A magistratura brasileira, não é de hoje, tem sido alvo de muitas críticas até ataques por parte de parcela da sociedade, insatisfeita seja com julgamentos de cortes superiores, seja com benefícios e prerrogativas entendidos como injustificáveis pelo cidadão médio na atual conjuntura socioeconômica do país.
Mas há uma particularidade da magistratura sobre a qual não se discute, exceto por aqueles juízes que se veem processados ou pelos que atuam em processos de natureza disciplinar contra juízes.
Não são garantidos aos juízes os mesmos direitos – decorrentes da ampla defesa – que estes devem fazer valer aos jurisdicionados em sua prática diária.
Os magistrados quando diante de acusações disciplinares, são julgados pelos Tribunais Plenos ou pelos Órgãos Especiais dos Tribunais aos quais são vinculados, em procedimento regido pela resolução 135 do CNJ1, que se assemelha ao procedimento ordinário do Código de Processo Penal até que seja proferida a decisão pelo órgão competente.
Desta decisão, que pode ser implacável, não lhes é garantido um simples recurso com ampla devolutividade, que "suba nos autos", sem necessidade de juntar cópia (integral) do processo que se pretende questionar – como ocorre em uma apelação, recurso por excelência – que possa revalorar provas, analisar a (in)suficiência de standards probatórios, algo que juízes vêem e fazem todos os dias em sua prática e que lhes é negado quando precisam se defender. Todos os outros servidores têm direito a recursos administrativos/hierárquicos (a título de exemplo, têm-se os arts. 107 e ss. da lei 8112/1990, o Regime Jurídico dos servidores públicos civis da União), mas os juízes não.
A revisão disciplinar, prevista nos arts. 82 e ss. do regimento interno do CNJ2, embora já tenha servido à correção de injustiças3, pode facilmente esbarrar numa simples alegação de que não há fundamento novo a ser analisado em sede de revisão, ou de ausência de "flagrante dissociação entre o conjunto probatório e o julgamento levado a efeito pelo tribunal"4, ou de que visa rediscutir fatos objeto do procedimento disciplinar, eis que análoga à ação rescisória e à revisão criminal.
Além disso, há posição – não unânime – no sentido do não cabimento sequer de embargos de declaração em processos de natureza administrativa contra magistrados, mesmo quando de natureza disciplinar/punitiva5, por ausência de disposição expressa, a despeito de serem os embargos instrumentos que visam o esclarecimento/aclaramento/integração das decisões e não sua reforma, eis que toda decisão e julgador são passíveis de equívocos.
Esta falta de maiores salvaguardas nos julgamentos acaba por interferir perigosamente nas garantias de imparcialidade dos magistrados, especialmente a sagrada independência funcional, posto que podem, com isso, se sentirem compelidos a julgarem conforme "seu" tribunal espera, e não conforme seu entendimento.
O julgamento de recursos "ordinários", que possibilitassem a reanálise de PADs julgados por Tribunais tampouco seriam causa de assoberbamento nos trabalhos do CNJ, eis que o volume de PAD contra magistrados é ínfimo em comparação com a quantidade de reclamações disciplinares julgadas diariamente6, muitas delas, como se sabe, buscando levar para a via disciplinar irresignações de partes quanto a decisões proferidas em processos judiciais. Em contrapartida, a reanálise, quando não reformasse decisões indevidas, garantiria um duplo grau que conferiria ainda mais legitimidade aos julgamentos disciplinares.
Esta justiça "implacável" faz com que alguns magistrados percam a fé depositada na justiça (valor e instituição) que buscaram honrar ao longo de uma vida e tenham receio de julgar desta ou daquela forma, para evitar reclamações e processos, o que faz lembrar o alerta do jurista uruguaio Eduardo Couture de que "No dia em que os juízes tiverem medo, nenhum cidadão poderá dormir tranquilo".
Se é importante ao Judiciário não apenas ser probo, mas também parecê-lo, também é fundamental que seja – e pareça – justo, especialmente com seus membros.
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1 Disponível aqui.
2 Disponível aqui.
3 Como nos casos da (então) juíza (e agora desembargadora aposentada) Kenarik Boujukian (Revisão Disciplinar 0002474-75.2017.2.00.0000) e do juiz Roberto Luiz Corcioli Filho (Revisão Disciplinar 0004729-35.2019.2.00.0000), que ficaram nacionalmente conhecidos em razão das indevidas punições recebidas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.
4 CNJ - REVDIS - Processo de Revisão Disciplinar - Conselheiro - 0003740-97.2017.2.00.0000 - Rel. LUCIANO FROTA - 292ª Sessão Ordinária - julgado em 4/6/2019.
5 Neste sentido:
CNJ - PCA - Procedimento de Controle Administrativo - 0005592-93.2016.2.00.0000 - Rel. ALOYSIO CORRÊA DA VEIGA - 28ª Sessão Virtual - julgado em 11/10/2017.
CNJ - RA – Recurso Administrativo em RD - Reclamação Disciplinar - 0005273-57.2018.2.00.0000 - Rel. HUMBERTO MARTINS - 66ª Sessão Virtual - julgado em 5/6/2020.
CNJ - RA – Recurso Administrativo em RD - Reclamação Disciplinar - 0004381-85.2017.2.00.0000 - Rel. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA - 273ª Sessão Ordinária - julgado em 5/6/2018.
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR EM FACE DE MAGISTRADO. NÃO CABIMENTO. INADMISSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. NÃO CONHECIDO. 1. A possibilidade de oposição de embargos em processos de natureza administrativa é matéria que, a despeito de não ser unânime, encontra defensores na doutrina e na jurisprudência, que como principais premissas: i) a aplicação supletiva do processo civil aos procedimentos administrativos (art. 15 do CPC/2015); ii) o dever constitucional de fundamentação das decisões proferidas pelo Estado-Administração e Estado-Juiz (art. 93, incisos X e XI e art. 37, CF/88); iii) a natureza "sui generis" dos embargos, cuja finalidade precípua é de esclarecer e integrar o pronunciamento judicial, e não de reforma-lo, logo, tornando mais efetiva a garantia constitucional de decisões fundamentadas; iv) o constante processo de formação de precedentes administrativos e judiciais, também aplicáveis em certos casos de forma vinculante à Administração. 2. A jurisprudência mais recente deste Tribunal de Justiça superou tal entendimento, sendo assentada na inadmissibilidade dos embargos aclaratórios em respeito a princípio da taxatividade e da legalidade, uma vez que a Resolução n. 135, assim como a legislação administrativa vigente, não prevê o seu cabimento. Precedente. 3. Os processos disciplinares contra magistrado são regulados pela Lei Complementar nº 35/79, pela Resolução CNJ nº 8.112/90 e 9.784/99, regramentos estes que não contemplam a existência dos aclaratórios. 4. Recurso não conhecido. (TJES, Classe: Embargos de Declaração Cível PADMag 0002914-77.2019.8.08.0000, Relatora: Desa. ELISABETH LORDES, Órgão julgador: TRIBUNAL PLENO, Data de Julgamento: 08/04/2021, Data da Publicação no Diário: 19/6/2021).
6 A Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Corregedora Nacional de Justiça, já se manifestou no sentido de que "o uso da via disciplinar contra juízes e promotores que decidem ou acusam mal não chega a ser surpreendente. O Conselho Nacional e as Corregedorias-Gerais e Regionais de Justiça enfrentam uma avalanche de reclamações disciplinares motivadas por insatisfação com o conteúdo de decisões." (manifestação no julgamento da Revisão Disciplinar 0004729-35.2019.2.00.0000).