É comum, nos dias atuais, a seguinte afirmação: o Poder Judiciário, diante da grande quantidade de recursos e manifestações defensivas, está sobrecarregado.
Realmente, não se pode negar que os magistrados, em sua maioria, estão submetidos a um severo regime de trabalho. Nada obstante, o que se pretende questionar, nessas breves linhas, é a responsabilidade da advocacia no agravamento do referido cenário.
Como é de conhecimento cediço, a par do artigo 133 da Constituição Federal, "o advogado é indispensável à administração da justiça". Além disso, segundo o artigo 2º, parágrafo único, inciso IV, do Código de Ética e Disciplina da OAB, é dever do advogado "empenhar-se, permanentemente, no aperfeiçoamento pessoal e profissional".
Na esteira desse raciocínio, cabe ao advogado, além do estudo doutrinário, estar atualizado com a jurisprudência pátria, de sorte a estruturar a melhor solução jurídica ao seu constituinte.
Nesse particular, o advogado criminal, quando conhecedor da(s) orientação(ões) dos tribunais, se vê em uma verdadeira encruzilhada. Isso, porque, apesar da clara dicção dos artigos 926 e 927 do Código de Processo Civil, a jurisprudência não é estável, notadamente em virtude das peculiaridades dos casos concretos. Pelo contrário, trabalhamos em um ambiente de insegurança jurídica, o que é extremamente pernicioso para a credibilidade1 e a sobrecarga do Poder Judiciário.
Com efeito, para quem de fato milita na advocacia criminal, é corriqueiro lidar com entendimentos conflitantes em um mesmo tribunal. Por exemplo, em relação à possibilidade de impetrar habeas corpus substitutivo de recurso ordinário, as turmas do STJ que tratam de matéria criminal divergem.2
Diante desse panorama, quando o advogado se depara com um cliente preso, que teve seu writ denegado pelo tribunal local, qual a solução adotar? Impetrar habeas corpus substitutivo, cujo rito é reconhecidamente mais rápido? Interpor recurso ordinário, apesar da situação prisional de seu constituinte? Os dois, porque, caso não haja órgão julgador prevento, não se sabe o resultado da ulterior distribuição?
Para agravar, ainda mais, a aludida situação, é importante lembrar que, nos moldes do artigo 654, §2º, do Código de Processo Penal, há a possibilidade da concessão da ordem de ofício, o que, também, apresenta um certo casuísmo judiciário.
Ora, para o defensor, não é interessante promover o protocolo e a instrução de duas manifestações praticamente idênticas. Por outro lado, para o Poder Judiciário, naturalmente, não é produtivo receber e processar um recurso e uma ação que versam sobre a mesma matéria. Mas, diante da instabilidade jurisprudencial, o advogado tem o dever de envidar todos os esforços necessários, respeitando os marcos éticos e jurídicos, em prol da célere solução do problema vivenciado pelo cliente.
Como se não bastasse, outra realidade se impõe: juízes de 1ª instância e desembargadores, por vezes, não seguem posicionamentos já consolidados.3 Apesar da necessária independência judicial, tal postura agrava o problema aqui tratado, porquanto, decerto, a parte que se sentir prejudicada irá se insurgir perante as instâncias superiores.
Ressalte-se que outros temas, responsáveis por inundar os acervos processuais, não possuem também orientação firme, tais como: uso da reclamação constitucional, dosimetria de pena, critérios autorizadores/fundamentos da prisão cautelar, princípio da insignificância, excesso de prazo (da custódia provisória e do processo), juízo de admissibilidade de recursos especial e extraordinário etc.
Não se olvida que, à defesa técnica, é vedada a interposição de manifestações sem viabilidade jurídica, formuladas, muitas vezes, com intuito meramente procrastinatório. Entretanto, levando em consideração a manifesta instabilidade jurisprudencial brasileira, não é fácil identificar teses totalmente desprovidas de robustez argumentativa.4
Retomando a afirmação inicial, questiona-se: será que, realmente, o advogado é um dos principais responsáveis pela sobrecarga do Poder Judiciário?
Pensamos que não, pois, conforme visto, em diversas ocasiões,5 o manuseio das teses/manifestações é guiado pela instabilidade jurisprudencial, o que refoge, naturalmente, ao controle das partes.
Portanto, é preciso enfrentar, com seriedade, as causas da reconhecida sobrecarga do Poder Judiciário, o que perpassa, a nosso ver, por entendimentos jurisprudenciais mais seguros e consentâneos com a dogmática jurídica, além de outros fatores, tais como: déficit de juízes e servidores, acusações (públicas e privadas) levianas e tendenciosas etc.
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1- Conforme já restou reconhecido: "(...) o dissenso intestino que, como já disse, nesta bancada, é o que maior descrédito provoca no tocante à atuação do Judiciário". (STF - RE 283240 AgR-ED-EDv-AgR/RS – Relator p/ Acórdão: MARCO AURÉLIO - Julgamento: 26/04/2007 - Tribunal Pleno)
2- Eis um recente julgado da Quinta Turma do STJ: "Não se admite impetração de habeas corpus em substituição a recurso ordinário." (STJ - AgRg no HC 574573/RJ - Relador: Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA - Julgamento: 22/06/2021 - Quinta Turma). Em sentido oposto: "Embora o Agravante sustente que o mandamus sequer deveria ter sido processado, pois foi manejado em substituição à via recursal cabível, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça não impõe óbice ao conhecimento de habeas corpus substitutivo de recurso ordinário." (STJ - AgRg no HC 559967/RO - Relatora: Ministra LAURITA VAZ - Julgamento: 01/06/2021 - Sexta Turma)
3- À guisa de ilustração: Disponível aqui. Acesso em 21/07/2021.
4- Nesse sentido, é interessante apontar a ressalva de Piero Calamandrei: "Não se poderá criticar o advogado se alguma vez sustentar teses jurídicas em oposição à jurisprudência ou, até mesmo, ao bom-senso, pois, frequentemente, isso que pode parecer descaramento ou ignorância é apenas cautela aconselhada por uma longa experiência. De fato, são cem as interpretações que podem ser dadas de uma lei, e nunca se pode prever com segurança qual delas o juiz vai escolher – talvez lhe pareça mais plausível aquela que, para nós, parece a mais absurda. Aconteceu-me certa vez (mais de uma) recusar uma causa que eu achava não poder defender sem faltar com o respeito ao juiz e a mim mesmo, e fiquei sabendo, um ano depois, que o cliente recusado por mim a confiara a outro advogado que, não tendo meus escrúpulos, a defendera sem hesitar e ganhara. Ouvi do ganhador, que se deu ao gosto de vir anunciar-me sua vitória, exatamente estas palavras: - O senhor, caro advogado, é mais honesto do que corajoso. Lembro sempre com amargor que certa feita arruinei meu cliente, porque não me parecia sério sustentar uma tese oposta à que era, então, a opinião do Tribunal de Cassação. Fiz isso por sensatez, por respeito à jurisprudência do Tribunal. Mas, um ano depois, a jurisprudência mudara da água para o vinho. Se eu não tivesse sido tão sensato, teria perdido a causa em apelação, mas teria podido ganhá-la em grau de cassação um ano depois; no entanto, por ter levado demasiado a sério o respeito devido à jurisprudência, fui artífice involuntário da derrota do meu cliente." (CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado. Introdução de Paolo Barile. Tradução de Eduardo Brandão. 2ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015. p. 103)
5- É bem verdade que a atuação advocatícia, por vezes, é desempenhada de forma imperita, o que merece a devida repreensão.