Migalhas de Peso

A importância da Advocacia de Coragem na defesa dos direitos humanos

E não há como começar um texto sobre advocacia de coragem sem mencionar Esperança Garcia e Luiz Gama.

31/8/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Findo mais um mês da Advocacia, em que se comemora o Dia da Advogada e do Advogado, vale lembrar que a Advocacia não é lugar para covardes, consoante famosa máxima de Sobral Pinto, bem como que o temor de desagradar quaisquer autoridades, inclusive judiciárias, não pode inibir a atuação de advogadas e advogados, estabelece o artigo 31, §2º, do Estatuto da Advocacia. São verdades absolutas sobre os temas em geral, mas especialmente na advocacia de direitos humanos de minorias e grupos vulneráveis. 

Defender grupos alvo de histórica discriminação estrutural, institucional e sistemática significa ir contra moralismos totalitários compartilhamos por grande parte da população, quando não de sua maioria. É o caso da advocacia em defesa dos direitos humanos da população negra e LGBTI+ - Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Intersexos e demais minorias sexuais e de gênero (pessoas não-heterossexuais e não-cisgêneras). Motivo pelo qual evidenciada a necessidade de uma atuação firme e responsável por parte da Ordem dos Advogados do Brasil, direcionada à proteção e garantia do exercício das funções primárias da Advocacia. 

E não há como começar um texto sobre advocacia de coragem sem mencionar Esperança Garcia e Luiz Gama. Assim como é simbólico que duas pessoas negras, vítimas do processo colonizador-racista pelo qual essa nação foi construída, sejam as pessoas que também representam não apenas o início da advocacia brasileira mas parte importante da advocacia de Direitos das Minorias e Grupos Vulneráveis/Vulnerabilizados. 

Em 1770, Esperança Garcia, mulher negra, escravizada, escreveu uma carta destinada ao então Governador da Província do Piauí, requerendo que as pouquíssimas leis que concediam direitos aos povos escravizados fossem respeitadas. Àquela época, pleiteava por nada menos que seus Direitos à vida digna e exercício da fé. Ela, que fora arrancada da fazenda em que morava com o marido e os filhos para ser escravizada e servir de cozinheira na casa de um capitão, no documento encaminhado à capital Oieiras, fundamentou sua necessidade de proteção estatal descrevendo as sessões de espancamento a que ela e seu filho eram expostos, no impedimento à confissão imposto a ela e às demais pessoas escravizadas que ali serviam e no desejo de batizar a própria filha. O documento escrito por Esperança Garcia fora descoberto em 1979 pelo historiador Luiz Mott e graças à utilização de linguagem típica do direito fora reconhecido como petição. O que fez com que Esperança Garcia fosse reconhecida pela OAB – Seccional Piauí, como a primeira advogada do Brasil, dando início, inclusive, à luta antirracista no país. 

Por sua vez, Luiz Gama já deveria de há muito ser conhecido como o patrono da advocacia de direitos humanos. Não obstante seu nefasto esquecimento pelos pactos narcísicos da branquitude que assolam a sociedade por muito tempo, Gama tem sido finalmente homenageado e reconhecido nos últimos tempos. Filho liberto, que teve que lutar para reverter uma tentativa ilegal de escravidão, Gama se notabilizou por sua relevantíssima luta jurídico-judicial em prol da libertação de pessoas negras ainda escravizadas ilegalmente, utilizando-se das leis que gradativamente foram proibindo a escravidão em alguns contextos, antes da abolição (formal) da escravatura. Sem ilusões sobre o Direito extremamente injusto da época, pregava, com toda razão, o uso estratégico do Direito para avançar os direitos humanos, nos termos da legislação da época. Ganhou notoriedade, recentemente, o maior processo de libertação de pessoas escravizadas que se tem notícia, no qual Gama lutou para que o testamento de um antigo “senhor de escravos” (sic) fosse cumprido, já que o de cujus expressamente desejava a libertação dos mesmos após sua morte, o que não foi respeitado por seus herdeiros. Gama obteve vitória no Supremo Tribunal de Justiça da época, o qual, contudo, inexplicavelmente, determinou uma espécie de “vacância” por doze anos para que a decisão fosse cumprida, fazendo com que diversas pessoas negras morressem antes de sua libertação, o que causou profunda angústia em Gama.1 Esse caso é emblemático de sua profunda coragem e seu profundo compromisso com a universalidade dos direitos humanos, mesmo ciente de que poderia desagradar a maioria da sociedade, de sorte que merece todas as homenagens. 

A população LGBTI+ também é vítima de profunda ojeriza social, por puro preconceito, a partir de estereótipos pejorativos nunca comprovados, mas sempre presumidos de forma totalmente arbitrária. Por exemplo, a crença de que homens gays seriam supostamente mais promíscuos e/ou propensos à pedofilia que homens heterossexuais. Se um homem hétero se relaciona com várias mulheres em pouco espaço de tempo, ele é socialmente vangloriado, enquanto a mulher e o homem gay ou bissexuais que faz o mesmo sofre críticas moralistas. 

Representando uma parte da população que tem direitos e garantias fundamentais, como o direito a igualdade e à não-discriminação, que garante que todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito à proteção contra quaisquer formas de discriminação; à dignidade da pessoa humana, que visa garantir uma existência digna a toda e qualquer cidadã ou cidadão, impedindo sua instrumentalização para consecução de quaisquer fins, ainda que hegemônicos na sociedade, pois, segundo John Rawls, “Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem o bem-estar de toda a sociedade pode desconsiderar”.2 Direitos estes frequentemente violados em razão única de preconceitos e discriminações. 

Referidos preconceitos estruturais, institucionais, sistemáticos e históricos impactam na compreensão e na pré-compreensão mesmo de profissionais do Direito, a despeito da propagada busca de “objetividade” na interpretação, a qual, quando muito, é aproximada, uma objetividade possível, como já disse o Ministro Roberto Barroso em sede doutrinária.3 Como, no Brasil, desde o Código Criminal do Império não se criminaliza a homossexualidade em si, não obstante perseguições a pessoas (hoje denominadas) LGBTI+ por interpretações extensivas de todos descabidas dos tipos penais da época (como relata James Green em sua clássica obra),4 e ressalvada importante vitória do GGB – Grupo Gay da Bahia, quando conseguiu seu registro enquanto pessoa jurídica no início dos anos 1980, algo que ainda gerava resistência a luz de preconceitos sociais (daí, com brilhantismo, o mote “é legal ser homossexual”, em jogo de palavras que remete à licitude de associações de defesa dos direitos de minorias sexuais e de gênero), a luta judicial dos direitos da diversidade sexual ganhou notoriedade, no Brasil, pelo Direito das Famílias. 

Isso porque, à luz dos citados preconceitos, muitos(as) ainda presumem (preconceituosamente) que homossexuais e bissexuais não teriam interesse no sublime sentimento de amor que embasa as famílias conjugais, mas mero hedonismo sexual, servindo isso de “fundamento” explícito ou implícito para se negar o reconhecimento das famílias entre pessoas do mesmo gênero. Por isso, Maria Berenice Dias difundiu o termo homoafetividade, para explicar que as uniões entre pessoas do mesmo gênero se pautam pelo mesmo afeto que pauta as uniões entre pessoas de gêneros opostos quando desejam constituir uma família.5 As críticas ao termo improcedem, pois não se está “vinculando direitos sexuais a afeto” nem pleiteando “incorporacionismo familista” (sic): o termo se refere a pessoas que mantém uma união em comunhão plena de vida, de forma pública, continua e duradoura, que são os requisitos legais da união estável (art. 1.723 do Código Civil). Não se pode seriamente dizer que se estaria “vinculando direitos humanos a afeto” (sic) quando se reconhece uma união como família conjugal por pedido expresso das pessoas envolvidas para tanto. Por outro lado, o direito ao sexo casual sem afeto faz parte do direito de liberdade, não sendo em nada limitado pelos termos homoafetividade e heteroafetividade, descabendo os espantalhos que seus críticos inventaram contra eles.6

Veja-se os preconceitos que se tem que enfrentar para defender que casais do mesmo gênero formam uma família. Maria Berenice Dias enfrentou isso enquanto desembargadora e doutrinadora, relatando pessoas questionavam “Por que uma desembargadora está tratando deste tema?”. Quando se aposentou da magistratura para defender a advocacia de direitos humanos LGBTI+, relata que boatos diziam que qualquer pessoa que entrasse em seu escritório para qualquer tema sairia casada com pessoa do mesmo gênero (!!!). Os exemplos parecem provincianos, mas muitas pessoas têm medo de perderem a credibilidade social em situações tais: relatos denunciavam que mesmo advogadas e advogados que atendiam pessoas LGBTI+ só o faziam após o término do expediente normal, para não serem malvistos(as) por isso ou mesmo confundidos(as) com pessoas LGBTI+. Obviamente, ter vergonha de atender uma pessoa por integrar grupo socialmente hostilizado não é uma conduta compatível com a dignidade da Advocacia. 

O amigo e advogado Gustavo Bernardes, um ativista gay de relevante atuação no Movimento LGBTI+ relata o histórico de sua luta em prol da judicialização do direito ao casamento civil homoafetivo. Já nos anos 1990 ele defendia sua possibilidade a partir de famosa lição basilar do Direito Privado, segundo a qual tudo que não é expressamente proibido, tem-se por permitido, que é precisamente o que diz o artigo 5, inciso II, da Constituição Federal, além de ser tese respaldada pela autoridade de Hans Kelsen.7 Contudo, Gustavo diz que a tese era simplesmente desconsiderada pelas pessoas em geral, mesmo no Movimento LGBTI+. Em causa própria, ingressou com ação na Justiça Gaúcha, sendo derrotado, embora por 2x1, com histórico voto vencido do Desembargador Rui Portanova, no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em 2008.8 Ele não recorreu porque havia se separado do companheiro quando do julgamento, ante a notória vagarosidade do Judiciário. Sempre brinco que bastava não contar ao companheiro nem ao STJ e ao STF nos recursos (!), o que nos rende boas risadas (e, obviamente, isso é e sempre foi uma brincadeira, vale destacar nestes estranhos tempos que vivemos). 

Mas o tempo premiou Gustavo: ele foi o advogado que moveu a ação judicial em nome de Katia Ozório e Letícia Pérez que, embora novamente derrotada na Justiça Gaúcha, gerou o REsp 1.183.378/RS, no qual o Superior Tribunal de Justiça reconheceu o direito ao casamento civil homoafetivo poucos meses depois da histórica decisão do STF que reconheceu a união homoafetiva como união estável (ADPF 132 e ADIn 4277), visto que julgado (o REsp) nos dias 20 e 25 de outubro de 2011 (DJe de 1/2/12). Tive a honra de realizar sustentação oral também neste julgamento do STJ (e fui o sétimo a falar favoravelmente no julgamento do STF sobre as uniões homoafetivas). Sempre digo que eu fui a cereja do delicioso bolo feito pelo confeiteiro Gustavo, ao fazer a sustentação oral no citado julgamento.9

E digo que o tempo fez justiça a Gustavo porque o STJ conheceu e proveu este recurso por violação do artigo 1.521 do Código Civil, que traz os impedimentos matrimoniais, que são notoriamente considerados como taxativos, e não meramente exemplificativos. Ou seja, o STJ reconheceu o direito ao casamento civil homoafetivo por ausência de proibição legal, a tese de Gustavo desde o início, trabalhada nas ações, não obstante relevante principiológica constitucional também citada, especialmente no voto do Relator, Ministro Salomão. 

Vale, assim, aplaudir a coragem de Gustavo Bernardes, por ter nadado contra a maré na luta pelo Direito ao casamento civil homoafetivo, mesmo ante a desconfiança provavelmente da maioria das pessoas com quem dialogava sobre o tema, pois isto faz com que muitas pessoas desistam de empreitadas tais. Gustavo, aliás, chama-me de o Príncipe da Homoafetividade, ante minha enfática defesa, inclusive doutrinária, do termo, já que a Rainha é a grande Maria Berenice Dias, nossa musa do Direito Homoafetivo, como diz a amiga, advogada e ativista lésbica Marina Ganzarolli, Presidenta da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/SP e Conselheira Seccional da OAB/SP (mandato 2019-2021). 

Que dizer então da advocacia em defesa das pessoas transgênero? As travestis, as mulheres transexuais e os homens trans estão entre os segmentos mais discriminados da sigla LGBTI+. Preconceitos sociais já misturam toda a sigla LGBTI+, com assustador senso comum acreditando até hoje que “todos são homossexuais” (sic, e foi aqui amenizada a forma como isso é dito no mundo real), “com alguns indo mais longe que outros” (sic), como se uma pessoa homossexual se identificasse com o sexo/gênero oposto “em razão” de sua homossexualidade. A ignorância é gritante, pois orientação sexual (das pessoas LGB+) não se confunde com a identidade de gênero (das pessoas trans). Por exemplo, uma mulher transexual (que nasceu com um pênis, sendo por isso designada como “homem” ao nascer, mas que se entende e se apresenta socialmente como mulher) muitas vezes se relaciona com outras mulheres (cis e trans) mesmo que tenha feito a cirurgia de adequação corporal a sua identidade de gênero. Ou seja, é uma mulher transexual lésbica. Sabe-se que essa afirmação causa estranhamento no senso comum, mas é o fato da realidade objetiva. Novamente aqui, já se relataram ironias a pessoas que defendem direitos de pessoas trans, como se está pessoa também pudesse sê-lo. Vale, assim, reiterar que ter vergonha de atender uma pessoa por integrar grupo socialmente hostilizado não é uma conduta compatível com a dignidade da Advocacia. 

Ainda sobre coragem, e pedindo perdão pela ausência de falsa modéstia, que dizer das ações que geraram o reconhecimento da homotransfobia como crime de racismo, movidas pelo coautor do presente artigo? O Mandado de Injunção (MI) 4733, movido em nome da ABGLT, e a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, movida em nome do PPS, atual Cidadania, foram objeto de profunda desconfiança no início, havendo quem acreditasse que o coautor deste artigo seria “ridicularizado” por movê-las, enquanto seu advogado signatário. Obviamente sem levar isso em consideração, primeiro marco veio em 2014, com ajuda do Professor Walter Claudius Rothenburg, Procurador da República e então Professor e Orientador no Doutorado da Instituição Toledo de Ensino deste coautor, o qual intermediou reunião que tive com o então Procurador-Geral da República (Rodrigo Janot), que proferiu Parecer favorável ao MI 4733, e no ano seguinte à ADO 26. O posicionamento favorável da PGR foi o que fez tanto o Movimento LGBTI+ quanto à comunidade jurídica em geral acreditarem na possibilidade de procedência das ações, ao menos para o reconhecimento da homotransfobia como crime de racismo, que foi o que se deu. 

Aliás, os Pareceres da PGR e, depois, os votos da maioria do STF demonstram que não há que se falar em “analogia” no reconhecimento da homotransfobia como espécie de racismo, já que o Tribunal entende raça e racismo no seu sentido político-social e não biológico, raça enquanto dispositivo de poder pelo qual artificialmente grupo dominante desumaniza integrantes de grupos dominado e racismo como a inferiorização de um grupo social relativamente a outro, conforme precedente anterior do STF que já havia explicado que o racismo é um conceito social que deve ser compreendido a luz de critérios históricos, sociológicos e antropológicos, e não meramente biológicos, consoante farta literatura antirracismo nele citada (HC 82.424/RS). Assim, sendo este o conceito constitucional de racismo, corretamente o STF afirmou que os crimes “por raça” devem receber interpretação conforme a Constituição para serem entendidos de forma político-social e não biológica, bem apontando que a lei e a Constituição diferenciam dos crimes “por cor” (art. 3, IV, da CF) e “por etnia” (tipos penais da Lei 7716/89), donde raça é um conceito mais amplo (já que a lei não possui palavras inúteis, consoante célebre lição hermenêutica citada já no HC 82.424/RS para isto defender). Assim, o STF afirmou que os crimes “por raça” abarcam a homotransfobia por interpretação literal, não por analogia e nem por interpretação extensiva, à luz do citado conceito de racismo social, que abarca a homotransfobia. Então, quem acusa a decisão de ter “legislado” ou feito “analogia” ou não leu os oito votos majoritários ou está deturpando o significado literal de suas palavras. 

Cite-se que o Parecer da PGR ao MI 4733 foi alvo de dura crítica de eminentes juristas (Lenio Streck, Ingo Sarlet, Jacinto Coutinho, Clèmerson Clève e Flávio Pansieri) em artigo na Revista Consultor Juridico.10 O coautor Paulo Iotti sempre brinca que fui vítima da “Fúria de Titãs”, por serem eminentes autores, que muito respeito e cujas doutrinas muito aprecio, mas que, a meu ver, se equivocaram gravemente neste posicionamento. Tanto que fez artigo-resposta a eles dias depois,11 refutando suas colocações na qualidade de advogado que moveu as ações, em artigo que, bem ampliado, serviu de base ao meu memorial final nos processos e, com maiores ampliações, de meu livro que explica e defende as decisões. 

Menciona-se isso porque com tão eminentes autores criticando o Parecer favorável da PGR e, consequentemente, as ações, estas acabavam sendo vistas com ainda mais reservas por quem as lia. Seja como for, após o julgamento do STF, um fato maravilhoso ocorreu: o Professor Clèmerson Clève publicou em seu Twitter, no dia 17 de abril de 2021, que mudou de posição e passou a concordar com as ações e a decisão após assistir minha sustentação oral e ler artigo de minha autoria defendendo os votos favoráveis até então proferidos, após a maioria ter sido formada no dia 23 de maio de 2019.12 O Professor Clèmerson mostrou a humildade dos gigantes ao se manifestar dessa forma, sendo uma das honras de minha vida ter sido elogiado por esse Titã. Sem falar nas oito citações do Ministro Celso de Mello a minha doutrina e minhas petições nas ações em questão, além de outra na ementa da ADO 26. Isso mostra que a coragem e a ousadia valem a pena, obviamente quando aliadas a muito estudo e defesas técnicas de nossas posições. 

Felizmente, o Supremo Tribunal Federal tem levado o Direito a sério em sua interpretação sistemática e teleológica da Constituição Federal de 1988 no que tange à proteção dos direitos da população LGBTI+. Não é possível explicar todos os fundamentos de todas as decisões neste artigo, mas sempre digo que a forma mais simples de explicar a jurisprudência emancipatória do STF na proteção da população LGBTI+ é dizer que ele corretamente entendeu que não reconhecer esses direitos implicaria em discriminação arbitrária (diferenciação irracional), algo inadmissível já que a Constituição proíbe quaisquer formas de discriminação (art. 3, IV), além de determinar a punição de toda discriminação atentatória a direitos e liberdades fundamentais (art. 5, XLI) e todas as formas de racismo (art. 5, XLII), mandados de criminalização que abarcam o dever de punição penal da homotransfobia (LGBTI+Fobia), como corretamente entendeu o Tribunal (ADO 26 e MI 4733). 

Como diz Maria Berenice Dias desde que se aposentou da magistratura, a Justiça só profere decisões emancipatórias por conta do trabalho de advogadas e advogados que levam essas demandas ao Judiciário (ante o princípio da inércia da jurisdição), o que, acrescento, muitas vezes demanda a coragem de lutar contra preconceitos sociais. Por isso, vale celebrarmos mais este Dia da Advogada e do Advogado, sempre relembrando a máxima de Sobral Pinto e a norma do Estatuto da OAB que abrem este artigo, junto com uma outra, agora do artigo 3º do Código de Ética da Advocacia: a Advocacia deve ter ciência de que o Direito deve ser entendido enquanto mecanismo de transformação social emancipatória, que garanta a igualdade, a liberdade e a justiça em geral, permitindo-nos alguma liberdade poética na interpretação de tal dispositivo, não obstante ela me parece corresponder à teleologia ético-normativa respectiva. Afinal, o Direito é primordialmente um conjunto de princípios, não só de regras, que devem ser interpretadas em conformidade com os princípios da mesma lei e principalmente os princípios constitucionais (que mais que justificam a exegese aqui defendida), para parafrasear aqui as célebres doutrinas dos Professores Celso Antônio Bandeira de Mello (“violar um princípio é mais grave que violar uma regra”, por aquele constituir-se enquanto mandamento nuclear do sistema que se irradia por ele todo)13 e Luís Roberto Barroso, atualmente Ministro do STF (hierarquia axiológica dos princípios sobre as regras, já que estás devem ser interpretadas em conformidade com aqueles).14 

_______________

1 Cf. MACHADO, Leandro. A desconhecida ação judicial com que advogado negro libertou 217 escravizados no século 19. In: BBC Brasil, 08 de maio de 2021. Disponível em: clique aqui. Acesso: 30.08.2021.

2 RAWLS, John. Uma teoria da justiça, Tradução de Jussara Simões, Revisão Técnica e da Tradução de Álvaro de Vita, São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2008, p. 04.

3 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição, 6ª Ed., São Paulo: Ed. Saraiva, 2006, cap. 1, item 4.

4 GREEN, James. Além do Carnaval. A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. Tradução: Cristina Fino e Cássio Arantes Leite, São Paulo: Ed. UNESP, 2019, p. 66-68.

5 DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade e os Direitos LGBTI, 7ª Ed., São Paulo: Ed. RT, 2016.

6 VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Manual da Homoafetividade. Da Possibilidade Jurídica do Casamento Civil, da União Estável e da Adoção por Casais Homoafetivos, 4ª Ed., Bauru: Ed. Spessoto, 2021, cap. 02, item 1.1.

7 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução: João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 46-48 e 270, para quem o que não é juridicamente proibido é juridicamente permitido.

8 TJRS, Apelação Cível n.º 70025659723, Rel. Des. Claudir Fidelis Faccenda, j. em 11.09.2008. Para crítica a este artigo: VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. A Família Juridicamente Protegida, a Lei Maria da Penha e a Proteção Constitucional da Família Homoafetiva. Equívocos dos Julgamentos do TJ/RS que negaram o direito ao Casamento Civil Homoafetivo. In: Revista do Direito das Famílias e Sucessões, n.º 16, jun.-jul. 2010, p. 97-115. Para Parecer do mesmo autor no mesmo sentido, vide: clique aqui. Acesso: 30.08.2021.

9 Para relato de Gustavo Bernardes sobre o histórico do caso, vide: . Para relato do coautor Paulo Iotti sobre sua atuação no caso, vide: clique aqui. Acessos: 30.08.2021.

10 STRECK, Lenio Luiz. SARLET, Ingo W. CLÈVE, Clemerson. COUTINHO, Jacinto. PANSIERA, Flávio. Perigo da criminalização judicial e quebra do Estado Democrático de Direito. In: Revista Consultor Jurídico, 21 ago. 2014. 

11 VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. O Mandado de Injunção e a Criminalização de Condutas. In: Revista Consultor Jurídico, 26 ago. 2014. 

12 VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Racismo homotransfóbico e população LGBTI como um grupo racializado. In: JOTA, 23 mai 2019. 

13 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 19a Edição, São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 888-889.

14 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição, 6a Edição, 2006, 3a tiragem, São Paulo: Editora Saraiva, p. 202-203.

Paulo Iotti
Doutor e Mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino. Especialista em Direito da Diversidade Sexual e de Gênero e em Direito Homoafetivo. Advogado e Professor Universitário. Diretor-Presidente do GADvS - Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero. Integrante da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OABSP. Sócio do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Famílias.

Luanda Pires
Especialista em Direito Contratual, LGBTI+ e de Gênero. Pós-Graduanda em Direitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RS). Presidenta da ABMLBTI - Associação Brasileira de Mulheres Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos; Diretora do Me Too Brasil; Diretora-Tesoureira do GADvS - Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero. Líder da pauta LGBTI+ no Movimento Advogadas do Brasil.

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