Migalhas de Peso

O status normativo – a natureza jurídica – do substantivo Excelência

A previsão do Código Judiciário do Estado de São Paulo.

15/7/2021

(Imagem: Divulgação)

“Gozam os magistrados, além dos conferidos aos servidores públicos, em geral, e não incompatíveis com o seu ‘status’, do direito de receber o tratamento de ‘excelência’” (destaque deste autor). Assim é a redação do art. 189 do Código Judiciário do Estado de São Paulo, instituído pelo decreto-lei complementar 3, de 27 de agosto de 1969. No mesmo código, tem-se o emprego do substantivo, Excelência, no § 2º do art. 53 (referindo-se aos membros do tribunal), e, ainda, no art. 100, aos membros dos tribunais de alçada, extintos com o advento da EC 45/2004 (art. 4º). Melhor teria sido o emprego da palavra prerrogativa (inerente ao cargo).

No Tribunal Regional Federal da 3ª região, a designação aos seus membros aparece no parágrafo único do art. 28 do Regimento Interno, na redação dada pela emenda Regimental  08, publicada no DJ de 30.06.1998, Seção 2, pág. 257.

Dentre os tribunais de superposição (Dinamarco, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, I, Malheiros, 8ª edição, 2016, pág. 640), cito, como guardião da Constituição (art. 102, caput), o art. 16, parágrafo único, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, ao prever que seus ministros receberão o tratamento de Excelência, conservando o título mesmo após a aposentadoria (art. 2º, II, da lei Complementar 152, de 3 de dezembro de 2015, a propósito do art. 100 do ADCT, na redação da EC 88/2015, objeto da ADI 5.316), algo reiterado, diga-se de passagem, nos tribunais brasileiros pelos respectivos regimentos internos ou leis quejandas (e.g., leis orgânicas, nos tribunais estaduais).

Na LC 35, de 14 de março de 1979 - lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN), não há referência ao substantivo excelência. Também não encontramos a referência no Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo - TJSP.

Com efeito, sem olvidar do art. 6º da lei 8.906, de 4 de julho de 1994 - Estatuto da OAB, deixe-se claro que o tratamento ao juiz, como Excelência, independentemente do ramo do Poder Judiciário, em qualquer instância ou tribunal, é, sem sombra de dúvida, observar a lei e não exclusivamente uma designação honorífica à autoridade. Isso não diminui a advocacia privada ou pública, polícia ou ministério público, de qualquer ente federativo (art. 18, CF), por identidade de razão.

Neste sentido, no c. STF: “Os regimentos internos dos Tribunais, editados com base no art. 96, I, a, da Constituição Federal, consubstanciam normas primárias de idêntica categoria às leis, solucionando-se eventual antinomia não por critérios hierárquicos mas, sim, pela substância regulada, sendo que, no que tange ao funcionamento e organização dos afazeres do Estado-Juiz, prepondera o dispositivo regimental. [HC 143.333, rel. min. Edson Fachin, j. 12-4-2018, P, DJE de 21-3-2019.]” (destaque deste autor).

Se disposição de regimento interno de tribunal tem status de lei, a fortiori não há qualquer obstáculo na atribuição do peso normativo ao decreto-lei complementar que instituiu o Código Judiciário do Estado de São Paulo, em especial quando da utilização do substantivo Excelência, aos seus membros, no exercício de suas funções ou em razão dela, notadamente. Aliás, eis o destaque da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo no que tange ao decreto-lei complementar: “Norma expedida pelo Poder Executivo, com força de lei, sem a participação da Assembleia Legislativa, em períodos não democráticos. Embora a Constituição Estadual de 1989 não preveja esta espécie normativa, alguns decretos-leis complementares foram por ela recepcionados, permanecendo vigentes como leis complementares”.

Sendo assim, para ficarmos com o Poder Judiciário do Estado de São Paulo, indaga-se: qual é a natureza jurídica da previsão legal do substantivo excelência?

Pormenorizando, tem a norma do Código Judiciário do Estado de São Paulo natureza de LC estadual, porquanto instituída pelo decreto-lei complementar 3, de 27 de agosto de 1969? Ou, por outro lado, status de lei ordinária estadual, já que não se cuida - a referência - de matéria pertinente à organização ou ao funcionamento do Poder?

A questão tem relevância, com as proporções devidas, ao observarmos este acórdão do egrégio Supremo Tribunal Federal, nestes termos:

“Ementa: Direito Constitucional e Administrativo. Recurso Extraordinário. Férias de sessenta dias dos Procuradores da Fazenda Nacional. Revogação e não Recepção pela Constituição Federal dos dispositivos que concediam o benefício. 1. A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional é órgão integrante da Advocacia-Geral da União, instituição que representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo (art. 131, CF/88). 2. A lei 2.123/1953, a lei 4.069/1962 e o Decreto-lei 147/1967, na parte em que disciplinam o regime jurídico dos Procuradores da Fazenda, não foram recepcionados pela Constituição com status de lei complementar, mas sim com status de lei ordinária, em razão de não se tratar de matéria pertinente à organização e funcionamento da Advocacia-Geral da União (art. 131, CF/88). Portanto, o art. 18 da lei 9.527/1997 revogou expressamente o art.1º da lei 2.123/1953 e o art. 17, parágrafo único da lei  4.069/1962, que supostamente garantiriam o direito a sessenta dias de férias aos Procuradores da Fazenda Nacional. 3. De igual forma, o art. 30 do Decreto-lei 147/1967, que equiparava os vencimentos e vantagens dos Procuradores da Fazenda Nacional aos Procuradores da República, também foi revogado tacitamente pelo art. 5º da lei  9.527/1997. A finalidade do dispositivo era uniformizar o regime de férias dos advogados públicos, de modo a conceder tratamento isonômico às carreiras jurídicas no âmbito da União. 4. O tratamento dos Procuradores da Fazenda Nacional não pode ser diferente do conferido aos demais advogados públicos integrantes do mesmo corpo de procuradores que defendem os interesses da União. Não há justificativa legítima para o tratamento diferenciado da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, em contraste com os demais integrantes da Advocacia-Geral da União. 5. Ainda que os dispositivos não tivessem sido revogados pela lei 9.527/1997, o art. 37, XIII, da Constituição veda a vinculação de remuneração entre carreiras no serviço público. É firme a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido da revogação de normas infraconstitucionais que estabeleçam equiparação entre cargos públicos. 6. Provimento do recurso extraordinário, com a fixação da seguinte tese: ‘Os Procuradores da Fazenda Nacional não possuem direito a férias de 60 (sessenta) dias, nos termos da legislação constitucional e infraconstitucional vigentes’. (RE 594481, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 20/4/20, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-135 DIVULG 29-5-20 PUBLIC 01-06-2020).” (destaque deste autor).

Pertinente uma observação, acerca da natureza jurídica da norma. Num mesmo diploma não há empecilho na existência de normas legais distintas, no apanágio material e não exclusivamente formal, em destaque. Ou seja, com natureza jurídica diferenciada, como ocorre, por exemplo, na recepção pela Constituição de 1988 relativamente ao Código Tributário Nacional - CTN, instituído pela lei 5.172, de 25 de outubro de 1966, fissurando nas suas disposições normas ordinárias e complementares (ADI 2.405, voto do rel. min. Alexandre de Moraes, j. 20-9-2019, P, DJE de 3-10-2019). O próprio Poder Constituinte (Originário), delimitou no art. 146, III, b, que cabe à lei complementar, dentre outros, estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários (v. Súmula Vinculante 8).

Destarte, o art. 113 do CTN, inegavelmente, possui natureza jurídica de lei complementar, na acepção material da norma. Ao revés, possui natureza de lei ordinária o art. 209 do CTN (acerca da expressão “Fazenda Pública” quando utilizada sem a qualificação do respectivo ente político). Observe-se, entrementes, a autorizada doutrina: “...quer a doutrina mais tradicional que, implantados, primeiro em 1967 e, depois, em 1988, novos regimes constitucionais, a lei em exame, mesmo não tendo sido aprovada com o quorum especial e qualificado do art. 69 da Carta Suprema, assumiu, ipso facto, a natureza de lei complementar, por versar sobre matérias que estão hoje reservadas a esta modalidade de ato normativo. Data maxima venia, assim não nos parece. A nosso ver, a lei 5.172/66 continua, sim, sendo formalmente uma simples lei ordinária: materialmente, entretanto, é lei de cunho nacional... Evidentemente, a matéria de que a lei em questão cuida (normas gerais em matéria de legislação tributária) passou a ser privativa de lei complementar, por determinação, primeiro, do art. 18, § 1º, da Carta de 1967/69 e, agora, do art. 146 da atual Constituição. Desta forma, a lei nacional 5.172/66 só poderá ser revogada ou modificada por lei formalmente complementar.” (Carraza, Roque Antônio, Curso de Direito Constitucional Tributário. 9ª ed. Malheiros, 1997, p. 494/495, nota 25) (apud Leandro Paulsen, Direito Tributário Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e da jurisprudência, 17ª edição, Livraria do Advogado editora, Porto Alegre, 2015, pág. 643).

De todo modo, seja pelo aspecto formal ou material, com maior razão esta vertente, nada impede a fusão em determinado diploma legal de normas jurídicas distintas (lei ordinária e lei complementar), como se dá, outrossim, com as leis 8.212 e 8.213, de 1991 - custeio e benefício da Previdência Social.

Portanto, não é absurdo ou crime de hermenêutica a defesa no sentido de que a natureza jurídica do substantivo excelência, previsto no Código Judiciário do Estado de São Paulo é de lei ordinária estadual, de acordo com a teoria da recepção (sobre direito pré-constitucional, especificamente na ADPF, cfr. Gilmar Ferreira Mendes et al, Curso de Direito Constitucional, 14ª edição, Saraiva, 2019, pág. 1448), aliado ao julgamento do RE 594481, como recente paradigma no STF. Ao menos sob a acepção material da norma. Por arrastamento, o termo utilizado nos regimentos internos dos tribunais teria da mesma forma natureza de lei ordinária estadual; ou lei ordinária nacional, como se dá, v.g., com a disposição regimental do TRF3 (art. 28, parágrafo único). Em um ou outro sentido, o fato é que se cuida de lei e lei há de ser cumprida, porque possui presunção relativa de constitucionalidade.

Tassus Dinamarco
Advogado, pós-graduado em Direito Processual Civil e Direito Constitucional Processual pela Universidade Católica de Santos.

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