A pandemia acentuou a utilização da tecnologia nas atividades cotidianas, maximizando o e-commerce e as plataformas de comunicação e entretenimento.
Igualmente, o exercício das atividades profissionais foi profundamente influenciado pelas ferramentas tecnológicas, incrementado pelo “home office”, cujos modelos de negócios (dos mais variados segmentos) se adaptaram a criar, produzir e entregar a sua atividade-fim de forma remota, popularizando, inclusive, as chamadas “reuniões on line”.
Na esfera do Direito não foi diferente: escritórios de advocacia se aparelharam para o trabalho 100% on-line, seus colaboradores todos em “home office”, Tribunais atendem o jurisdicionado por videoconferências e realizam julgamentos nas plataformas virtuais.
Os órgãos públicos (da Administração Pública Direta e Indireta) também se adaptaram à tarefa da informatização, trabalho remoto de seus colaboradores e atendimento virtual.
Mas, além de ser uma ferramenta para solucionar o problema concreto do isolamento social, a tecnologia e os recursos de Inteligência Artificial também idealizam a funcionalidade para “resolver conflitos”.
Importante contextualizar que as ferramentas tecnológicas de Inteligência Artificial pulverizam a tendência à automação de contratos, utilização de criptomoedas e blockchain, através de uma variedade de sistemas avançados de computação, especialmente algoritmos, que se metrificam por representações.
Compõe-se, assim, um “ecossistema digital”, dotado de robusto sistema de banco de dados.
Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de lei 21/20 conhecido como “marco legal da Inteligência Artificial”, que pretende estabelecer “princípios, direitos, deveres e instrumentos de governança para o uso da inteligência artificial no Brasil e determina as diretrizes para a atuação da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, pessoas físicas e jurídicas, de direito público ou privado, e entes sem personalidade jurídica em relação à matéria”.
A justificativa constante do Projeto de lei menciona que os recursos de Inteligência Artificial são relevantes aos “ganhos de competitividade e aumento da produtividade brasileira, na prestação de serviços públicos, na melhoria da qualidade de vida das pessoas e na redução das desigualdades sociais, dentre outros”.
Igualmente, o PL 21/2020 traz definições como sistema de inteligência artificial (o sistema baseado em processo computacional que pode, para um determinado conjunto de objetivos definidos pelo homem, fazer previsões e recomendações ou tomar decisões que influenciam ambientes reais ou virtuais); ciclo de vida do sistema de inteligência artificial (fases de catalogação, desing e produção de sistemas) e conhecimento em inteligência artificial (habilidades e recursos, como dados, códigos, algoritmos, pesquisas, programas de treinamento, governança e melhores práticas, necessários para conceber, gerir, entender e participar do ciclo de vida do sistema) dando concretude ao que se entende por “ecossistema digital”.
Nesse contexto, a reflexão que nos mobiliza é pensar se essa tendência à automação, implementada por sistemas avançados de algoritmos é adequada à solução de um litígio concreto, afastando a atuação humana de um juiz ou árbitro.
Em nosso sentir a aplicação de ferramentas digitais não é, e não se pretende que seja, a “receita” para a solução dos problemas da humanidade, nem sob o prisma dos conflitos interpessoais, nem das disputas corporativas ou das guerras entre nações.
A mente humana, sua sensibilidade, intuição, valores, empatia, consciência e, com perdão da redundância, sua humanidade, são o cerne de decisões conflituosas, apesar de toda a inovação tecnológica.
Ou seja, não se pode pretender a substituição da inteligência humana pela inteligência artificial. Algoritmos não substituem o pensamento, percepção e ação humanas.
Como ensina Michelle Taruffo, na sua obra clássica “Uma simples verdade, o juiz e a construção dos fatos”, muitas causas são vencidas ou perdidas “nos fatos, dependendo se o autor conseguiu ou não provar os fatos postos como fundamento de sua pretensão (...) os fatos são complexos em demasia e difíceis de subsumir em uma clara regra de direito.” 1
A cognição exauriente dos fatos específicos em cada demanda e a sua interpretação à luz do caso concreto perpassam um sistema racional complexo e a sensibilidade do julgador, não sendo, assim, sistemas de mera subsunção do fato à norma.
Para a solução de conflitos, a inteligência artificial atua como auxiliar colaborativa, dotando o ser humano julgador de farto acervo de informações e de mecanismos para acelerar o processamento de recursos e transações.
É impossível transferir para instrumentos computacionais a capacidade de compreensão da conduta humana, com empatia, intuição, sensibilidade, valores e consciência. Algoritmos não realizam a cognição profunda sobre fatos, nem interpretam normas jurídicas. Algoritmos são mecânicos.
Conhecido como “Paradoxo de Moravec”, Hans Moravec, cientista e pesquisador da Universidade Carnegie Mellon, em Pittsburg, Pensilvânia, nos Estados Unidos, explicitou (o que parece óbvio) quais os limites da inteligência artificial, pois robôs e automação não conseguem interpretar e reagir a estímulos sensoriais, limitando-se a resolver problemas lógicos.
Portanto, o potencial da Inteligência Artificial está em melhorar os serviços públicos jurisdicionais, mas não substituir inteligência humana.
Os sistemas de inteligência humana e artificial devem conviver e não se excluírem. Assim, respeitar a tradição jurídica e alavancar as ferramentas de inteligência artificial são faces da mesma moeda, que ajudarão a garantir o emprego da inovação e a efetividade da solução humana de conflitos, fomentando a melhor prestação dos serviços jurisdicionais e as políticas públicas de prestação jurisdicional efetiva.
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1 TARUFFO, Michele, Uma simples verdade, o juiz e a construção dos fatos, São Paulo, Marcial Pons,2012, p. 60