Migalhas de Peso

Contexto pandêmico, avanço da vacinação e retorno das atividades. Como ficam os empregados? Posso exigir comprovação de vacinação?

Em se tratando de um juízo de proporcionalidade e razoabilidade, o empregado deve ser advertido e notificado a apresentar justificativa para não ter se vacinado ou da impossibilidade de fazê-lo.

30/8/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

O coronavírus é um fato alheio, imprevisível e para o qual o empregador não colaborou para que ocorresse. A pandemia causada pelo coronavírus gerou desdobramentos sobre as mais variadas áreas do Direito, em especial o ramo trabalhista.

Com o avanço do processo de imunização da população, o recuo das medidas restritivas e retorno das atividades à normalidade, o panorama é de retomada da normalidade, com a necessária gestão dos prejuízos e consequências. Aqueles afastados pelo uso das medidas provisórias, apelidado de Direito Pandêmico1, como a questão dos empregados que decidiram não participar da vacinação e sua frequência ao trabalho.

Estamos adentrando em terreno arenoso, talvez até movediço, pois não há firmeza legal sobre alguns aspectos. Por isto, este texto é opinativo, indicativo de reflexões sobre os temas e ponderações acerca dos direitos trabalhistas e riscos de passivo trabalhista e ações judiciais dos trabalhadores.

O primeiro questionamento pertinente é acerca do retorno ao labor. Pode o empregador exigir que todos retornem às atividades, inclusive os pertencentes ao grupo de risco? À primeira vista pode parecer de resposta simples, todavia não o é.

Dentro da análise do grupo de risco, a empregada gestante é o único caso previsto em lei. Para a gestante o afastamento obrigatório foi imposto pela lei 14.151/2021. Durante o período de emergência e saúde pública do coronavírus, a gestante não poderá executar trabalho presencial. Desta forma, até que seja considerado cessado o período, a gestante não prestará serviços na empresa. Após o nascimento, contudo, a mulher deve retornar ao labor tão logo cesse a licença maternidade.

O grupo de risco, contudo, não é formado apenas pela empregada gestante. Há os empregados maiores de 60 (sessenta) anos, diabéticos, hipertensos, cardíacos, asmáticos, em tratamento de doenças crônicas, câncer ou com doença imunodepressora. Não há lei que obrigue o empregador a afastar estes empregados do trabalho, desta forma pode exigir o labor e/ou retorno imediato às atividades.

A questão, todavia, do ponto de vista do empregado, pode trazer complicadores. O empregador, embora possa exigir o labor, tem o dever de cumprir as regras sanitárias, distanciamento, álcool em gel, máscara e demais medidas de saúde e segurança. Caso o empregador não as cumpra, o empregado não só pode recusar a prestar serviços, como também pode pleitear rescisão indireta do contrato de trabalho.

A rescisão indireta consiste na ruptura contratual trabalhista sob o motivo de culpa do empregador. Esta gera o dever do empregador pagar a mesma rescisão que pagaria caso estivesse dispensando o empregado sem justa causa. O art. 483, c, da Consolidação das leis do Trabalho permite que “O empregado poderá considerar rescindido o contrato de trabalho e pleitear a devida indenização quando correr perigo manifesto de mal considerável”.

A contaminação por doença infectocontagiosa, o coronavírus, cujo tratamento é experimental e não há cura, pode ser considerada um perigo manifesto de mal considerável. Em sendo o empregado do grupo de risco, o argumento ganha relevo diferenciado. E, como o empregador deve manter o ambiente de trabalho sadio, principalmente no que tange ao cumprimento das normas sanitárias, exigir retorno sem o cumprimento do regramento de segurança reforça sobremaneira o temor da contaminação. Esta, caso ocorra nos pertencentes ao grupo de risco pode ter como consequência óbito e gravidade máxima da doença com sequelas variadas.

A questão reveste-se de maior complexidade, ainda, com a permissão do empregador ou a concordância permanência e frequência de pessoas não vacinadas no ambiente de trabalho (sejam outros empregados ou não). Neste cenário, os elementos para a rescisão indireta, ampliados os riscos por atitude permissiva direta do empregador.

Diante da continuidade das exigências das medidas sanitárias em relação ao uso de máscara, álcool em gel e distanciamento, o empregador tem o dever de cumprí-las. Sem prejuízo de novas medidas eventualmente postas ou específicas para a atividade econômica desenvolvida. E, de igual forma, cabe ao empregador atuar para evitar que o risco de contágio seja ampliado pela frequência e permanência de não imunizados no ambiente de trabalho.

Outra questão que merece ponderação é o empregado menor de idade. Vale recordar que pode haver labor, na condição de aprendiz, a partir dos 14 (quatorze) anos. E, para os menores de idade há proibição legal de labor em condições insalubres, além de que as demais medidas protetivas de saúde e segurança também podem ser observadas. A rescisão indireta, inclusive, pode advir de pedido do Ministério Público do Trabalho ou arguição pelos responsáveis legais do menor de idade.

E no que tange à vacinação? O empregador poderia exigir que o empregado comprove vacinação, sob pena de aplicação de penalidade, podendo chegar à dispensa por justa causa?

Em análise inicial, só se pode exigir o que está disponível ao empregado. Se não há vacina para a idade do empregado ou dependa de liberação estatal para que a mesma ocorra, não se pode falar em exigir ou deixar de exigir, pois é preciso ser possível vacinar para que se analise, posteriormente, se há ou não permissão para exigência. Como a grande maioria das vacinas são em 2 (duas) doses, o período entre ambas e o fornecimento estatal são condição para qualquer análise.

Em segundo aspecto, há que se considerar que as informações contidas no cartão de vacinação são dados sensíveis, protegidos pela lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), uma vez que são elementos de saúde do trabalhador. Se não é possível exigir a CID nos atestados, poderia o empregador exigir cartão de vacinação? Esta questão parece-me tormentosa, pois quem exige o dado sensível (o empregador) não age no interesse público, mas no interesse privado ou, no máximo, coletivo decorrente do dever de cautela e zelo pela saúde laboral.

Não há vacinação forçada, já decidiu o Supremo Tribunal Federal2 (STF). Logo, ninguém será compelido fisicamente a vacinar, contudo podem ser postas medidas indiretas para a imunização, pois a mesma é obrigatória. O STF abriu espaço para que se tomem medidas restritivas aos não imunizados, sob o argumento da defesa do interesse público em proteger os demais cidadãos dos que recusam a imunização. O Supremo também decidiu que a imunização dos filhos menores é dever dos pais/responsáveis legais, sem aceitação de escusas religiosas, ideológicas ou de qualquer natureza.

A discussão persiste, pois o STF não disse que os particulares poderiam criar restrições em ambientes privados decorrentes da decisão de não imunização. Inclusive, esta discussão reverbera para outras áreas. Pode o síndico proibir entrada no prédio por condômino não imunizado? Pode um prédio privado proibir a entrada de não vacinados e exigir apresentação de comprovante de vacinação?

A tese do STF, na repercussão geral, foi a seguinte:

É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, (i) tenha sido incluída no programa nacional de imunizações; (ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei; (iii) seja objeto de determinação da união, estados e municípios, com base em consenso médico científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar.     

Retornando às questões trabalhistas, a exigência de cartão de vacinação não é inédita. Para recebimento do salário família, por exemplo, o empregado tem o DEVER de apresentar atestado de vacinação do filho, conforme art. 67 da lei 8.213/1991. E, inclusive, há exigência de regularidade no calendário nacional de vacinação, a exemplo do art. 17, II da Medida Provisória 1.061/2021 (Programa auxílio Brasil e Programa Alimenta Brasil) e o era também para o recebimento de bolsa família, requisito “acompanhamento de saúde”, previsto no art. 3º da lei 10.836/2004 (Bolsa família).

Diante do que foi exposto, a exigência do comprovante vacinal afigura-se razoável e de violação de intimidade mínima, uma vez que não se tenciona publicizar ou compartilhar dados. Todavia, há uma série de meandres que antecedem qualquer penalização pela não vacinação.

Há decisões em sede de Tribunais Regionais do Trabalho, a exemplo do TRT 2ª Região, Pje 1000122-24.2021.5.02.0472, que confirmam a possibilidade de aplicação de justa causa ao empregado que, após advertido, a apresentar comprovante de vacinação, recusa-se injustificadamente.

O Ministério Público do Trabalho (MPT), em caráter excepcional, sinalizou que entende pela possibilidade de justa causa aos que recusam imunizar. Há um caminho de consenso sendo construído para que a vacinação possa ser exigida pelo empregador, inclusive com a viabilidade de medidas punitivo-disciplinares.

A justa causa é a mais grave punição aplicada pelo empregador ao empregado faltoso. Desta forma, é medida extraordinária, excepcional, devendo o empregador zelar pela manutenção do vínculo, optando pela ruptura punitiva forçada, exclusivamente, quando não houver condições de manter o emprego.

Para se exigir a comprovação vacinal, deve a empresa alterar seu Prevenção de Riscos Ambientais (PPRA) e Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO), afim de que o risco de contágio esteja previsto e enseje a exigência.

Em se tratando de um juízo de proporcionalidade e razoabilidade, o empregado deve ser advertido e notificado a apresentar justificativa para não ter se vacinado ou da impossibilidade de fazê-lo. Caso não apresente, entendemos pela aplicação de uma suspensão disciplinar, sendo renovada a notificação de que apresente justificativa. Após isto, entendo a tolerância em face da conduta cessa e pode-se aplicar a justa causa.

Contudo, o empregador deve ser zeloso em razão da conduta em face do ocorrido. Se o empregador permite o labor, sem vacinação, não poderá mudar de ideia posteriormente, pois poderá ser considerado perdão tácito ou ausência de imediaticidade. Da mesma forma, a exigência deve ser para todos os empregados, salvo para aqueles que tiverem justificativa para não vacinar.

A justificativa, diante da decisão do STF, recai exclusivamente sobre o prisma médico. Quando, por atestado e relatório médico, o empregado não deva se vacinar sob pena de agravamento de enfermidade, situação peculiar de saúde. Fora desta hipótese, não se vislumbra outra justificativa plausível, exceto a inexistência da vacina por parte do Poder Público.

________

1 ALMEIDA, Dayse. Direito do Trabalho e Coronavírus. Análise de riscos e possibilidades jurídicas na Consolidação das leis do Trabalho e nas Medidas Provisórias 927, 936, 944 e 945, de 2020. São Paulo: Letras Jurídicas, 2020.

2 ADIs 6.586 e 6.587 e ARE 1.267.879.

Dayse Coelho de Almeida
Advogada e consultora. Mestre em Direito do Trabalho pela PUC/MG. Autora do livro Direito do Trabalho e Coronavírus. São Paulo: Letras Jurídicas, 2020 e outras obras e artigos publicados.

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