seção do STJ, na apreciação do já mencionado RESp n.º 1.548.749/RS (Rel. Min. Luis Felipe Salomão – J. em 13/04/2016 - DJe 06/06/2016), também firmou o entendimento de que os valores recebidos de forma precária são legítimos, enquanto vigente o título judicial antecipatório, o que caracteriza a boa-fé do autor; c) no caso concreto, não houve a demonstração da má-fé da autora, que faleceu no curso da demanda e que ocasionou a extinção do processo sem resolução de mérito; d) a revogação da tutela provisória não decorreu de inexistência de direito e sim em razão de seu falecimento, pelo que está demonstrada a sua boa-fé; e) No EREsp n.º 1.086.154/RS (Rel. Min. Min. Nancy Andrighi, julgado em 20/11/2013, DJe 19/03/2010), a Corte Especial do STJ firmou entendimento de que a dupla conformidade entre a sentença e o acórdão gera a estabilização da decisão de 1ª Instância, com a legítima expectativa de que o beneficiado é titular do direito reconhecido na sentença e confirmado pela Corte local. 

Assim, neste caso envolvendo o REsp 1.725.736 – Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino – J. em 27.04.2021 – DJe 21.05.2021), o Exmo Relator deixou claro que “deve ser reconhecida a irrepetibilidade de parcelas pagas por decisão precária, em face da dupla conformidade entre sentença e acórdão, visto que o Tribunal de origem não reformou o teor decisório de primeiro grau”.

 Como se pode observar, a Corte da Cidadania vem interpretando com variações a existência automática do direito ao réu no que respeita à (ir)repitibilidade das parcelas pagas em decorrência de tutela provisória posteriormente atingida por decisão final em sentido contrário. 

Importante destacar, aliás, que o Tema 692/STJ, com Tese firmada em 2015 (DJe de 13.10.2015) pela 1ª Seção no REsp 1.401.560/MT (“a reforma da decisão que antecipa a tutela obriga o autor da ação a devolver os benefícios previdenciários indevidamente recebidos”), está com proposta de revisão perante a própria 1ª Seção1. Na QO no REsp 1.734.698 / SP (Rel. Min. OG Fernandes – 1ª Seção – J. em 14/11/2018 – Dje 03/12/2018), foi acolhida a Questão de Ordem, estando expressamente consignado em passagem do acórdão que: “a proposta de revisão de entendimento tem como fundamentos principais a variedade de situações que ensejam dúvidas quanto à persistência da orientação firmada pela tese repetitiva relacionada ao Tema  692/STJ, bem como a jurisprudência do STF, estabelecida em sentido contrário, mesmo que não tendo sido com repercussão geral ou em controle concentrado de constitucionalidade2. 

O STF, no Tema 799/RERG, expressou que a discussão quanto a devolução das parcelas em comento tem natureza infraconstitucional e, consequentemente, não tem Repercussão Geral. 

No AgInt no RE no AgInt no REsp 1685068 / RS (Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura – J. em 27/11/2018 – Dje 03/12/2018), a Corte Especial do STJ, em questão envolvendo devolução de valores em caso de erro do próprio instituto previdenciário, analisou os Temas 692/STJ e 979/STF. Esta é a Ementa:

AGRAVO INTERNO. NEGATIVA DE SEGUIMENTO DE RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DEVOLUÇÃO DE VALORES RECEBIDOS EM ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. DECISÃO CASSADA. TEMA Nº. 692/STJ. REPERCUSSÃO GERAL AFASTADA. TEMA 799/STF.AGRAVO DESPROVIDO.1. Segundo a jurisprudência consolidada desta Corte, o beneficiário de tutela antecipada  em desfavor do instituto previdenciário está obrigado a devolver os valores recebidos se acaso houver a revogação da  medida  com  o julgamento definitivo da causa, conforme situação abrangida pelo Tema 692/STF. 2. In casu, a controvérsia não se assemelha, ao contrário do afirmado, à questão debatida no Recurso Especial n.º 1.381.734/RN, afetado sob o rito dos repetitivos e relacionado ao Tema 979/STF, na medida em que, neste, discute-se a devolução de valores recebidos de boa fé por força de equívoco ou erro de pagamento realizado pelo próprio instituto previdenciário, situação não abrangida quando a própria  parte busca a tutela judicial e ao final tem de devolver os valores inicialmente recebidos. 3. Ademais, a Suprema Corte, por meio do Tema 799/STF, afastou a existência de repercussão geral em relação à hipótese de devolução de valores em razão de tutela antecipada, porquanto decorre de discussão atinente a normas infraconstitucionais. 4. Decisão mantida por seus próprios fundamentos. 5. Agravo desprovido”. 

Como se pode observar, o tema é tratado com muitas variáveis interpretativas. De toda sorte, em que pese meu entendimento pessoal contrário à tese da dupla conformidade (o título continua sendo provisório até o trânsito em julgado e, neste sentido, inexiste estabilidade decisional), os precedentes da Corte da Cidadania enfrentam situações específicas ligadas aos conceitos de boa-fé, de risco/ proveito e responsabilidade do beneficiado em decorrência da revogação posterior, para concluir quanto à necessidade de devolução e formação de título executivo em favor do demandado. 

Aliás, o próprio art. 299, do CPC/15, consagra que a tutela provisória é concedida à requerimento da parte, sob o seu risco e sua responsabilidade (art. 302, do CPC/15), seguindo o modelo de litigância responsável. 

O legislador processual apenas prevê a estabilidade decisional nos casos de tutela antecipada antecedente irrecorrida (art. 304, do CPC/15). Em verdade, o conceito de estabilidade decorrente da dupla conformidade, pode acabar gerando divergência interpretativa em muitos casos concretos. 

Uma alternativa para tentar resolver esta questão talvez passe pela interpretação do art. 23, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), com a criação de um regime de transição em relação à mudança do padrão decisório e de seus efeitos em decorrência da revogação da tutela de urgência, com  enfrentamento específico e com modulação, dos fenômenos da repitibilidade e da formação de títulos executivos invertidos. 

De toda sorte, importante é o intérprete discutir em seu caso concreto, os aspectos ligados ao título executivo, à responsabilidade quanto ao ajuizamento da demanda e, também e principalmente, à teoria do risco/proveito X responsabilidade em decorrência dos efeitos das tutelas provisórias posteriormente revogadas.

__________

1 Mais detalhes em clique aqui. Acesso em 02.09.2021.

2 Também foram acolhidas QO no REsp  1734627/SP; QO no REsp  1734641  SP e QO no REsp  1734647  SP.

José Henrique Mouta
Mestre e Doutor (UFPA), com estágio em pós-doutoramento pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Professor do IDP (DF) e Cesupa (PA). Procurador do Estado do Pará e advogado.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

A insegurança jurídica provocada pelo julgamento do Tema 1.079 - STJ

22/11/2024

Penhora de valores: O que está em jogo no julgamento do STJ sobre o Tema 1.285?

22/11/2024

ITBI - Divórcio - Não incidência em partilha não onerosa - TJ/SP e PLP 06/23

22/11/2024

Reflexões sobre a teoria da perda de uma chance

22/11/2024

Ficha de EPI digital e conformidade com normas de segurança

21/11/2024