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Do conflito de coisas julgadas, uma análise do EAREsp 600.811

Trata-se de um embate processual relativo ao instituto da coisa julgada, o qual diz respeito ao conflito de decisões de mérito que se tornaram imutáveis, como no caso das sentenças.

5/7/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

INTRODUÇÃO

Busca-se, com a redação desse artigo, navegar por tema de grande interesse da doutrina nacional. Trata-se de um embate processual relativo ao instituto da coisa julgada, o qual diz respeito ao conflito de decisões de mérito que se tornaram imutáveis, como no caso das sentenças. Para tanto, será necessário que se transite por temas paralelos ao cerne do trabalho como o da segurança jurídica e da coisa julgada.

SEGURANÇA JURÍDICA

Tema de notória importância diz respeito ao instituto da segurança jurídica. Em outras palavras, a proteção juridicamente conferida a coletividade com a estabilidade e coerência das decisões proferidas pelo Poder Judiciário.

Podemos defini-la de forma que as decisões do Poder Judiciário e da Administração Pública tragam um estado de certeza e definitividade as relações sociais, e, em que pese as sociedades modernas serem dotadas de movimento e dinamicidade, evitar conturbação e incerteza na convivência de seus membros.1

A segurança jurídica e social espraia os seus efeitos por todos os setores da sociedade, afim de trazer contornos de civilidade a todas as relações travadas entre cidadãos ou entre esses e o Estado, revelando a sua função e o seu efeito primordial.2

Como veremos a frente, o conflito de coisas julgadas (sentenças) para gabaritada doutrina e no nosso entender, a sentença superveniente conflitante é válida até que o interessado faça uso da ação rescisória, afim de desconstituir o pronunciamento de mérito ofensivo à coisa julgada.3

Esse posicionamento reflete os efeitos da segurança jurídica, visto que o próprio ordenamento dispõe de mecanismo para sanar o indesejado conflito, ainda que não seja o almejado pelo sistema, pois o mais adequado seria que não houvessem decisões de mérito conflitantes produzindo efeitos ao mesmo tempo.

Derradeiramente, vale frisar que esse instituto possui tamanha importância que nem lei posterior tem força para desconstituir relações estabelecidas sob o manto de lei anterior, é o que atesta também o artigo 6° da Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro.4

Ressalva importante diz respeito a publicação de lei nova no decorrer do trâmite de determinado processo. Nesse caso, a nova norma incidirá imediatamente aos atos que devam ser praticados, como o é com a lei processual civil vigente.

COISA JULGADA

O instituto da coisa julgada por sua vez, não menos importante, também diz respeito a solidez e eficácia das decisões judiciais proferidas, só que de forma mais objetiva.

Uma vez proferida decisão judicial, e não tendo sido essa recorrida ou impugnada, forma-se uma camada de proteção e imutabilidade, tornando os seus efeitos definitivos no mundo jurídico, não mais passíveis de serem revistos, salvo exceções legais como a ação rescisória.

Pelo fato ser princípio inserido na Constituição Federal, não reflete unicamente um instituto do ramo da ciência processual em geral, mas inegavelmente constitucional, maximizando, dessa maneira, a sua relevância.5

Em outras palavras, a título de exemplo, no caso de proferida uma sentença judicial e não sendo essa impugnada, seja por embargos de declaração seja por apelação, os seus efeitos decisórios se tornam imutáveis e irreversíveis, tanto dentro do processo em que foi proferida, quando para o mundo exterior, investindo aquela decisão de uma autoridade incapaz de ser desconstituída, via de regra.

Importante mencionar, em que pese com extrema concisão, o fato de existirem duas espécies primordiais do gênero coisa julgada, a formal e a material.

A coisa julgada material é aquela onde os efeitos imutáveis da decisão se espraiam para fora do processo originário, tonando, assim, imutável aquela relação jurídica, não mais passível de revisão, dentro ou fora do processo, excetuando-se as hipóteses da ação rescisória.

De outro lado, encontra-se o instituto da coisa julgada formal, por alguns chamada de preclusão máxima6. Diz respeito a decisão que se torna imutável apenas em determinado processo, havendo a possibilidade de ser revista, como no caso de julgamento do processo sem pronunciamento sobre o mérito, hipótese na qual pode-se reanalisar a questão caso sanada a causa extintiva, nos dizeres do artigo 486 do CPC/15.

A coisa julgada formal é um instituto processual que se aproxima bastante da denominada preclusão, consistindo em fenômeno endoprocessual, ou seja, seus efeitos se expandem sempre nos limites do processo em questão, não atingindo questões externas.7

Digno de menção o fato de que a coisa julgada material depende da existência da coisa julgada formal, logicamente essa vindo a se formar primeiro do que aquela.

DO CONFLITO DE COISAS JULGADAS, POSIÇÃO DOUTRINÁRIA E UMA ANÁLISE DO EAREsp 600.811

Tendo em vista ser o Superior Tribunal de Justiça o encarregado pela última palavra acerca da interpretação da legislação infraconstitucional pelo ordenamento vigente, em razão das divergências apresentadas sobre o tema, foi necessário que a Corte Especial se posicionasse quando do julgamento do EAREsp 600.811.

Primeiramente, insta dizer, não se trata de questão de fácil compreensão, com aclaradas vozes para cada lado, defendendo com incrível qualidade argumentativa os pontos colocados.

A nossa posição é no sentido de que a decisão que nasce posteriormente e ofende a coisa julgada material é plenamente válida até que seja corretamente desconstituída. E o meio adequado para a sua desconstituição é pelo manejo da ação rescisória, único mecanismo legal para tanto.

Ora, se o legislador previu expressamente, no inciso IV do artigo 966 do CPC, mecanismo apto a desconstituir decisão ofensiva da coisa julgada, não nos parece correto, que a primeira coisa julgada deva prevalecer.

Mas, para legitimar tal posicionamento, é imperioso trazer aqui as vozes divergentes, além do veredicto dado pelo STJ.

Existem conceituados doutrinadores que profligam posição no sentido de ser a primeira decisão protegida pela coisa julgada que deve imperar no mundo jurídico e dos fatos em razão de uma decisão que nasce e ofende a coisa julgada não ser forte e nem legítima.8

Sustentam que não se pode ignorar a primeira decisão que formou coisa julgada, devendo ela prevalecer. A segunda decisão deverá ser desconstituída por meio da ação rescisória, porém, em caso do transcurso do prazo decadencial de dois anos sem iniciativa de qualquer interessado, mesmo assim, a decisão que deverá predominar é a primeira, ao passo que a segunda decisão formadora de coisa julgada foi proferida ao largo da lei.

Ocorre que, mais correto se mostra manter a segunda decisão conflituosa formadora de coisa julgada. Explica-se: o legislador previu no inciso IV do artigo 966 do CPC/15 a possibilidade de desconstituição de decisão posteriormente violadora da coisa julgada.

Ora, se a própria lei franqueia essa possibilidade ao interessado, transcorrido o prazo sem que seja proposta a ação, ou, obviamente, se proposta julgada improcedente, a segunda coisa julgada possui prevalência sobre a primeira, por inércia da parte e pelo critério da temporalidade, pois decisão posterior sobrevive sobre a anterior.9

A decisão formada posteriormente ostenta as mesmas qualidades processuais e materiais da primeira. Em outras palavras, é válida e eficaz, não se podendo afirmar o oposto, tornando sem efeito decisão sobre mesma matéria proferida anteriormente.

Essa é a posição adotada pela Corte Especial do STJ no julgamento dos embargos de divergência. No voto do relator (vencedor), ministro Og Fernandes, salientou-se que em caso de decisões válidas e conflitantes deve prevalecer a segunda delas, caso não desconstituída legalmente.10

Em divergência, o ministro João Otávio Noronha enfatizou não ser viável que uma segunda coisa julgada se forme, inviabilizado os efeitos da primeira. Não sendo lógico presumir tal decisão como sendo justa e constitucional, em clara ofensa ao princípio da coisa julgada e da segurança jurídica.11

Em que pese as posições doutrinárias e jurisprudenciais em sentido contrário, mesmo não sendo desejável o conflito de sentenças, pelo ordenamento vigente, a solução menos pior e mais lógica para o entrave diz respeito a prevalência da segunda coisa julgada formada, passível de ser desconstituída por meio de ação rescisória.

Cremos não ser situação comum na praxe forense o conflito de decisões que perfazem a coisa julgada, ainda mais no caso de sentenças. Mas já tivemos a oportunidade de atuar em ações rescisórias que tinham por objetivo desconstituir decisões que ofenderam a coisa julgada, em razão disso, a melhor solução em eventual confronto se mostra nesse sentido, o da desconstituição da decisão ofensora.

Em que pese a literatura a favor da primeira ou segunda decisões de mérito transitadas em julgado que devam prevalecer, o tribunal superior caminhou pela lógica, ao amparo da lei, chegando a uma solução razoável e equilibrada dentro de todas as possíveis.

Pelo bem, agora a questão está bem delineada jurisprudencialmente, cabendo aos demais tribunais e juízos singulares orientarem-se pelo posicionamento de caráter uniformizador da corte especial no julgamento do EAREsp 600.811.

Por fim, após um delicado estudo e a análise de todas as posições sobre o assunto, é de melhor tom para todo o ordenamento jurídico, que nos filiemos a posição exarada pelo STJ, decisão que acompanha grande parte da doutrina e traz uma orientação para essa questão processual que, eventualmente, possa vir a surgir.

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1 BARROSO, Luís Roberto. A segurança jurídica na era da velocidade e do pragmatismo. Revista da Associação dos Juízes Federais do Brasil. Ed. Impetus, v. 19, n. 64, p. 77-90, jul./set. 2000.
2 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7.ed. 8. reimp. Coimbra: Almedina, 2000. p. 257.
3 FREDIE DIDIER JR. e LEONARDO JOSÉ CARNEIRO DA CUNHA, Curso de Direito Processual Civil, Volume 3, 5ª ed., Edições Podivm, p. 373.
4 Disponível aqui. Acesso em: 5/5/2021.
5 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições do Direito Processual Civil. 5. ed. São Paulo, Malheiros, 2005. p. 302.
6 JOSÉ FREDERICO MARQUES, Instituições de Direito Processual Civil, Vol. IV, Revista, atualizada e complementada por Ovídio Rocha Barros Sandoval, Millennium, 2000, p. 353.
7 MOACYR AMARAL SANTOS, Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, Saraiva, Volume 3, 22ª ed., Atualizada por Maria Beatriz Amaral Santos Köhnen, p. 60.
8 LUIZ GUILHERME MARINONI, SÉRGIO CRUZ ARENHART e DANIEL MITIDIERO, O Novo Processo Civil, 3ª ed., RT, p. 619.
9 FREDIE DIDIER JR. e LEONARDO JOSÉ CARNEIRO DA CUNHA, Curso de Direito Processual Civil, Volume 3, 5ª ed., Edições Podivm, p. 373.
10 Trecho do voto do ministro Og Fernandes, no julgamento do EAREsp 600.811, pela Corte Especial do STJ, publicado em 7/2/2020.
11 Trecho do voto do ministro João Otávio Noronha, no julgamento do EAREsp 600.811, pela Corte Especial do STJ, publicado em 7/2/2020.

Luís Eduardo de Resende Moraes Oliveira
Advogado e sócio do escritório Maraui & Moraes Oliveira Advogados, pós-graduado (especialista) em direito processual civil pelo IDP, em direito civil e processual civil pela Escola da Magistratura do Distrito Federal e dos Territórios e em direito civil (família e sucessões) pelo CERS.

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