Migalhas de Peso

O grito da voz silenciada

Como mulheres, filhas desta pátria-mãe, tantas vezes não gentil, usemos a nossa voz para falar por aquelas que foram silenciadas.

24/6/2021

A violência contra a mulher é um desafio estrutural no Brasil. Uma realidade que exige enfrentamento permanente. A articulação entre instituições, entidades de classe, profissionais e sociedade civil organizada deve ser duradoura. Este é o grito por socorro da voz silenciada das mulheres diariamente mortas pela sua condição de gênero no Brasil.

Por todo o país, ecoa o grito surdo de muitas mulheres mortas, vitimadas por aquele que um dia personificou um companheiro de vida. O tema da violência contra a mulher é objeto de muitas notas de repúdio emitidas por diferentes instituições contando, inclusive, com o pronunciamento do presidente da mais alta Corte de Justiça do país. Entretanto, o sentimento demonstrado deve se materializar em ação, sob pena de contribuir para silenciar o pedido de socorro das vítimas de feminicídio.

O crime que desencadeou uma série de pronunciamentos e reportagens foi mais um feminicídio ocorrido aqui no Brasil, acompanhado por circunstâncias chocantes. A vítima, assim como tantas outras, era uma mulher e foi morta, de forma brutal, pelo seu ex-marido, na frente de suas filhas com dezesseis facadas, sendo dez desferidas no rosto, ao som dos gritos de horror de uma das filhas, que implorava ao pai que parasse.

Essa cena dantesca, para infelicidade e tristeza de todos nós, não é uma cena isolada. Infelizmente ela faz parte do universo feminino das mulheres brasileiras alcançando todas as classes sociais e profissionais. O que causou a repulsa ostensiva de todas as instituições de justiça, replicando inúmeras notas de repúdio, foi o fato de que essa vítima, em especial, além de ser mulher, era também integrante do poder judiciário, exercendo o cargo de juíza.

Para piorar tudo isso, há menos de um mês, um outro integrante do Poder Judiciário, no caso um Juiz, em exercício numa vara de família, emitiu algumas pérolas afirmando ser a violência de gênero um fenômeno cultural. Fazendo parte de uma sociedade que fincou suas raízes no terreno arenoso do patriarcado, disse, na ocasião, o referido Magistrado: “Se tem lei Maria da Penha contra a mãe, eu não tô nem aí. (sic) Uma coisa eu aprendi na vida de juiz: ninguém agride ninguém de graça” A afirmação dói nos nossos ouvidos.

Mas não poderíamos falar em violência contra a mulher, praticada em audiência sem fazermos memória de uma certa audiência, também amplamente divulgada pela mídia, quando uma vítima de estupro foi literalmente massacrada pelo advogado do réu, em nítida perpetração de violência psicológica e em razão do gênero, ao falar nas fotos que vítima teria postado em “posição ginecológica”.

Mas por falar em justiça, também merece ser lembrada recente decisão do Supremo Tribunal Federal, no julgamento de HC 170.559, decidindo pela impossibilidade de realização de um novo Júri. No caso, trata-se de julgamento de um homem que foi levado à Júri por tentativa de feminicídio contra sua mulher, tendo sido ao final absolvido pela adoção da tese da legítima defesa da honra.

O TJ/MG, reformou a decisão por entender que fora contrária ao conjunto probatório dos autos, uma vez que, há provas da ocorrência do crime, bem como, a própria confissão do autor. Diga-se, ainda, que a decisão do tribunal mineiro já havia sido confirmada pelo STJ.

Esse julgamento pela Suprema Corte ocorreu em setembro de 2020. Já em fevereiro desse emblemático ano de 2020 foi divulgada pela imprensa que no ano de 2019 foram mortas 1.310 (um mil trezentas e dez mulheres), vítimas de violência doméstica. Dentre estas mulheres estão Tatiane Paula de Aquino, 39 anos, morta dentro de sua própria casa com ferimentos na cabeça. Tatiane tinha cinco filhos e morava em Contagem, Minas Gerais. Em São Paulo, também com facadas no rosto e ferimentos nas costas, morreu Beatriz de Espíndola Fermino Calado, com 32 anos. Assim, morreram também: Franciele Oliveria, 32 anos; Adriana Aparecida da Silva, 42 anos; Elenir e tantas outras que desaparecem, em forma de número, numa estatística de horror.

Aqui deixo um alerta à todas as mulheres, para que possamos entoar juntas mais do que notas de repúdio. É preciso articular iniciativas eficazes contra esta bestialidade absurda e desregrada que vitima todos os dias as Vivianes, Marias, Joanas e tantas outras que sofrem os danos da violência de gênero. Como mulheres, filhas desta pátria-mãe, tantas vezes não gentil, usemos a nossa voz para falar por aquelas que foram silenciadas.

Maria Cristina Santiago
Advogada, mestre e doutora em direito pela UFPB, Presidente do IBDFAM/PB. Professora de direito civil da UFPB e do UNIPE.

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