Migalhas de Peso

"Click"

Uma decisão que desconsidera o rigor do procedimento se marca pela inconstitucionalidade.

29/6/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Em um processo judicial, certo contribuinte (siderúrgica) almejava cancelar 3 (três) autos de infração lavrados por um estado.

No curso da ação o contribuinte requereu a produção de prova pericial, pois para comprovar suas alegações e demonstrar ao juiz como se dava o seu processo de industrialização e a destinação dos itens, objeto das autuações, dentro da cadeia produtiva, necessitaria de dilação probatória.

Pretendia o contribuinte comprovar que os produtos que originaram as dívidas eram utilizados de forma direta no seu processo produtivo, se integrando ao novo produto ou que fossem integralmente consumidos imediata e integralmente no processo industrial deste contribuinte.

Não obstante, apesar da complexidade do caso e de comprovada a necessidade da prova pericial, o juiz da causa indeferiu o pleito sob o fundamento de que se tratava de matéria de direito e que, com base no seu livre convencimento e celeridade processual, poderia julgar o feito de forma antecipada, não permitindo a produção da prova requerida pela parte.

Em sede de sentença, muito embora afirmou o julgador, em despacho anterior, que se tratava de matéria de direito, citou diversas vezes que a parte não fez a prova técnica de que os itens glosados pelo estado se integravam ao novo produto ou que eram consumidos no processo industrial.

*Apesar da contradição constante na sentença, cujo conteúdo foi devidamente enfrentado em sede de recurso, haja vista a violação do devido processo legal, contraditório e ampla defesa do contribuinte, não é o intuito deste artigo criticar a sentença – até mesmo porque o local de fala é no ambiente processualizado.

O intuito da presente análise se dá, portanto, com relação à ponderação da celeridade processual versus a garantia constitucional relativa ao devido processo legal.

Para ficar mais palatável a leitura, faremos breve paralelo com o filme "Click" (2006), estrelado pelo ator Adam Sandler, dirigido por Frank Coraci. Na referida comédia, o personagem principal, Michael Newman, é um arquiteto workaholic, que muitas vezes opta por trabalhar ao invés de estar com sua família.

No contexto conturbado de sua vida, totalmente voltado para o trabalho, opta por adquirir um controle remoto universal que lhe permite "avançar" as partes "desagradáveis" ou não interessantes da sua vida, controlando sua realidade, pausando momentos, retrocedendo eventos do passado e assim por diante.

Ocorre que o controle remoto, com o tempo de uso, passou a entender as preferências da Michael e, por sua vez, passou a avançar/pular, de forma automática, partes essenciais da sua vida (porém previamente demarcadas pelo personagem como "desagradáveis"), momentos de evolução e lições importantes que poderia ter absorvido, inserindo-o em verdadeiro status de piloto automático - descontrolado de sua vida.

Ao encontrar-se no piloto automático, Michael não perpassou por fases importantes, sejam próprias, dos seus filhos, esposa e pais. Aqui, é possível demarcar que os eventos importantes mitigados por Michael, porém necessários para o seu conhecimento próprio e evolução representam, ficticiamente, princípios e garantias fundamentais dentro de um processo, de modo a ingressar na crítica indicada no estudo.

É que processo demanda debates – com igualdade no tratamento, análise de situações (conhecimento), experiências quanto à situação posta em debate – notadamente quando se tratar de questão complexa (provas), tempo, observância de ritos (devido processo legal) e segundas opiniões (duplo grau jurisdicional).

Ao mitigar qualquer uma dessas fases, o processo passa a se encontrar fora de um espaço procedimental adequado aos anseios do Estado Democrático de Direito.

No caso concreto, introduzido na presente análise, é certo que, em nome da celeridade processual (do controle remoto universal), o julgador não se permitiu perpassar por fases importantes do processo - fases demarcadas em princípios e garantias que regem o processo - sendo que o objetivo da parte era o de demonstrar o seu processo de produção, notadamente a aplicação dos itens glosados pelo estado, na sua operação industrial – demonstrar o direito pleiteado na petição inicial.

A principiologia romantizada na presente análise, ainda que de forma breve, representa direitos e garantias fundamentais dos cidadãos no processo que, de forma simétrica (segura) devem ser observadas por aqueles que se encontram à frente de funções públicas jurisdicionais, incumbidos em transformar atos decisionais em atos jurídicos legítimos.

Até mesmo porque processo não significa/representa instrumento a serviço do estado ensimesmado, na busca por escopos que, subjetivamente, são convenientes aos seus agentes (ou interesses alheios), mas sim instrumento disponível no sistema jurídico para/em prol do povo, estes os destinatários dos princípios e garantias constitucionais relativos ao Estado Democrático de Direito.

Ao acelerar o rito do processo, sem perpassar pela produção de provas, o julgador, portando o controle universal do filme "Click", deixou de perpassar por fase relevante do processo, em nome da celeridade, impedindo a produção de provas do direito defendido pela parte e, por sua vez, julgando o feito sem sequer conhecer o processo industrial do contribuinte, de forma desfavorável à parte.

Diante da sentença prematura, sem ter submetido o ato jurisdicional à principiologia própria do devido processo legal, a expectativa é que o Tribunal, órgão revisor (duplo grau jurisdicional), reconheça que o pleito do contribuinte não se trata de parâmetro burocrático, mas uma conquista constitucional inerente à própria cidadania e, assim, faça a revisão do ato mitigado/saltado pelo julgador de primeiro grau.

Muito embora a celeridade processual seja princípio importantíssimo no processo, que inclusive oferta sensação de justiça, é certo que fases processuais não podem ser atomizadas sob tal ponderação. Uma decisão que desconsidera o rigor do procedimento se marca pela inconstitucionalidade, pois esmorece princípios relativos a segurança jurídica, devido processo legal, contraditório e ampla defesa – garantias essas balizadas na Constituição de 1988, destinadas ao cidadão.

Tales Rodrigues
Advogado e consultor jurídico no Décio Freire Advogados, coordenador do Departamento Tributário. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributário. Mestre em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).

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