Não é mistério: o mandado de segurança é remédio constitucional que visa a proteção de direitos constitucionalmente estabelecidos. Poucos sabem, contudo, que o mecanismo teve sua origem a partir do desdobramento do Habeas Corpus¹. Foi previsto, pela primeira vez de forma autônoma, na Constituição de 1934, que dispunha que este seria cabível para proteção de direito "certo e incontestável". O remédio, entretanto, não foi previsto na Constituição de 1937. A primeira constituição a trazer o termo "líquido e certo", que se tornou tradição histórica no ordenamento constitucional brasileiro quando o assunto é "mandado de segurança", foi a de 1946.
Com relação ao termo "líquido e certo", curioso lembrar que, consoante entendimento do STF, introduzido na Súmula 625, a matéria que deve ser "certa" é aquela que corresponde aos fatos, já que a controvérsia sobre matéria de direito não impede a concessão do mandado de segurança. Quanto à liquidez do direito, essa se refere ao quantum do que se pleiteia, sendo certo que, quanto aos dois requisitos, devem ser demonstrados de plano, com prova pré-constituída [documental] e que se dispense a dilação probatória, uma vez que via mandamental, por sua natureza célere, não pode abarcar fase de instrução.
Conforme aponta Alexandre de Moraes (2021, p. 216), o mandado de segurança, remédio constitucional previsto no art. 5°, incisos LXIX e LXX, da Carta Magna brasileira e regulamentado pela lei 12.016/09, é ação constitucional, de natureza cível, consistindo em verdadeiro mecanismo de defesa das liberdades civis e políticas do cidadão, sendo cabíveis contra atos discricionários e vinculados, e sempre observado se há existência de atos ilegais, praticados por autoridades públicas ou particulares que estejam nessa função.
Nunes Castro (1967, p. 54), por sua vez, já discorria há tempos sobre a proteção do mandado de segurança, afirmando que o instituto trata de assegurar as obrigações negativas do Estado, que, como organização sociojurídica do poder, não deve lesar direitos individuais.
A Constituição Federal de 1988 inovou no ordenamento jurídico quando previu o mandado de segurança coletivo. Tal instrumento se diferencia do individual apenas pelo fato de buscar a proteção de direitos da coletividade, assim entendidos os transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular um grupo ou categoria de pessoas ligadas entre si; e os direitos individuais homogêneos, sendo os decorrentes de origem comum e da atividade ou situação específica da totalidade ou de parte dos associados ou membros do impetrante, conforme incisos I e II, do parágrafo único, do art. 21 da lei 12.016/09. O mandado de segurança coletivo veio a partir da clara concepção de proteção não apenas dos direitos individuais, mas também daqueles coletivos e difusos, cujos titulares não podem ser individualizados, mas que, da mesma forma, possuem direitos que precisam ser preservados, instituído a partir do paradigma do Estado Democrático de Direito, no Brasil (NETTO, 1998).
Feitas as considerações históricas, passa-se ao recente julgamento do STF, no bojo da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4296-DF, realizado em junho de 2021, no qual foram declaradas inconstitucionais alguns dispositivos da Lei do Mandado de Segurança.
A ação, proposta pelo Conselho Federal da OAB, apontava como ilegais "a limitação indevida do alcance do mandado de segurança" e "a violação da liberdade de atividade econômica e do amplo acesso ao Poder Judiciário", além do "desrespeito ao exercício da advocacia".
O STF declarou a procedência do pedido em relação à proibição de concessão de liminares "que tenham por objeto a compensação de créditos tributários, a entrega de mercadorias e bens provenientes do exterior, a reclassificação ou equiparação de servidores públicos e a concessão de aumento ou a extensão de vantagens ou pagamento de qualquer natureza", da forma como previsto no art. 7°, §2° da Lei do Mandado de Segurança, sob o argumento de que o referido dispositivo interfere no poder geral de cautela dos magistrados, havendo, portanto, interferência indevida no Poder Judiciário e na função jurisdicional, no que se refere à autonomia funcional dos juízes e, consequentemente, infringência ao princípio da Separação dos Poderes.
A Corte Suprema entendeu que o legislador estabeleceu uma restrição desarrazoada e inconciliável com a própria natureza do MS, cuja consequência traz limitações à prestação jurisdicional e ao acesso à Justiça. É só se imaginar, por exemplo, a hipótese da existência de uma mercadoria perecível, cujo titular precisa da concessão de liminar para a sua entrega, da forma como descrito no já mencionado art. 7°, §2°, da lei.
Sob o mesmo argumento, também houve a declaração de inconstitucionalidade do art. 22, §2° da lei 12.016/09, haja vista que o dispositivo prevê que a liminar só poderá ser concedida após audiência do representante judicial da pessoa jurídica responsável pela autoridade, cujo ato esteja sendo questionado. Ora, é possível observar que a necessidade de oitiva da autoridade quebra a própria razão de ser das liminares, considerando, ainda, que o mandado de segurança não possui instrução probatória. Assim, a autoridade coatora poderia ser ouvida antes da liminar, otimizando a celeridade do instrumento e podendo minimizando o risco de prejuízos ao agente que sofreu o abuso do direito.
Por outro lado, o STF manteve incólume o art. 2º da lei 12.016/09, que trata da concessão de segurança contra atos de gestão. Seguindo a linha da jurisprudência já consolidada, bem como da doutrina tradicional, o STF reafirmou que os atos de gestão são aqueles oriundos de pessoas jurídicas de direito privado, que dizem respeito a atos comerciais, distinguindo-se, portanto, dos atos de império², que são próprios da atividade administrativa.
Com esse entendimento, preservou-se a intenção do legislador de que os atos de gestão não serão passíveis de controle pela via mandamental, tendo em vista que esses não são emanados por autoridades públicas no exercício de função eminentemente pública, sendo que a isonomia pretendida entre os particulares estaria violada, caso esses atos fossem tratados como de autoridades públicas. Além disso, é uma garantia concebida para atos de Poder Público, conforme o próprio dispositivo constitucional prevê, assim como historicamente o tema foi tratado dessa maneira.
Prazo Decadencial
É longo o entendimento do STF pela constitucionalidade da estipulação de prazo decadencial para impetração de MS, sempre se manifestando sobre o tema, de maneira incidental, conforme julgados (STF – AgR AI 498551/SP, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 28/04/2015, 1ª turma; STF – MS 27068/DF, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 11/06/2013, 2ª turma; STF – MS 27443/DF, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 01/10/2008 – julgado em 28/10/2009, Pleno). Na recente e susmonecionada ADI, o Supremo assentou que a estipulação de prazo visa, tão somente, a garantir a segurança jurídica, tendo em vista que, caso fosse possível a impetração de MS a qualquer tempo, haveria grande desgaste, principalmente para a Administração Pública [que teria que conviver com a insegurança de ter seus atos questionados a qualquer momento]. Além disso, a finalização do prazo não retira o direito em si, que poderá ser reconhecido por via de ação pelo procedimento comum.
Honorários: Não cabe honorários de sucumbência no MS, mantendo entendimento firmado na Súmula 512/STF
Na mesma oportunidade, o STF declarou a constitucionalidade do art. 25. Manteve, assim, sua tradicional jurisprudência sobre o tema, já firmada desde antes da CF/88, disposta na Súmula 512/STF³, pelo qual constitui-se em legítima decisão política do legislador a exclusão da incidência de honorários de sucumbência. Observou-se que o advogado não ficará desamparado, pois ainda terá direito aos honorários contratuais, que possuem natureza alimentar e devem ser, regularmente, prestados.
NOTA – Em decisão de controle concentrado de constitucionalidade, na ADIn 4296/DF, o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade dos arts. 1°, §2°; art. 7°, inciso III; art. 23; e art. 25 da lei 12.016/09 e a inconstitucionalidade dos arts. 7°, §2° e 22, §2°, assentando sua tradicional jurisprudência sobre a impossibilidade de a legislação criar hipóteses consideradas desarrazoadas de proibição na concessão de medidas cautelares, sob pena de limitação ilegítima da função jurisdicional dos magistrados e, com isso, violação ao princípio da separação dos Poderes.
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1- Wald, A. (1956). As Origens do Mandado de Segurança. Revista Do Serviço Público, 72(03), 360-375. Disponível aqui.
2- Hely Lopes de Meireles já pontuava essa diferença, esclarecendo que:
Atos de império ou de autoridade são todos aqueles que a Administração pratica usando de sua supremacia sobre o administrado ou servidor e lhe impõe obrigatório atendimento. (...) Atos de gestão são os que a Administração pratica sem usar de sua supremacia sobre os destinatários. Tal ocorre nos atos puramente de administração dos bens e serviços públicos e nos negociais com os particulares, que não exigem coerção sobre os interessados. (Meireles, 2008, p. 168-169).
3- Súmula 512
Não cabe condenação em honorários de advogado na ação de mandado de segurança.
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MEIRELES, Hely Lopes de. Direito Administrativo Brasileiro. 34ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 37ª ed. São Paulo: Atlas, 2021.
NUNES, Castro. Do mandado de segurança e de outros meios de defesa contra atos do poder público. 7. ed. (atualizada por José de Aguiar Dias). Rio de Janeiro: Forense, 1967.
NETTO, Menelick de Carvalho. A hermenêutica constitucional sob o paradigma do paradigma do Estado Democrático de Direito. Revista Notícia do Direito Brasileiro. Nova Série, n° 6. Brasília: Ed. UNB, 1998.
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